Os Miseráveis (1998)– Protagonista, o antagonista do antagonisa.

Adoro filmes com muitos personagens.Sejam amigos, parentes, amores, aliados, adversários, inimigos.... , tanto faz. Mas, para que os expectadores entendam como as personagens são incríveis, é necessário mostrar sua força ou sua fraqueza, seus dilemas, suas opções, suas idiossincrasias através das das ações. Para que, ao longo da trama, a personagem além de crescer puxar consigo as outras personagens é interessante que as decisões que tomem impactem nas outras personagens. Como eu disse, amo filme com muitas persoangens. Mas as vezes apenas dois são o suficiente. É o caso de 'Os Miseráveis'.

O início deste filme e ilustra como as decisões constroem os personagens, também mostra como as decisões de um personagem fazer crescer o outro personagem: Jean Valjean é um ex-detento recém saído de 19 anos de cadeia, ele dorme na calçada. Uma senhora o aborda, diz que é proibido dormir na rua e diz que ele devia pedir para dormir na casa de alguém. Ele responde que bateu em cada casa, ninguém aceitou abrigá-lo à noite. Ela aponta uma porta e diz “Você não pediu para passar a noite lá.”

Jean Valjen bate à porta. Atende um bispo idoso. Jean, “Posso passar a noite aí? Sou um bandido condenado (mostra um documento) não sei ler, mas sei o que diz este papel. Diz que sou um homem perigoso.” Para surpresa de Jean o bispo o acolhe e oferece uma sopa. Jean: “Como sabe que não vou matá-lo?”, bispo “Como VOCÊ sabe que não vou matá-lo?” Jean Viljen é jovem, alto e forte. Olha o bispo com estranhamento. O bispo continua, “Acho que devemos confiar um no outro.”

Reparem como a ação diz coisas a respeito das personagens. Jean se apresenta como uma pessoa perigosa. O que isso diz dele? Diz, claro, que ele é potencialmente perigoso. Mas também diz que é uma pessoa insegura e que está (emocionalmente) na defensiva. Se estivesse premeditado algum crime ele não teria se anunciado como uma ameaça. Já o o bispo se revela um verdadeiro cristão, alguém que verdadeiramente vive o que sua religião acredita. Percebem como um personagem faz o outro crescer? Se tivesse meramente acolhido Jean – um mendigo – o bispo já estaria mostrando seus valores. Mas ao acolher uma pessoa que se anuncia como perigosa o bispo cresce como personagem. Um personagem faz o outro crescer.

À noite Jean se levanta e rouba a prataria da casa. O bispo acorda, vai até ele e o olha decepcionado. Jean dá uma porrada no bispo e foge de casa com o fruto de seu roubo. No dia seguinte a governanta que vive com o bispo fica se queixando com o bispo, mas – a despeito do assalto – ele não parece arrependido até que chega a polícia. Eles capturaram Jean Valjen. Policial, “Nós o prendemos, você acredita que ele disse que você lhe deu toda a prataria?”. Bispo, “Sim, é verdade. Eu lhe dei! Mas por que ele não levou os candelabros de prata! Obrigado por terem o trazido de volta! Agora podem soltá-lo.” Atônitos os policiais soltam Jean e vão embora. O bispo fica encarando Jean e diz, “Com esta prataria comprei sua alma. Agora você é um homem de Deus. Nunca se esqueça de que você prometeu ser um homem novo.”

Percebem como um personagem cresce com o outro na medida em que as decisões impactam o outro? Nas poucas horas em que se conheceram o bispo já havia se revelado uma pessoa acolhedora e generosa, mesmo com o bandido que era Jean. Mesmo assim Jean teve coragem de bater no bispo e lhe levar a prataria. A ação de roubar e bater em alguém já é suficiente para termos raiva do personagem. Mas a indignação é muito maior porque ele faz isto com o acolhedor bispo! Jean é trazido de volta preso pelos policiais. O que faz o bispo? Finge serem verdades as mentiras que o bispo contou, deste modo garantindo a liberdade de Jean. O personagem do bispo cresce com suas decisões, mas ao agir em relação a outro personagem que também se constrói em suas decisões cria uma sinergia: o crescimento de um personagem puxa o outro.

