NOI “ORIUNDI”

Por volta do ano de 1865, na província de Potenza, comunidade de Lauría, ao sul da Itália, casaram-se os jovens Biase Fittipaldi e Anna Rosa Carluccio, provavelmente agricultores cujas prioridades básicas pareciam ser: Trabalhar duro ao dia... - fazer filhos à noite.

Nas duas lides foram bem sucedidos, visto que obtiveram uma geração farta e situação satisfatória para o padrão sócio econômico da época e região. Os filhos dessa união, que mais tarde se revelariam igualmente bem dispostos nas duas frentes, conseguiriam resultados igualmente favoráveis. Talvez até hoje esses filhos e seus descendentes lá estivessem, não fosse pela expectativa, e depois a confirmação, da primeira grande guerra mundial no período compreendido entre 1914 e 1920. Nessa época, alguns dos filhos solteiros e outros já com seus respectivos pares, decidiram pela retirada coletiva, face às dificuldades do país, e alimentados da esperança de encontrar novos horizontes em outro ambiente, e de forma desordenada e com ampla dose de precipitação, lançaram-se aos navios; Rumo “Brasili”, a promessa anunciada de progresso e esperança, que ouviam dizer que “em se plantando, tudo dá”.

Alcançaram o destino, todavia, pelo modo conturbado da partida, sem planos e cuidados necessários para evitar a dispersão do grupo, fizeram desembarques estabanados, provavelmente orientados por agentes inescrupulosos, cujos interesses se limitavam a fornecer a preços baixos, a força de trabalho equivalente à mão de obra escrava em processo de substituição, que se exauria por força da lei abolicionista. Essa situação os levou ao desencontro que mais tarde revelar-se-ia definitivo, submetendo-os dali por diante, a viver com remota esperança de um dia rever os irmãos e os pais.

Este pretenso “autor” que é parte da terceira, e conviva da sexta geração daqueles que se lançaram aos oceanos, é testemunha de que o reencontro não ocorreu, e de que continuamos dispersos, com a agravante de termos arrefecido um pouco aquele desejo premente e original de nos reconhecermos; como fruto do moderno modelo da vida atual. A esta altura, as únicas indicações do vínculo familiar que temos, ocorrem em razão de eventuais coincidências e pelas fisionomias óbvias, que nos conferem “a mesma cara”. Alguma projeção social que alguns conseguiram no meio esportivo, político, militar e profissional ajuda a fazermos o comparativo das aparências. Ajudam também algumas casualidades que ocorrem entre pessoas do mesmo sobrenome, que se esbarram indiferentemente, não sabendo que naquele encontro possa existir um forte elo, e quase um século de atraso.

Sinto amor fraterno por toda essa gente, com origem comprovada ou nem tanto, vivos ou mortos, seja um barão, outro campeão, próximo do Getúlio ou não, ou quaisquer outros, como eu, totalmente desconhecidos.

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“MIO NONNO”

Terno cinza e chapéu de feltro, camisa branca invariavelmente fechada até o colarinho e gravata preta, qualquer que fosse o clima, lhe conferiam um aspecto austero, apesar da condição precocemente senil que os anos de labuta sobre-humana lhe imputaram.

Pelos idos de 1956, quando tinha quatro anos de idade, comecei a ter consciência que aquele senhor de setenta e quatro, Domênico, que se submetia às minhas vontades, e às minhas imitações sobre o seu modo de andar e falar, era o meu avô.

O caminhar cambaleante, que o obrigava a levar uma cadeira de palha para todo lado, os cabelos brancos, mas ainda fartos, mostrava que ele se tornara um arremedo daquele que partira da velha bota aos trinta anos de idade, e que se perdendo dos irmãos, ficou morando no exclusivo e italianíssimo bairro paulistano do Braz. Naquela época a Cia. Antarctica Paulista vendeu o parque que ostentava seu nome, ao clube “Palestra Itália”, para que construísse uma sede esportiva, mas essa é uma outra vertente da história, a ser tratada em outra ocasião.

Assim mesmo, ele exercia incisivamente o patronato de sua prole; determinava as regras de conduta e o modo de viver dos familiares, usando um linguajar tão peculiar, do qual nunca conseguiria se livrar, que até mesmo os empregados brasileiros que o serviam no negócio de venda e distribuição de carne, aprenderam a falar o dialeto e se tornaram “italianos” por osmose.

Exclusivamente dele era o direito de sentar-se à mesa antes de todos, e depois que estivessem acomodados, autorizava que a refeição fosse servida. Habitualmente os pratos eram os triviais, e o vinho era servido em profusão. Até mesmo para as crianças era misturado ao refrigerante, e se em idade de chupeta, apreciavam-no, conforme ocorreu comigo, no pão embevecido.

