A senhora da noite

Sinto-me cercado por todos os lados. Fecho os olhos para a realidade, das cenas cruéis e tristes que não quero ver, tampo os ouvidos, esperando o silêncio cair e tudo ficar assim: quieto. Espero a hora em que minha pulsação se acalma, que o sono vem, que tudo é escuro e não ouço nada, hora que finalmente penso que estou em paz.

Mas fica cada vez mais difícil fechar os olhos, pois dia após dia a repetição me cansa. Agora tampo os ouvidos mas o som não cessa, minha quietude está inquieta. Rezo em desespero pra calmaria chegar, mas meu sangue a nega, meu coração acelera junto do meu desespero. Mesmo quando cai a noite enxergo luzes, mesmo quando tudo está em silêncio escuto vozes. Sigo abalado, em angustia até o sono chegar. Embora seja uma luta acirrada, uma hora ele me derruba e tenho um sono inquieto, um sono sem descansar.

Acordo como se fosse um derrotado, não lembro nem como cheguei a dormir, não sei também por que vim a acordar. Meus olhos estão vermelhos, mas não sei se foi porque chorei, se é a luz ou se estou perdendo o controle sobre mim mesmo. O que importa é que mais um dia raiou e mais uma vez terei de viver.

No entanto, cada dia se torna mais agonizante, as luzes não se apagam mais, as vozes não se calam, os dias se arrastam e eu também me arrasto por eles. Estou sozinho, mas não me sinto só, ela também está aqui, sussurrando em meu ouvido. Minha pulsação é frenética, sinto meu próprio coração na boca, sinto a vida ali, frágil, que pode acabar a qualquer instante.

Neste próprio deliro, converso com ela. E me rendo. E eu cedo. Caio em suas seduções. E me entrego. E não repreendo. Cansei de ir a luta, a vitória é sua. E eu rio. E eu choro. Do que adianta pensar agora. E eu me calo. E eu não te nego. Você veio para ficar, não irá embora. E eu te ouço. Eu te vejo. Eu te vejo.

Como uma ressaca, eu acordo sem me recordar da noite anterior. O corpo dói, pesa mais do que pesava ontem e não quero me levantar. O relógio toca. Está claro lá fora, ouço carros passando. O relógio toca. Não sinto que sou eu mesmo, mas não me sinto diferente. O relógio toca. O que preciso fazer hoje? O relógio toca. Não quero fazer nada.

Então durmo.

Reabro os olhos, mas não sei quanto tempo passou. Não sei se é o mesmo dia, não sei se o dia já mudou. Agora me sinto um pouco melhor. Eu me levanto e vejo as horas. Já é tarde. Lembro o que deveria fazer, mas que não fiz. Lembro que tinha um dia para viver, mas que não vivi. Lembro que tinha planos, que já ruiram. Lembro o que fiz...

E o arrependimento vem. Sem dó, impune, vem para acabar comigo. Ele me xinga, ele me menospreza, ele me diminui. Fica um gosto amargo na boca, um nojo de mim mesmo. Ele me repreende, ele me chama de fracassado, de traidor.

A vergonha só aumenta, sinto que minha existência a beira da invisibilidade. Então faço promessas, amanhã tudo será diferente, amanhã farei tudo que hoje não fiz, amanhã. Amanhã. Repito isso a cada segundo, como um mantra, até ganhar confiança e me convencer que foi só um dia, está tudo bem.

O problema do dia é que a noite chega. De manhã tudo é claro, mas a noite nos cega. Nela não há nada, nela não se enxerga, nela tudo some da nossa frente. Em tempos assim ela vem me visitar. Mas eu resisto, eu não posso me trair novamente. Ela é forte. Eu te nego, eu não te quero. Ela é convincente. Eu consigo, eu posso. Ela não concorda. Eu suplico, eu te imploro. Ela não se importa.

Mais uma noite vivemos nosso romance, em que não te quero, mas você me faz te querer. Em que eu te digo não, mas o seu sim prevalece. Em que minha vergonha anterior se esvai e você me preenche. E me domina. E me fortalece. E me encanta. E me ensina. E me beija. E me ama. E não me deixa. E me quer. Eu te quero. Eu te quero.

Como uma ressaca, eu acordo sem me recordar da noite anterior. O corpo dói, pesa mais do que pesava ontem e no dia anterior. Não quero me levantar. O relógio toca. Está claro lá fora, ouço carros passando. O relógio toca. Não sinto que sou eu mesmo, me sinto um pouco diferente. O relógio toca. O que preciso fazer hoje? O relógio toca. Não quero fazer nada.

Então durmo.