O ÚLTIMO POEMA DO RINOCERONTE

A DURAÇÃO, NA DURA PELE DO RINOCERONTE

Luciana Pimenta

Um ponto de vista. É sempre a partir dele que falamos. Ele é o rasgo que nosso olhar faz sobre o múltiplo das possibilidades, quando significantes vestem significados a partir de nossas escolhas interpretativas, mais ou menos conscientes. O Último Poema do Rinoceronte é, sem dúvida, um convite à diversidade de olhares. Tempo, tragédia, amor, (in) justiça, liberdade, pena e perdão são alguns dos muitos temas para uma possível reflexão a partir do filme de Bahman Ghobadi (1h44m, 2012, Turquia).

Marcado por uma belíssima fotografia, capaz de comover até o expectador desatento, o pano de fundo histórico inaugural é o da Revolução Islâmica do Irã, na década de 70, quando o poeta Sahel (Behrouz Vossoughi) e de sua esposa Mina (Monica Bellucci) são injustamente encarcerados, ele acusado de escrever poemas políticos; ela, de lhe ser cúmplice – embora coabite a cena das razões para a prisão a paixão de um empregado do casal (motorista) por Mina, que vive uma mudança de status a partir da Revolução.

Condenados a 30 e 10 anos de prisão, respectivamente, quando Sahel sai da prisão é absolutamente movido pelo desejo de reencontrar Mina, que se mudara para a Turquia, quando recebera a informação de que seu marido havia morrido. O pano de fundo, agora, não mais histórico, mas psicológico, são os poemas de Sahel, do livro de sua autoria, O Último Poema do Rinoceronte, recitados ao longo da trama, no feminino da voz, a partir de onde se vê e se sente a existência de vidas que se movimentam à margem de si mesmas. Poemas que se alternam com o silêncio de Sahel.

Esse deslocamento de horizontes, ao longo da trama, é um convite para pensar o tempo, ao menos em duas de suas dimensões, a saber, o tempo objetivo – histórico – e o tempo subjetivo – psicológico – vale dizer, o tempo fora e o tempo dentro do sujeito. O tempo objetivo, entretanto, fora do presente, que é também o puro instante que se esvai, é um não-ser, na medida em que o passado, como bem ressaltou Santo Agostinho, já deixou de ser, assim como o futuro não é. O tempo no qual nos instalamos para falar do tempo é, pois, sempre o presente, quer falemos sobre o próprio presente, quer falemos sobre o passado ou especulemos sobre o futuro.

O tempo presente, 30 anos esvaziado do presente de outrora, é a duração na qual se instala o passado de Sahel e Mina. Vidas que duram no tempo, alongadas na tragédia de existirem fora da justiça, no impossível da justiça; na sobrevida de um amor ferido; no eco de uma voz perdida e na memória da escritura, revivida na pele das personagens. Ela, a pele, a superfície rasa sobre a qual o tempo tatua a vida e, ao mesmo tempo, a fenda para as profundezas, os poros para o sal, a sede do arrepio que mergulha nas entranhas e nos abismos da alma.

O silêncio de Sahel, por sua vez, alternado ao poema, é o silêncio de quem, ao olhar no espelho, enxerga o próprio espelho e não a si mesmo. Silêncio de uma vida silenciada pelo assombro, pela escuridão de rostos, direitos e sonhos encobertos. Silêncio do impronunciável. Silêncio que, fora de toda cronologia, antecede o poema.

No voo onírico – já que, como lembra Deleuze, o inconsciente psicológico representa o movimento da lembrança em vias de atualizar-se – o rinoceronte é o aviso de uma perda ou de grandes dificuldades a serem enfrentadas na vida em vigília. É, ao mesmo tempo, a sugestão de que se deva seguir em frente, em direção aos objetivos, independentemente dos problemas que se tenha que enfrentar. A simbologia do rinoceronte pode revelar, então, a própria vida de Sahel, perdida de si, tanto quanto a árdua vigília, na prisão e, ainda, os obsessivos e persistentes passos dados, fora dela, para rever Mina.

O rinoceronte é, ainda, um animal selvagem, possante, de pele dura e espessa. O rinoceronte é Sahel esvaziado de humanidade, violentado em seus direitos, devolvido ao silêncio selvagem que antecede o humano – porque a prisão, sobretudo longos e brutos 30 anos de prisão, promove essa desumanização cujo perdão é impossível. A pele dura e espessa do Rinoceronte é a crosta que encobre o vazio de Sahel, seu próprio fantasma, que não consegue se mostrar a Mina.

“Apenas aquele que vive à margem criará uma terra”, diz um verso d’O Último Poema do Rinoceronte. À margem é o lugar de onde Sahel, que não se vê, enxerga Mina, depois que sai da prisão. À margem das águas, o espelho que não reflete senão o tempo que há de se consumar, em suas próprias profundezas. E o ponto de contato entre o passado dirigido ao presente, afora o vazio, são os versos que levam Mina ao barco que deixa as águas de Istambul. O último verso do Último Poema do Rinoceronte seria a terra da liberdade?