O próximo personagem a ser apresentado é o antagonista. O antagonista não precisa ser uma pessoa, pode ser uma entidade, um ser, um partido político, um sentimento, um grupo de pessoas. Antagonista é o que está em maior oposição ao protagonista. E quem é o protagonista? É quem carrega uma agonia, algo mal resolvido. Protagonista é aquela cuja a jornada nós, os expectadores, acompanharemos. Nós torcemos por ela, simpatizamos por ela na medida em que vemos como sua jornada a envolve (e como ela constrói os caminhos de sua própria jornada).

Anos depois um policial de escalão mais alto (inspetor Javert) chega a uma pequena cidade e se apresenta a seu subordinado. “Sou o novo inspetor de polícia enviado por Paris.” Javert entrega os documentos ao policial que o recebe. “Deve estar tudo em ordem”, responde pegando os documentos. “Eu insisto, siga os procedimentos.” O policial então examina os documentos que o inspetor trouxe. Gente, para que existem estes documentos? Para dizer que o inspetor é quem manda. Se o subordinado aceita isto, por que o inspetor ordena que ele examine o documento? Esta cena serve para uma coisa: dizer quem é o inspetor. As ações dizem quem ele é, alguém com um forte senço de formalidade e de legalidade. A lei deve ser seguida.

O policial subordinado o leva para que conheça a cidade. O inspetor Javert fica bem impressionado com a cidade. O subordinado diz que o principal responsável pelas condições é o dono da fábrica de tijolos. É um ex operário que comprou a fábrica por uma pechincha quando ela foi a falência. Ele revitalizou a fábrica e a administra muito bem. Por exemplo, para evitar abusos contra as mulheres ele separou a parte em que os homens e em que as mulheres trabalham. Só tem uma coisa, o prefeito é excêntrico. Por exemplo, ele não queria ser prefeito, só aceitou o cargo após muita insistência dos fundadores da cidade. Adivinhem quem é o prefeito? Exatamente, é o ex-condenado e o protagonista da trama, Jean Valjen. Ao serem apresentados Jean Valjen se mostra realmente esquisito. É que ele lembrou que, à época em que era preso em regime de trabalhos forçados Javert (que à época ainda não era inspetor) trabalhava na prisão. Uma vez que Jean Valjen saiu de sua condicional e usa uma identidade diferente o inspetor Jean Valjen é uma grande ameaça.

O inspetor Javert é um intransigente seguidor das leis. Em certo sentido é um excelente funcionário. Seu pai era um ladrão, sua mãe uma prostituta. Talvez você espere que por isto ele seja mais compreensivo com as pessoas que infringiam as leis. O que ocorre é justamente o contrário. Ao ver uma situação de abuso contra uma prostituta ele encerra a confusão, mas também bate na prostituta e a prende. O prefeito fica sabendo, vai até a prisão e diz que estava próximo e os depoimentos das pessoas diziam que a culpa da confusão foi toda dos homens que abusavam da prostituta. Por isto ele a solta.

A partir deste conflito em torno da prisão da prostituta um personagem se torna o antagonista do outro. Jean Valjen é o protagonista do filme, mas o inspetor Javert também tem sua própria jornada a seguir e a oposição a ela é feita pelo (agora prefeito) Jean Valjen. Como inimigos um personagem cresce a partir de suas próprias decisões, mas também a partir das decisões do outro. Ao final de ambas as jornadas se tornam dois personagens gigantes. São muito diferentes em seus valores mas muito parecidos na intransigência em segui-los. Isto torna muito fácil a comparação entre eles, mostra (por contraste) quem eles são.

Jean Valjen, a partir do encontro com o bispo, renasce. Se torna uma pessoa ética. Justamente por ter vivido os horrores do mundo da marginalidade sabe o que uma pessoa pode fazer se exposta a situações extremas. Jean Valjen se torna uma pessoa compreensiva, um verdadeiro cristão. O inspetor Javert, ao contrário, se define em negação aos seus pais. Ambos eram criminosos. Javert tenta viver a vida sem quebrar uma única regra. Como ele diz, “As pessoas ou são seguidoras da lei ou são infratoras. As ciência prova que as pessoas não mudam.” Portanto o conflito se dá entre seguir os princípios da ética cristã (mesmo que infringindo a lei) e seguir rigorosamente a lei (mesmo que ignorando a ética). Jean Valjen incorporando a ética, o inspetor Javert incorportando as leis. Cada um protagonista de sua própria jornada, cada um antagonista do outro.