À mesa os empregados eram presentes, e todos eram servidos segundo sua posição etária, do mais velho para o mais novo, sendo terminantemente proibido a qualquer um retirar-se da mesa antes do “Papá”, que cá pra nós, era um osso duro de roer, genioso e de grande rigor...

A disciplina que ele imprimia também nas outras nuances da vida, acabou por gerar personalidades fortes e caracteres positivos nos membros que aceitaram a postura do velho a guisa de lição de vida, todavia, a alegria de viver e o bom humor dele e da maioria dos membros foram preservados inteiramente.

A seriedade nunca impediu que ríssemos de algumas tradições italianas, como “la Sbruffàta” *, que embora não praticássemos (felizmente), seguia o ritual: - Servida a travessa repleta de folhas, a senhora “matrona” colocava o azeite numa caneca, para incorporar o vinagre, o sal, o limão e algumas especiarias. Feito isso, levava boa parte do conteúdo do vasilhame à boca para “bochechar”, e processar a mistura dos ingredientes. Em seguida, creio eu que orgulhosa da própria “potência”, com toda a força dos pulmões devidamente recobertos por aquele enorme par de peitos, aspergia a composição sobre a salada, caprichando no barulhão característico; Bruuuuuuuuuuu! Estava temperado “il primo piatto”...

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Nas estações mais frias, o velho Domenico dormia muito bem agasalhado, e supondo que as recordações do clima europeu o motivassem, construiu um mecanismo exótico para fazer frente as suas incontinências noturnas. Adaptou um garrafão de vidro, não raro naquela casa, acoplado a uma dessas mangueiras de água usadas nos jardins, e tendo debaixo dos cobertores a outra extremidade com um funil encaixado, inventou um equipamento para urinar sem ir ao banheiro e neutralizar os riscos para o colchão.

Esse italianão sisudo e teimoso, contudo, de coração mole, nos deixou no devido tempo, porém, ainda carrego marcas indeléveis do curto período em que convivemos. Tenho saudade dele apesar de ter já ultrapassado a meia idade. Estimo que tal ligação, que conferiu ao meu pai, a mim, e a meus filhos, uma tendência emocional latente que demonstramos no falar alto, grande apetite, gênio por vezes difícil, e rompantes de entusiasmo e lágrimas fáceis, que se impõe até nos simples jogos de futebol, vindas de um orgulho inocente e quase inexplicável de sermos chamados “Pooorrccooo”, nunca se neutralize.

Neste último pormenor, aliás, demonstramos nossa sobriedade apesar de tudo, pois aqueles que criaram a pecha de “porco” aos palmeirenses de nascimento, não poderiam supor que assimilaríamos o rótulo com tanta dignidade. Sabemos que nossos costumes mais íntimos e nem tão nobres, foram alardeados e exagerados pelo povo em geral, sendo que administramos muito bem, tais “intrigas da oposição”. Mencionar costumes culturais que incluem arrotos sonoros, flatos quase musicais, ruído de chupar sopa, e um elenco de palavrões suficiente para suprir as lacunas de clarificação da língua portuguesa, certamente não é propriamente algo com que pudéssemos concordar. Dizem até, as más línguas somente, que nosso biótipo geral não é nenhum paradigma atual de beleza, e que por sofrermos de apneia ao dormir, roncamos, mais uma vez, como porcos... Inverdades, naturalmente.

Tenho consciência que à insignificância aqui publicada não caiba nenhum valor literário, mas fi-la para registrar as marcas desse meu coração, aliás, já safenado, que é repleto de respeito e amor ao próximo, ainda que fisicamente não tão próximo. Aponho também neste relato que faço para os meus, o prazer que sinto ao constatar minhas origens, pois do Biase (aquele que se casou com a Ana Rosa ) ao Lucas, (bisavô e filho mais jovem, respectivamente), somos todos italianos, ainda que nossa maioria tenha nascido aqui e paradoxalmente, nunca tenhamos estado lá.

É por isso que "nóis" tomamos "um chops" e comemos "dois pastel".

“Quando surge o Alviverde imponente...”

*Sbruffàta = Borrifar, expelir pela boca (Dic. Italiano / Português João Amêndola – Ed. Hemus)

Claudio Fittipaldi – Dezembro de 1997

revisões: Maio 2003 – Julho 2015

Claudio Fittipaldi
Enviado por Claudio Fittipaldi em 30/07/2015
Reeditado em 07/09/2015
Código do texto: T5329311
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