Deus, o Homem e o vinho

Deus, o Homem e a Uva.

É um engano imaginar que a maior dificuldade que Deus experimentou foi criar o Homem. Um simples amontoado de elementos químicos. O “barro primordial” para os crédulos, ou a “sopa de moléculas” para os céticos. Um punhado aqui, outro ali, uma remexida, um acerto, um retoque e o seu indispensável Sopro. E pronto! Eis a criatura!

O que foi complicado mesmo foi definir como seria o invólucro que envolveria cada uma das criaturas. Sim, porque tão logo as terminou, Ele viu que errara na proporção entre o poder dos mesmos e o tamanho das dificuldades que eles enfrentariam. Era preciso que fossem protegidos. Que cada um deles fosse recoberto e tivesse ao seu redor um “Mundo” em escala mínima. Que ele, então, “vivesse no seu Mundo”. O “outro Mundo”, o inteiro, era muito grande e muito complicado. Era excessivo para a fragilidade humana.

E como Ele é pensamento e ação, assim pensou e assim fez. Porém (já existia o porém, então), o resultado não ficou de seu agrado. Acontece que ao fazer os Homens, não se sabe por que, a receita com as medidas dos elementos primordiais foi perdida, mas Ele continuou mesmo assim e no fim viu espantado que ao contrário do que pretendia, nenhum dos Homens ficou à Sua imagem e semelhança, pois havia aquele que era alto, o que era baixo, o que era magro e o que era gordo. Uma completa miscelânea.

Quanto à questão da Imagem e Semelhança Ele logo encontrou a solução, pois Ele também era multifacetado e a variedade dos formatos e de Suas criaturas simbolizaria a sua variedade de faces. Além, disso, pensou, cada um deles me verá de um jeito e naturalmente associarão a sua imagem comigo, portanto, não devo preocupar-me com isto.

O diabo (Ele teria pensado se não fosse quem Ele é) são os malditos invólucros. Para alguns ficará muito largo, para outro muito apertado, ou curto, ou comprido. Maldita pressa! Por que Eu não pude refrear a minha ansiedade? Tinha que terminar tudo em seis dias?

O incipiente Universo ressoou com aquela fúria. Estava colocado: o problema do tamanho. A angústia dos Homens com o tamanho. Todos querem um nariz de tamanho pequeno, mas . . .

Por fim, aquele que tudo perdoa, perdoou a Si mesmo e achou por bem deixar de histeria e encontrar uma solução. E não é que a Solução foi mesmo Divinal? Ele inventou o material elástico. Assim, estava resolvido o problema do ajuste, pois cada qual teria o seu invólucro protetor conforme a respectiva estatura. Muito bem, Pensou, mãos às obras e num misero instante dotou a todos os Homens de seu “mundo particular”.

E dessa vez satisfez-se com o resultado. Achou muito bonitinho. Aquele amontoado de cápsulas escurinhas e juntinhas. Tão grudadinhas. Uma gracinha . . . aquilo lhe pareceu alguma coisa, mas foi inútil tentar lembrar o que seria. E para não perder tempo com alguma coisa do passado (que para Ele não existe, pois é Eterno) transformou o que seria uma lembrança em uma inspiração e criou assim o:

Distinta platéia, com vocês, from to Big Bang, o sensacional e inédito: Cacho de Uvas!

Em várias partes as Sagradas Escrituras fazem referência às uvas, mas ao contrário do que as traduções (ah, esses copistas) nos fizeram acreditar, elas não foram tão citadas por suas simbologias de fartura, doçura ou outros signos menores. Não senhor. A leitura correta é aquela que nos indica que são tão reverenciadas por sua simbologia maior: a Humanidade é um Cacho de Uvas, todas juntas, mas cada qual contido em seu compartimento. Ali vivem e com os demais competem pela luz.

É preciso ter mais luz que os outros concorrentes, pois é através dela que se aumenta de sabor e é preciso ter mais sabor para que se atinja a finalidade que se espera das uvas e dos Homens: agradar.

A carência essencial. Querer ser amado. A consciência de não ser nada além daquilo que os outros avistam. A tragédia dos Homens: apenas existir graças à retina do outro.

Todavia, Ele não se importou com esses questionamentos e tampouco se preocupou em aprimorar os casulos que, dessa forma, ficaram opacos e aderentes. Uma situação estranha: embora sem vislumbre do mundo inteiro, as criaturas pressentiam as suas iguais e a elas se iam unindo. Um magnetismo invencível. Por contatos de casulos procriaram e cada nova criatura herdava o seu próprio invólucro e a mediocridade do mundo ancestral.

Assim foi. E como já era o Sexto Dia daquele trabalho imenso (ou insano?), Ele sentiu-se esgotado, cansado, estafado e (conforme os dias atuais, que segundo Einstein já acontecia) estressado.

Não!

Eu não quero livros de auto-ajuda!

Não! Eu não quero ansiolíticos ou antidepressivos!

Eu quero a paz! A paz da paz, como diria Drumonnd.

Na próxima segunda-feira eu retomarei o trabalho de criar o Mundo. Se . . . Eu. . . quiser! Está claro?

Mas como para Ele não existe a próxima segunda-feira, pois Ele é atemporal, não voltou para concluir a Sua obra. Ele nunca mais voltou.

Ficaram os Homens e as Uvas.

As uvas logo criaram uma maneira de exercitar a sua libertação e se transformaram em vinho. Os Homens seguiram os seus passos e comemoraram a liberdade em relação ao Pai e sugaram o vinho da Mãe. Esbórnia terrível! Devassidão inenarrável! Um horror! Porém, Freud explica.

O vinho da “Mãe Uva”, sua forma original, despertou-os para o fato de que haveria um mundo além do que lhes fora dado. Uma minoria insignificante descobriu (Ave Platão!) que além do vinho, lustrando o seu compartimento, poder-se-ia vislumbrar o que se chamou de “Mundo Maior”. E esta minoria avocou a pretensão de ser a vanguarda da Humanidade. E desde então um escreveu sobre o outro que lhe era igual. Surgiram as “cavernas”, as “gaivotas incansáveis” que voavam sempre para mais longe; as lagartas que se transformaram em borboletas e todos os textos que glorificam a busca, o arrojo e o descortino.

Tal qual as uvas, a Humanidade também se dividiu: a minoria que lustra os casulos e consegue enxergar além assumiu a identidade dos vinhos nobres, reservados ao Supra Sumo da vida. A esmagadora maioria contentou-se com o papel de vinagre que tempera a rotina dos dias iguais.

Tratados de enealogia proliferaram. Biografias ilustres também. Retrata-se o “Mundo Maior” e com alguma insistência a vanguarda iluminada tenta relatar o que enxerga para a patuléia que nada vê.

Os primeiros insistem pois sabem que essa tentativa lhes poupará o desgosto de ter que trabalhar. Os segundos resistem porque intuem que é um desperdício escutar alguém que, nessa crise toda, venha lhes falar de Humanidade, vinhos e uvas. Ora, vá trabalhar! Eu quero lá saber se há outro mundo? Eu quero é Grana. Eu quero é Poder. Eu quero é Segurança. Eu quero ser doce . . . eu quero que me queiram.

E finalizando essas mal traçadas linhas devo dizer-lhe, caro Rousseau, que nos explicou que entre a Liberdade ou a Segurança optamos pela segunda, que você também não pôde sorver o Champanhe, pois nas seguranças dos casulos não há espaço para a garrafa e sequer para a fantasia que dela se desprende.

A segurança do casulo, do cacho, da videira. O que haverá em cada um desses casulos? Será que a Alma que ali está aprisionada voa?