Balada para sax e orquestra

BALADA PARA SAX E ORQUESTRA - esquetes

O saxofone de smoke get in your eyes trouxe-me novamente o estopim catártico do poema. Veio-me a primeira frase e forcei o final. Era assim que eu criava. Não sabia o que fazer com tantas páginas guardadas em pastas coloridas, separando os antigos dos em andamento.

A quinta bachiana de Villa-lobos, tocada pelo Gismonti, devolvia-me a dramaticidade de minha solidão

O dia amanhecera cinza e chuvoso. O álibi perfeito para que eu ficasse em casa. Estávamos em fevereiro, um mês maldito, de tédio, sol e praia, para quem podia. Eu não podia. Estava desempregada e não tinha dinheiro nem para os cigarros. A solução fora passar uns dias no campo. A fazenda Três Tarumãs era um lugar bucólico, com seus muitos pássaros e lagartos. Havia também um açude de águas barrentas com garças e quero-queros. Todos os quinze dias que fiquei lá foram a espera do pôr-do-sol neste cenário, um pouco pampa, um pouco solidão.

No fevereiro daquele ano ainda fui até minha cidade natal, visitar a casa onde moraram meus avós. Estava tudo muito diferente de minhas lembranças de menina. Mas ainda conservava sua aura de mistério e disseram-me que na cidade falavam que era mal-assombrado. Um calafrio percorreu meus braços e era o mesmo que sentia quando entrava no Sobrado desabitado, com medo do fantasma de minha tia morta, precocemente .Agora estavam lá os fantasmas de minha avó e de meu avô.

O silêncio daquele sítio, com seu tambo, galinheiro, marcenaria e quartos intermináveis ao longo da varanda da casa, ao lado do Sobrado, trouxe-me uma paz como há muito tempo não experimentava. Caminhara pelo pátio reconstruindo meus antigos refúgios de antigas brincadeiras. Mas a atual pobreza, deprimira-me um pouco e tive vontade de voltar para casa.

Ainda naquele fevereiro de carnaval e tragédias no jornal nacional, encontrei um D. pensativo e distante. Fiquei preocupada e tive medo de que não estivesse feliz. Mas concluíra que ele estava com saudades de mim e aquela indiferença era uma punição por meu abandono de quinze dias. Tudo voltaria a ficar bem.

O outono nascera de um dia para o outro. Meio frio, com seu sol claro e céu limpo. Gostava desta época em Porto Alegre. Tudo recomeçava depois de bares com cerveja nas calçadas, as pessoas se recolhiam um pouco. Uma certa normalidade pairava no ar da cidade.

O sol estava em peixes, logo faria trinta e seis anos e esta época do ano era sempre conturbada e plena de transformações.

O outono era o solo de piano do Erik Satie no toca-discos e eu tinha vontade de recolher-me um pouco também. Se bem que já fosse uma pessoa introspectiva por natureza. O estranho era que as pessoas não me viam assim e isso deixava-me confusa.

Naquele março encontrei um ex-namorado do tempo da faculdade. Fazia calor e tomara um banho de chuva, quase não o reconheci. Ele estava mais velho, mais gordo, mais careca, mas continuava o sedutor que conhecera. Era coisa do passado, mas o amor pelo jazz, que ele me ensinou em noites regadas a Wayne ou Monk, ficou em minha vida, e relembrava aqueles dias enquanto ouvia um disco do Oscar Peterson, que reservara para as despedidas das paixões juvenis e dos sonhos de amores sem consequências.

De minha janela, no apartamento de minha mãe, tinha um bela vista. O pôr-do-sol no Guaíba e o centro da cidade. Pensava em encontrar um apartamento ára mim onde também pudesse ficar sonhando nas janelas, olhando o vento nas árvores e os jacarandás na primavera.

No tempo da universidade, sempre dicotomizara a engenharia e a arte – outra grande paixão – fugia das aulas nos cinemas, nas tardes no Bristol. Vivera em função de filmes e livros para escapar do concretismo das ciências exatas, mas soubera, muito mais tarde, que minha cabeça funcionava como um computador metafísico. Ìa da mais pura racionalidade aos confins de minha busca existencial por paz e felicidade, tudo isso permeado de tentativas de enquadrar em fórmulas os meus pensamentos.

