O barbeiro e o ditador

O BARBEIRO E O DITADOR
Miguel Carqueija

Resenha do filme “O grande ditador” (The great dictator) – Estados Unidos, Roy Export S.A.S., 1940. Produção, direção, e roteiro: Charles Chaplin. Produtor associado: Carter De Haven. Música: Charles Chaplin e Meredith Wilson. Direção de arte: J. Russell Spencer. Fotografia: Karl Struss, Roland Totheroh. Montagem: Willard Nico. Elenco: Charles Chaplin Adenoid Hynkel e um barbeiro judeu sem nome), Paulette Goddard (Hannah), Jack Oakie (Benzino Napaloni), Reginald Gardiner Comandante Schultz), Henry Daniell Garbitsch), Billy Gilbert (Marechal Herring), Maurice Moscovitch (Sr. Jaeckel), Emma Dunn (Sra. Jaeckel), Bernard Gorcey (Sr. Mann), Paul Weigel (Sr. Agar), Grace Hayle (Madame Napaloni), Carter De Haven (Spook), Chester Conklin (um freguês do barbeiro).

Este é sem dúvida um grande filme, com cenas deliciosas e engraçadíssimas apesar do pano de fundo dramático. Na época em que foi concebido originalmente o nazismo estava em ascenção da Alemanha porém a guerra na Europa ainda não havia começado. Já havia perseguição contra judeus. Mussolini ocupava o poder na Itália desde 1922. Quando enfim “The great dictator” foi finalizado e lançado em fins de 1940, a França já estava ocupada, a Inglaterra ameaçada, mas os Estados Unidos não haviam entrado ainda no conflito.
Chaplin teve um gesto de coragem, como inglês radicado nos EUA, de lançar o seu libelo em forma de comédia para alertar o mundo sobre o fenômeno nazista. Para tanto ele personificou genialmente o ditador Adolf Hitler, tornado aqui Adenoid Hynkel. O curioso é que, segundo consta, o próprio Hitler havia copiado o bigodinho do comediante. Agora, vingando-se de certa forma, Chaplin assumiu a máscara de Hitler, numa imitação escrachada porém perfeita, já magistralmente retratada numa das cenas iniciais, onde o ditador da fictícia nação Tomânia aparece discursando histericamente perante uma multidão hipnotizada por sua retórica (os aplausos entusiásticos cessavam a um simples gesto seu) e sendo transmitido pelo rádio ao mundo inteiro. Só mesmo assistindo a pantomina de Chaplin para alcançar a graça da cena.
Porém Chaplin interpreta também um humilde barbeiro judeu, cujo nome sequer é mencionado, mas que não deixa de ser até certo ponto uma última manifestação de Carlitos, o vagabundo que emocionou as platéias mundiais desde 1914. O barbeiro apresenta alguns trejeitos e maneirismos próprios de Carlitos, e quase não fala, como uma herança do cinema mudo. Ele é visto primeiro participando da Primeira Guerra, fica desmemoriado e passa anos num sanatório. Retorna ao gueto judeu sem saber das tristes novidades do país. Aos poucos fica sabendo do que está acontecendo e como a sua gente é constantemente vilipendiada por milícias nazistas. Toma-se de amores pela jovem Hannah (Paulette Goddard, na vida real então esposa de Chaplin, com ele tinha feito “Tempos modernos”). Mas a perseguição racista se intensifica, e eles são obrigados a fugir com outros moradores do gueto.
Seguindo duas tramas paralelas alterna-se a figura do ditador, sósia do barbeiro (fato que terá importância fundamental no desfecho). Algumas sequências podem ser consideradas antológicas, como aquela em que Hynkel, em devaneio megalomaníaco, executa uma lenta coreografia com o imenso globo terrestre, um balão, sonhando em ser o dono do mundo inteiro. A interação com o ditador da Bactéria (Itália) é hilariante. Eles se detestam amigavelmente. Quando o gordo e galhofeiro Benzino Napaloni visita a Tomânia, trava-se um enrustido duelo entre os dois, cada um querendo sobressair mais que o outro. Assim, quando eles vão na barbearia, ao conversarem sentados lado a lado, cada um vai erguendo a cadeira para ficar mais alto que o rival, até quase chegarem ao teto. Aliás o comediante Jack Oakie está sensacional em sua paródia de Mussolini que, como se sabe, era um verdadeiro bufão.
Entretanto o célebre discurso final é um dos melhores momentos do cinema, uma verdadeira peça literária, de grande conteúdo humanista (onde não falta uma citação do Evangelho de São Lucas). Mesmo passados tantos anos, “O grande ditador” não envelheceu e se mantem como uma das melhores comédias da história do cinema inclusive por ter mensagem, o que vem sendo por demais negligenciado em comédias mais recentes.

Rio de Janeiro, 11 de junho de 2016.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. (...)
Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós!

(trechos do discurso final de “O grande ditador”)