Abraçada pela escuridão.(E)
 
 
 
Chovera a noite toda. Finalmente ela pudera dormir acalentada. O barulho da chuva caindo no telhado era música, trilha sonora para um filme de boas lembranças.  Acordou bem cedo ainda, já a chuva havia partido sabe se lá para onde, mas a escuridão ainda tomava conta de tudo. Levantou-se e abriu a janela, a vidraça abaixada para impedir a chuva de entrar por entre as frestas. Levantou a vidraça debruçou-se no peitoril, molhando os cotovelos, mas não se importou. Tinha sido uma chuva abençoada, pondo fim a uma seca que já durava meses. Olhou para o céu azul ainda escuro, coalhado de pontos luminosos: as estrelas, como luzes acesas nas casas onde moravam os anjos a espera de voltarem para a humanidade. Quando viera para o vilarejo ainda havia eletricidade e todas as casas se iluminavam a noite mesmo sendo com uma luz bruxuleante e as pessoas se assentavam em cadeiras postas nas calçadas ou até nas próprias calçadas para dedos de prosa. Como aos poucos os moradores foram deixando o lugar, foi perdendo o sentido para a Companhia de Eletricidade manter a cidade iluminada. Face esse detalhe foi lhe proposto receber a energia elétrica em horários determinados, mas ela declinou dessa amabilidade e assim o vilarejo só tinha eletricidade em dias especiais quando as famílias voltavam para comemorações, nas Festas de Fim de Ano, Carnaval, Semana Santa e no Jubileu. Ela não se importara – estava acostumada a viver no escuro. Aprendera durante as férias que passava na casa da avó, quando ainda menina. E depois, para que ela deveria querer usufruir da eletricidade se tudo o que precisava fazer gostava mais de fazer como no tempo de sua avó? Embora tivesse o seu fogão a gás, preferia cozinhar no fogão a lenha, fazer suas geleias e compotas, lavar a roupa nas águas cristalinas do rio, quará-las na pedra junto à árvore, passar a roupa no ferro a brasa. As roupas no ferro a brasa... esse pensamento  levou a uma triste lembrança – olhou o braço ainda protegido pelas sombras do crepúsculo adivinhando a marca escura que a acompanhava desde criança – o braço passado a ferro pela empregada da avó. Tinha sido sem querer, ela não negava isso, mas doera e muito. E doera  mais ainda pelos dias que tivera de passar com o braço na tipoia, envolvido em folhas de bananeira, sem participar das brincadeiras com os primos. A marca que ficara quase desaparecera, mas a lembrança daqueles tempos era forte, muito forte. Tão forte que vivendo ali, no vilarejo, as vezes tinha a impressão de que estava apenas passando as férias na casa dos avós. Que logo as férias acabariam e ela teria que voltar para casa e enfrentar aquele mundo tão difícil de gente grande. Um mundo que ela conhecia de sobra e que não lhe fazia falta nenhuma. Um mundo cheio de sons opressores que chegava de todos os lados, das janelas abertas, do rádio ligado na cozinha, a televisão na sala...E  foi ali na janela que ela se lembrou de uma coisa: tinha algo sim de que ela sentia falta, muita falta. Algo que nem os sons da natureza conseguiam substituir: música. Ela sentia falta de música, de ouvir música, de tocar o seu piano nas tardes tranquilas de sua vida intranquila. Mas para isso havia uma solução e se a solução já aparecia ali, quase antes do problema, era preciso então  por mãos a obra. Iria providenciar a vinda de seu piano. Abraçada pela escuridão das nuvens que avisavam que a chuva não iria parar, abaixou a vidraça, fechou a janela e voltou para a cama. Queria dormir de novo e sonhar...