prosa poética gigante escrita num rolo de papel higiênico Personal folha dupla

uma caipirinha, uma cerveja, uma feijoada

um popularzão aqui perto

um palito de dente

uma Coca-Cola para levar

pagar a conta

um mini ataque de pânico sem

nenhum

motivo aparente

de óculos escuros fazendo o caminho de volta

sol rachando

umas gostosas de minissaia

pensando numa abordagem estilo

ei, que tal a gente ir lá pra casa dormir com o ventilador ligado no 3?

depois transar quando acordar?

só que não

quando acordar Coca-Cola e cigarro

ler o jornal tendencioso

talvez terminar de escrever isto aqui

trabalhar um pouco

me sentir com 40 anos a mais do que tenho

quando a probabilidade disso vir a acontecer é muito pequena

estourar a cabeça antes disso

ou

morrer na casa dos cinquenta de ataque do coração

como todos os homens da minha família por parte de mãe

um exame há quinze anos atrás onde

apareceu alguma merda

fiquei de levar para o doutor e acabei perdendo

o bagulho

de propósito, claro

mais tarde sair com a minha mulher

barzinho na parte boa da cidade

hoje eu posso

foi um longo caminho

que nem foi tão longo assim

e nem doeu tanto

esse mito de que você tem que ser um fracassado para sentir as coisas de verdade

para escrever com o fígado

para mimimi etc.

que puta piada

aquele careca que fala que nem uma bixa

acertou quando disse que o Viagra fez mais pela humanidade

do que 200 anos de

deixa pra lá...

eu até que gosto do modo como ele fala

porém, fácil demais

assim como essas coisinhas que eu escrevo

deve ser por isso que ficou na minha cabeça —

é que vocês que acham que são poetas ou escritores

ou qualquer outro tipo de idiota que se considera um gênio

sabem que gostam de nivelar os outros por baixo

vocês sabem que querem todos na merda

é óbvio,

e como vocês adoram tudo que é óbvio, eu vou repetir:

quando o outro é insignificante

fica mais fácil você lidar com a sua própria insignificância

amigos xervem, quero dizer, servem, para isso, não é?

só que eu não sou seu amigo

então cai fora

isto aqui não é uma prosa patética

quero dizer, poética

na verdade eu tenho dores crônicas na mão direita

e dá preguiça

de continuar

até

o final

da

linha

há vinte e dois anos atrás eu esmigalhando o osso trapézio do

dedo indicador direito descendo a porrada na parede da casa da minha avó

só pra ver os pontinhos de sangue que iam se formando ali

gostava de vê-la nervosa e apavorada

vinte e dois anos depois mal conseguindo segurar direito essa porra de caneta

na época pareceu uma boa ideia

antes de capotar no sono

um copo do bourbon que sobrou da noite passada

duas pedras de gelo ou três

e quando acordar vai ser duro entender isto aqui

nunca compreendo 75% da minha letra

apenas vou fazendo as conexões até algo fazer sentido

75% das vezes não faz

ou, para falar o português correto,

é medíocre

de noite umas cervejas e uns drinks

tentando convencer uma mulher de que eu não sou um idiota completo

como se ela já não tivesse sacado faz tempo

eu e os meus truques manjados

pagar a conta que ela já não racha mais comigo

pagar os 10% do serviço de mesa

pagar o serviço de valet

pagar sei lá mais o quê

Miles Davis no som do carro

me sentindo como se a vida não fosse a porcaria que de fato é

ficando de saco cheio de Miles Davis porque

nada mais é como já foi um dia

o que soa meio retardado de se dizer, eu entendo

porra, como explicar que há não muito tempo atrás às vezes eu sentia

como se estivesse no meio de uma cena de um filme chatinho?

