Fagulha II

Aquele momento de puro terror.

Então você acorda, e a luz do sol brilha na janela, e está frio. Não muito. E você acredita que aquela raiva se foi. Mas... Aos poucos, você percebe que ela ainda está lá. Que ela está incrustada. Que ela sempre esteve. Que ela já faz parte de você. Isso assusta, mas você não tem medo: está acostumado. Respira fundo. Tenta ignorar, mas tudo o que você quer é o silêncio. A solitude. Apenas o barulho do vento farfalhando as folhas das árvores. Como este som lhe traz paz! Mas isso não é possível hoje. Hoje, todos os seus planos são tomar um banho. Lavar o cabelo. Há três dias ele não é lavado. Sua cabeça dói de tanto que você o prende, para disfarçar o quanto está sujo. Você tem vergonha. Você, então, percebe que tem vergonha de si! Vergonha do seu corpo. Da sua personalidade. Das coisas que você escreve. Do seu jeito de ser. Você tem nojo. Nojo disso que você chama de "eu". Mas você já tentou mudar tantas vezes... E nenhuma delas funcionou. Você sempre voltou a ser o que era antes. Sua raiva... Sua vergonha... Seu nojo. Tudo isso te persegue. Tudo isso sempre volta. Você se vê quebrando todas as regras que você sempre jurou proteger. E você as quebra prazerosamente. Conscientemente. Você sabe que está errado e continua. Toda aquela raiva, agora, volta-se pra si mesmo. Mas você não tem medo. Está acostumado a odiar-se desse modo. É até estranho quando você não se odeia... Quando você realmente gosta de algo que faz...! Então aquele medo inocente toma conta de você. Seus pelos arrepiam-se e você treme. Mas ninguém percebe sua dor: ninguém vê seu coração ou sua mente. Você prefere assim. Não gosta de receber ajuda sem pedir por ela. Não é orgulho. Você apenas acredita que não deve incomodar as pessoas com seus probleminhas infantis.

O tempo passa muito devagar, você está entediado da sua vida. Está de saco cheio. Não quer mais continuar. Quer parar. Respirar, sem fazer nada mais. Apenas deitar na grama e respirar. Sem que ninguém lhe mande fazer alguma coisa. Sem responsabilidade alguma. Apenas manter-se vivo. Ou talvez, nem mesmo isso! Morrer aos poucos, aproveitando as coisas. Morrer aos poucos, definhando lentamente... Vendo o tempo passar pelos seus olhos e ver que, apesar de não ter feito muito, você não perdeu nada. Ver que, como Brás Cubas, você não deixou herdeiros para viverem nisso que todos, incluindo você, chamam de casa. De lar. De mundo.

Você sorri. Sorri. E seu sorriso chega longe. Então você fecha os olhos e se vai. Aquela fagulha de vida... Aquele resto se foi. E agora você não é mais nada do que um saco de carne vazio e fedido.

Bekah
Enviado por Bekah em 02/12/2013
Reeditado em 02/07/2016
Código do texto: T4595530
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