A mulher que derrotou o machismo

"A flor que desabrocha na adversidade é a mais bela flor que existe."
(adágio chinês)



Resenha de "Mulan" - produção dos Estúdios Disney (Walt Disney Pictures), EUA, 1998. Produção de Pam Coats. Direção de Tony Bancroft e Barry Cook. Roteiro de Robert D. San Souci (história), Rita Hsias, Chris Sanders, Philip La Zebnik, Raymond Singer, Eugenio Bostwick-Singer. Música: Jerry Goldsmith. Canções: Matthew Wilder e David Zippel.
Vozes: Ming-Na (Mulan), Eddie Murphy (Mushu), B.D. Wong (Capitão Li Chang), Lea Salonga (Mulan, nas canções), Donny Osmond (Lee Shang, canções), Miguel Ferrer (Shan-Yu), Harvey Fierstein (Yao), Jackie Chan (Shan-Yu, em mandarim), Gedde Watemabe (Ling), Jerry Tondo (Chién-Po), Soon-Tek Oh (Fa Zhu), Freda Foh Shen (Fa Lee), June Forey (Avó Hua, diálogos), Marni Nixon (Avó Hua, canções), James Hong (Chi Fu), Pat Morita (Imperador), James Shigeta (General Lee), George Takei.

Originalmente, Mulan é uma personagem lendária que teria existido na China no século V da nossa era e é cantada em poemas épicos daquele país. Reconhecida como heroína nacional, Fa Mulan (ou Hua Mulan) ganhou da Disney, em 1998, esta versão animada que a popularizou no Ocidente e levou quatro anos em produção.
A equipe da produtora Pam Coats (Pam provavelmente é diminutivo de Pamela) esteve na China e visitou a Grande Muralha, que é um elemento importante da lenda.
Invasores mongóis (chamados de hunos no filme; segundo a Wikipedia seriam os xiongnu) ultrapassaram a muralha e ameaçam o Império Chinês. O Imperador (cujo nome não é revelado), para reforçar o exército diante da ameaça, resolve convocar novos soldados, ordenando que cada família forneça um homem. Ele sabe que os mongóis são hordas bárbaras e que seu atual líder, Shan-Yu, é cruel e perigoso.
Shan-Yu é, aliás, um vilão perfeito e assustador: sinistro, mau, corpulento e de porte gigantesco, ele odeia o soberano da China e deseja subjugar aquele povo. Contra ele é mobilizado o General Li cujo filho, o Capitão Li Shang, irá receber e treinar os novos recrutas.
Enquanto isso, Mulan, jovem com uns 18 anos presumíveis, mora com o pai, a mãe e a avó, e não se sente muito inclinada para o casamento para o qual é treinada. Parece-lhe que o seu destino não pode ser uma coisa comum. Ela tem, porém, um grande amor para com a família, inclusive o pai, homem estropiado, que anda de muletas e já serviu ao exército no passado.
Quando chega a convocação, porém, Fa Zhu larga a muleta e vai treinar com a velha espada, disposto a ir para a guerra "pela honra da família". Numa sociedade engessada por tradições que colocam as mulheres em plano secundário Zhu considera que não tem outra opção, mesmo caindo, mesmo andando com dificuldade. Mulan tenta convencê-lo a não ir, só para receber uma reprimenda.
Sabendo que o pai iria partir para a morte inevitável no dia seguinte, Mulan toma a resolução heróica e generosa: na calada da noite ela se veste de homem, corta os cabelos, pega a espada e a armadura do pai, e a carta de convocação, monta em seu cavalo e parte...
Assim, a garota vai para a guerra no lugar do pai.
Começa aí a extraordinária jornada de Mulan, que vai ao encontro do seu destino brilhante: será um dia reconhecida como heroína da nação, reverenciada pelo próprio imperador, aclamada pelo povo e lembrada por todas as gerações futuras. Porém, tudo ela fará sendo humilde e simples, movida por motivações nobres e generosas: honrar o pai, a quem ama profundamente; servir à China; defender o Imperador.
Mesmo com o contraponto humorístico do dragãozinho Mushu, ligado aos antepassados e que procura ajudar secretamente a jovem guerreira, "Mulan" tem uma linha principal muito profunda. No início os esforços desajeitados da moça em se passar por um homem durão resultam quase em desastre. Aos poucos ela pega o jeito e vai se tornando uma excelente guerreira, impondo-se aos companheiros de tropa. Ao mesmo tempo sente-se enamorada pelo Capitão Shang, homem rígido mas que procura ser justo.
A comicidade dá lugar a uma grande dramaticidade a partir da descoberta horripilante de toda uma companhia dizimada pelos tártaros, inclusive o General Li, pai do Capitão Shang. A sequência da avalanche de neve, que Mulan provoca e que sepulta a maior parte das hordas invasoras, longa e elaborada, é sensacional e antecede a batalha decisiva já na capital do Império.
Os roteiristas de "Mulan" conseguiram amarrar muito bem os acontecimentos e levá-los à conclusão lógica e sábia, sobretudo na maneira como são dispostos os acontecimentos-chave. A figura ominosa de Shan-Yu - tipo perfeito do conquistador bárbaro e desprovido de piedade - já muito bem delineada no pórtico da história - cresce de importância à proporção que se aproxima o final do drama. A luta corpo-a-corpo entre Li Shang e Shan-Yu é sensacional; entretanto, mesmo sendo um "expert" em artes marciais, Shang acaba sendo derrotado pelo tamanho gigantesco e potência física do arquivilão e é posto fora de combate. Shan-Yu, porém, não consegue matar o capitão, porque Mulan surge a tempo de defender o seu amado. O combate mortal entre Mulan e Shan-Yu é o clímax desta saga grandiosa.
Há em toda a obra um grande equilíbrio na maneira como a heroína é mostrada. Mulan não tem antecedentes que apontem a grandeza do seu destino; ela é apenas uma garota que entende vagamente não ter sido feita para uma existência banal, conforme as rígidas limitações impostas às mulheres em sua época. Seus grandes atributos começam a se manifestar quando do heróico gesto de seguir para a guerra no lugar do pai. Desajeitada a princípio, ela irá evoluir e consolidar a confiança em si própria. A nobreza do caráter de Mulan perpassa o filme inteiro. E o duelo final com Shan-Yu... isto é algo que só mesmo assistindo.


Imagem do filme: diante da imensa multidão Mulan é honrada como heroína nacional pelo Imperador da China, que declara: "A flor que desabrocha na adversidade é a mais bela flor que existe."