encher um pouco a cara,

colocar alguma coisa igualmente chatinha pra escutar,

sair dirigindo na noite

e me sentir sofisticado

era isso

legal até

mas a gente acaba caindo na real

quando a gente é um cara que recebe ligações gravadas

oferecendo seguro funeral no meio da tarde

não me leve a mal

eu gosto do Miles

quase fiz uma tatuagem com a cara dele

uma que parece que foi tirada na época do Tutu

é só que alguém achou que ia parecer veadagem

e outro alguém

que era tipo eu

achou que esse alguém que achou que ia parecer veadagem

só disse que ia parecer veadagem

porque não sabia como tatuar aquela veadagem

daí eu acabei fazendo outra

e depois outra

e outra

e hoje não queria ter mais nenhuma e não posso mais parar

porque tenho aquele problema de não conseguir parar de fazer as coisas

foi assim com os cigarros

foi assim com o trabalho

foi assim com a feijoada com cerveja e caipirinha todo o sábado

fica a lição para a garotada

pensando

talvez eu pudesse me tornar um escritor porcamente conhecido

era só pagar para que publicassem meus livros

nenhum problema

exceto as pessoas

imagino uma sessão de autógrafos com 2 ou 3 imbecis

ou 357

se eu realmente quisesse

se eu não fosse tão covarde

ao mesmo tempo sem saber se quero esse tipo de atenção

já tenho um relativo sucesso na vida

um belo dia a polícia pode bater aqui na porta de casa

coisas assim

o velho dizia que era só de algum tipo de sucesso que um cara precisava

não necessariamente no amor

e todos os outros velhos que disseram isso antes dele

estou meio bêbado e fumando vários cigarros

método Hemingway de escrita

sem nem um terço do talento — provavelmente é o que

você está pensando agora

mas eu não gosto da merda dele

e ele não pode dizer nada a respeito da minha

quem sou eu para dizer que não gosto da merda dele?...

quem é você para dizer que tem algum problema eu dizer que não gosto da merda dele?

quem sou eu para perguntar a você quem é você para dizer que tem algum problema eu dizer que não gosto da merda dele?

bom, você pode ser quem você quiser ser

e eu posso ser alguém que não dá a mínima

meu bourbon acabou.

um gole de água

o ventilador colado na cama

programar o despertador do celular

algum blues para tocar baixinho

cachorro deitado em cima do meu travesseiro

escorrego para o meio do colchão

de bruços porque minha coluna me mata

penso em câncer e paralisia do pescoço pra baixo

dores crônicas na planta do pé desde o começo do ano

câncer de novo

trombose

diabetes

desperdício de potencial

pança ficando gorda

umas gostosas deitadas de bruços na praia

um solo de guitarra curto demais numa música longa demais

aquela viagem que eu deixei de fazer

que clichê...

resgatar mais um cachorro das ruas?

lista de compras no mercado amassada dentro de

qual

bolso sei lá eu

suicídio

pastilhas de menta cairiam bem agora

um último embate com meu inimigo mortal na chuva

uma espada que só eu consigo tirar da pedra, vai saber o motivo

olho para ele como se quisesse resolver aquilo de uma vez por todas

ele faz que sim com a cabeça

mostra os dentes e vem correndo em minha direção

sua espada é maior que a minha

novidade...

só que a minha é aquela que nenhum cavaleiro conseguiu tirar da pedra

me preparo para uma investida rodopiante

viver ou morrer não importa

estou cansado demais

caio dentro desferindo um golpe só

que na verdade são vários golpes na velocidade da luz

dou as costas enquanto ele se desmantela partido em vinte e sete

pedaços

vitória...

dor de cabeça

nariz totalmente entupido

do descongestionante nasal usado por dois dias seguidos sem necessidade

estava tentando hiperventilar e ficar doidão para ver Deus ou qualquer outra porcaria

mediocridade

mais um pequeno ataque de pânico

gosto de papelão molhado com pano que não secou direito

dentro da boca

tentando ouvir a vizinha do apartamento do lado dando uma

ela geme como se estivesse levando no rabo

provavelmente nada tão emocionante assim

fazem um belo ceviche no lugar onde a gente vai hoje de noite

espero que dê uma refrescada

espero ganhar na loteria

espero morrer sentindo nada

espero depois de morto não ser nada

e nunca mais ter que sentir nada

eu realmente queria me tornar um escritor porcamente conhecido

e nunca vou fazer esforço nenhum para que isso aconteça

a César o que é de César

e que se fodam todos os problemas da humanidade.

Gilberto Sakurai “O Maldito Escritor” – 2017

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Gilberto Sakurai
Enviado por Gilberto Sakurai em 26/03/2017
Reeditado em 08/04/2017
Código do texto: T5952346
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