NERUDA FUGITIVO

O RIO QUE NASCE DAS CORDILHEIRAS

Luciana Pimenta

Fugir é distanciar-se de uma situação de perigo. “Viver é negócio muito perigoso”, pressagiou Guimarães Rosa, nas páginas do eterno Grande Sertão Veredas. Podemos fugir da vida? Fugir da vida era algo impensável no mundo antigo, no qual o homem estava condenado a cumprir o seu destino. É o que se vê, por exemplo, no drama de Ésquilo, cujo problema não está no homem, mas no fato de o homem ser portador de um destino. O problema é o destino, o que cobre a obra do mestre supremo da tragédia de uma atmosfera carregada de tormenta, desde o primeiro verso. Assim se deu com Édipo, sob o anúncio de tempestades e cataclismos, a quem o destino reservou a autoria da morte do próprio pai, para além de todas as tentativas de escapar de sua consumação.

O homem moderno, por sua vez, que assistiu à morte da categoria do destino - incrustada na era da razão objetiva, cosmológica -, face ao soerguimento da razão subjetiva – o cogito cartesiano, a autonomia kantiana – é senhor do seu domínio, e, por isso, autor de suas próprias escolhas, o que o autoriza uma tomada de decisão pela fuga, sem que a fuga seja a aniquilação da sua própria existência. Nesse ambiente, a fuga é, muitas vezes, o sentido mesmo do existir, no instante em que se vive e, para além do instante, do “é” no qual se vive, a imortalidade da própria vida. A própria escrita, a literatura em especial, moderna que é, não seria uma fuga dos ditames da própria modernidade? Assim é que se põe a fuga em Neruda-Fugitivo, um filme de Manuel Basoalto (Chile, 2014, 97 min): não uma fuga da vida, mas uma fuga para a vida, uma vida que se eternizou porque não era, no finito, apenas do homem e poeta Pablo Neruda, mas, na infinitude, também da política e da poesia - “Poesia, política e vida são a mesma coisa”, ouvi-se do poeta, nas linhas da película.

A vida do enredo nasce para nós, expectadores, a partir de lembranças acessadas ao longo do discurso de agradecimento de Neruda (José Secall), quando do recebimento do Prêmio Novel de Literatura, em 1971. A memória busca o cenário do Chile de 1948, quando Neruda, então Senador da República, apresenta ao Congresso sua oposição à política opressiva do Presidente Gabriel González Videla (Max Corvalan) e lança-lhe o “Eu acuso”, no contexto da publicação da Lei da Defesa da Democracia, a mesma que impôs aos jornais o anúncio “Comunista fora da lei”, coincidente, não por acaso, com o da inauguração de “Pisagua”, o primeiro campo de prisioneiros políticos da história do Chile, em plena Guerra Fria. Tudo se passava ao avesso da liberdade sonhada pelo poeta. E como o avesso do que se veste é o que toca a pele, Neruda tornou-se perseguido político do governo de Videla e, na duração de toda a película, um foragido do seu país.

Fuga segue-se de fuga, em meses de transposição de obstáculos que são, no quase melhor do filme, um belo espetáculo da natureza, mediado pela ressurreição imagética do menino e adolescente Neftalí Ricardo Reyes Basoalto - o verdadeiro nome do poeta – e seu despertar para a poesia: rios em fúria, penhascos em pôr do sol, fogo em crepitação, alumiando escuridão de noite sem barulho de cidade, aranha roçando a pele, no espanto da descoberta, e o branquíssimo devir da neve da Cordilheira dos Andes, a ser vencida rumo à Argentina. De fuga em fuga, uma acolhida... um deixar entrar... um abraço. Neruda-Fugitivo é sem qualquer visão oblíqua, também uma narrativa sobre a hospitalidade, a acolhida do outro, do humano, cuja causa primeira, a liberdade – liberdade de ser, sentir e dizer – revela o silêncio que não delata, disposto a morrer pela vida que se acolhe, vida em colheita, como flor buscada no jardim, que não é só perfume e beleza, mas o solo no qual as raízes foram fincadas, as mãos que plantaram, a água que a irrigou, o vento e a brisa leves que ensinaram as pétalas a se abrirem.

O melhor do filme, entretanto, está, sem qualquer contradição, naquilo do que não se pode fugir: o amor. Quando se trata do amor, fugir é tomar o caminho do impossível, quer falemos do amor creditado à regência do cosmos, à tragédia do destino que se manifesta maior e mais poderosa que o amante, como na belíssima canção de Chico Buarque, Dueto: “Consta nos astros, nos signos, nos búzios, eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás, serás o meu amor, serás a minha paz”; quer falemos do amor no vulcão interno do amante, nas entranhas do seu ser, na partitura da sua alma... o amor que está dentro, e não fora, e que, por isso, em qualquer tentativa de fuga se faz acompanhar, passo a passo, por aquele de quem se foge. Não há fuga do amor. O amor segue com a fuga.

Quando Neruda diz a Delia (Paulina Harrington) que o partido determinara que partisse sozinho, Neruda não estava só. Fugiu acompanhado do amor – ele que, é de se lembrar, fora um homem de muitos amores – e repleto de poesia, o que lhe rendeu a escritura, durante a fuga, do seu memorável livro Canto Geral, entoado, em fragmentos, em diversas passagens do filme. Neruda-Futigivo a despeito de eventual crítica que lhe façam, sobretudo aqueles a quem a poesia enfadonha, é, pois, um canto poético que convida a cantar com os poetas em geral, Rimbaud, Rilke, Vinícius, Bernardo Soares e outros mais, poetas da natureza, do amor, do desassossego e todos aqueles que são, na verdade da poesia, amantes da travessia das palavras e de todas as cordilheiras que nos desafiam na experiência da liberdade e do amor. O que nasce das Cordilheiras é o rio, rio palavra, rio mesmo, a água para a sede do poeta, o próprio poeta...o rio não sabe que se chama rio...não é senão um vago fio que nasceu de sua neve...é um pobre relâmpago perdido que começa a cortar com suas centelhas a pedra do planeta.. as plantas desta pedra endereçam contra ele os seus alfinetes..porém resiste e segue, diminuto...traspassando um umbral ferruginoso de um noite vulcânica e verrumando, roendo, surgindo intacto e duro como espada, convertido em estrela contra o quartzo, lento mais tarde, aberto à umidade, rio finalmente, constante e abundante. (Fragmentos do poema O rio que nasce das cordilheiras, em Memorial de Isla Negra).