Havia dias em que acordava como que possuída por demônios provenientes dos meus sonhos. Custava a sair da atmosfera noturna e as manhãs eram apenas vividas para a expulsão destes seres que não chegavam a me aterrorizar, mas que me faziam pensar no lixo de meu inconsciente. Não tinha domínio sobre meus sonhos e quase sempre eram vivências que não queria, ou melhor, situações onde me colocava em contradição com meus projetos diurnos. Como

um boicote aos meus insights.

O silêncio começara a me fazer bem, ao contrário de minha obsessão pela música. Às vezes desligando o som e o rádio e escutando somente o pulsar da cidade. Voltara a ler como no tempo da universidade e isso me absorvia completamente.

Não tinha mais referências nos intelectuais e achava o pós-modernismo um a colagem muito mal feita do velho transformado e adulterado em novo. Os filósofos franceses, que conhecia dos jornais, pareciam-me confusos e girando em torno de um mesmo ponto – a validade ou não do marxismo. Eu não me considerava mais uma marxista. Mas não chegara à decadência de me tornar uma neo-liberal. Liberalismo soava, para mim, como falta de princípios éticos e morais, do ponto de vista político, é claro. Pois na vida pessoal acho que continuava uma liberal, mas já com algumas reservas e preconceitos. As ideias dos anos sessenta e “hipongas” já não me seduziam. Voltara a acreditar na importância da espiritualidade, mas não acreditava em nenhuma religião oficial ou alternativa. Criara meus próprios ritos e crenças.

Andara escrevendo uns poemas depois do casamento de meu irmão. Pretendia que fosse um livro chamado vozes do passado. Mas "vieram” apenas dez ou doze e a inspiração desaparecera.

Naquele domingo, lera duas frases no jornal que me fizeram pensar na minha condição atual. Uma era sobre o mercado editorial brasileiro, e dizia que as editoras recebiam cerca de oitenta originais por mês e que a maioria eram confissões sem valor literário. Pensei em rasgar as minhas poesias. E a segunda, era uma frase de Proust, onde ele dizia que o problema das pessoas era que não conseguiam ficar sozinhas e tranquilas em seus quartos. Veio-me a minha própria imagem caminhando de um lado para o outro pela casa, procurando ocupação e prazer em alguma atividade e que tinha que ver com a primeira, pois me fechava no quarto para escrever confissões. Achei-me um fracasso duas vezes e minha auto-estima piorou ainda mais quando olhei o caderno de empregos e não encontrei nenhuma oferta.

Lembrara-me de uma velha amiga, que morara em Moscou nos anos sessenta, e que me disse que os domingos eram iguais em qualquer lugar. Tédio e rotina, combinados com o torpor da segunda angustiante do conhecido ou do tédio ou da rotina. Não havia muitas saídas para este círculo vicioso. A mão do tempo virava e revirava a ampulheta, ou dava cordas no relógio. A variável independente – o tempo- regulava todas as outras.

Durante a noite daquele domingo, dois morcegos invadiram meu quarto pela janela, que sempre deixava aberta. Sai e fui dormir no quarto do meu irmão. Quando acordei, lembrei que estava sem cigarros e sem dinheiro para comprar. Permaneci na cama o mais que pude. Tomei o café sem o prazer de todos os dias, tentava encontrar a solução para a minha absoluta miséria.

Uma dramaticidade etérea pairava sobre meus pensamentos. Tentava desesperadamente ver-me a alguns anos à frente. A imagem de como seriam os dias e as noites solitárias, dava-me a certeza de minha insatisfação. Porém, ao mesmo tempo fazia-me sentir sublime em minha renúncia. Bela em meu isolamento voluntário. Isso era dramático. Vislumbrava o futuro com planos de ocupar meu tempo com atividades prazerosas. Uma balada de Brahms embalava estes sonhos.

Censurara-me a tarde inteira por pensar em sexo. À noite estava exausta. Os fins-de-semana detonavam explosões. Decidira não procurar as minhas amigas. Precisava ouvir um saxofone. Do Gato Barbieri.

Precisava ter paciência para o tempo passar. Mas a noite estava quente e repleta de convidativos perfumes outonais. Nada que um concerto para piano de Bach não curasse com sua precisão e racionalidade.

John Coltrane e suas baladas davam o tom romântico naquela noite de domingo.

O presente batia a minha porta, com a força do estar aqui e agora. Estava cansada de impessoalizar minha vida como se não fosse minha e sim de um personagem fictício por quem não tinha nenhuma compaixão. Abriam-se portas para a minha percepção. Descobria o poder de meus pensamentos e a força de minhas ações. Podia começar a agir novamente. O longo exílio na casa de minha mãe acabava e eu voltava à vida, sem o medo de antes e com a coragem do agora.

O bandoneon de Astor Piazzolla ensurdecia-me e era o que eu precisava. Calar meus pensamentos. Calar minhas dúvidas em ações contraditórias e superficiais. Eu era uma pessoa superficial. Aquela conclusão dpóa tanto quanto o sentimento de saber-me ou sentir-me profunda e plena. Meu mundo estava empobrecido e girava em torno do mesmo ponto há muito tempo.

Minha ciclotimia exacerbada deixava-me exausta. Oscilava de um lado para como o pêndulo de um relógio enlouquecido ao s abor do tempo. Estava sem abrigos, não tinha mais os meus esconderijos. Desenvolvera uma fobia de lugares vazios e não me permitia sair à rua sem compromissos, não suportava simplesmente caminhar para matar tempo.

Minhas poesias cessaram completamente.

Sempre me considerara uma pessoa inteligente e era arrogante com as falhas dos outros. Mas agora não me parecia ser tão especial assim. O brilho da juventude e a curiosidade haviam passado e eu me transformara em uma pessoa bastante comum.

Naquele dia não havia música, nem dor, nem lágrimas. Apenas um torpor dos sentidos. O mundo estava sem graça. Tudo me parecia idiota, sem sentido. Se pudesse sairia voando pela janela em direção ao pôr-do-sol. Ou escorregaria pelos tapetes, desfazendo-me em lava quente. Poderia desintegrar-me ao vento como poeira cósmica. Ou somente permanecer em silêncio ao lado do D.

Aquela segunda-feira amanhecera com Rach 3 a todo o volume.

O dia era inédito. Como alguns são repetições de outros, aquele era único e o tempo voltara a passar como em uma ampulheta enorme em frente aos meus olhos. Tudo estava diferente e dialeticamente havia ocorrido um salto qualitativo. Eu tinha trabalho e logo ganharia algum dinheiro. A música era a mesma com contornos inéditos também.

O vento assobiava na janela como o uivo dos lobos solitários nas noites enluaradas e frias das florestas. Eles, como eu, solitários nos domingos frios e gelados do inverno das almas. A cortina balançava como se não houvesse vidros e o barulho era tanto que se confundia com o saxofone de Wayne Shorter. O inverno chegava com um vento gelado, obrigando-me ao recolhimento. O vento continuava como ontem. Meu quarto estava inóspito e gelado. Minha cama de solteira estava pequena para mim.

Mais um domingo chuvoso e frio naquele inverno onde tudo parecia se resolver lentamente, harmoniosamente. Minha vida tomava contornos. Eu voltara a ser dona do meu cotidiano, improvisando para que algo acontecesse. Mas não faria muitos planos, apenas me manteria ocupada com minha busca e solidão. Talvez compre um gato – dizem que os solitários, que têm um animal de estimação, vivem mais.

Estava terminado. Por cansaço, por sofrimento e amargura. E nem mesmo percebera como havia chegado ao fim desta busca tortuosa, repleta de desvãos e descaminhos.

A miragem que havia frente aos meus olhos, sumiu repentinamente, mas depois de tanto explorá-la, depois de penetrá-la interiormente, tentando fazê-la real. Andei em círculos, em linha reta ou sobre os mesmos passos por muitos anos.

Vou plantar minhas mudas de árvores perenes. Minhas flores. Voltarei às raízes de uma vida simples e sem grandes planos. Caminhar pelas ruas, fazer novos amigos. O saxofone ainda tocava, mas as imagens que suscitava não eram as mesmas de nove meses atrás

É domingo. Está calor. A paisagem da janela apaga-se como o meu ímpeto. Nove meses se passaram. Uma nova gestação. Minha Olivetti está gasta, não dá para mais nada. Só resta levantar da escrivaninha, engavetar estas páginas e os poemas, como o passado e apagar as luzes.

Magda L Carvalho
Enviado por Magda L Carvalho em 13/08/2017
Código do texto: T6082499
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