A CONFISSÃO DE LÚCIO

     Narrada em primeira pessoa, por Lúcio, um escritor que faz a sua confissão, esta obra de Mário de Sá-Carneiro caracteriza-se pelo predomínio do “inverossímil” sobre o “real”. Por isso, o personagem-narrador procura sempre demonstrar o contrário, isto é, apresentar apenas os fatos a fim de obter a credibilidade do leitor, de convencê-lo da inocência.
      Lúcio repete, intensifica, torna redundante o caráter documental de sua confissão _ a fidelidade aos fatos que promete ao leitor. Ao mesmo tempo, demonstra saber a incoerência, a falta de lucidez do que contará.
      Esse movimento de reiterar a verossimilhança da história pressupondo a sua inverossimilhança será constante na novela. Quanto mais perturbadora, obscura e mesmo confusa ela apareça, mais estará o personagem-narrador preocupado em demonstrar-lhe a verdade.
      Temos, assim, um contraponto entre a realidade e a irrealidade que se manterá permanentemente, chegando a constituir um dos temas centrais da história, diante da qual Lúcio se sente confuso e sabe que não pode explicar-se: se o fizer, endoidece...
      A confusão do narrador é outro elemento importante do seu foco narrativo. No prólogo, por exemplo, ele se contradiz: afirma querer provar a sua inocência, depois de dez anos de prisão por um crime que não cometera, e afirma também que “quem quiser, tire suas conclusões" ...
      Este tipo de oscilação entre verdade e mentira _ qual afirmação é mais verdadeira, a que pretende dar provas de inocência ou a que parece não se importar com conclusões do leitor? _ soma-se à oscilação entre realidade e irrealidade, verossimilhança e inverossimilhança, que comentamos e que caracterizará o texto, como veremos.
      Diante dela, ou melhor, diante de um personagem-narrador tão conflituoso, só resta seguir a sua indicação: perceber bem os fatos, os detalhes e os pormenores, para conseguir entender a novela.
     Composta de oito capítulos, A Confissão de Lúcio mostra desde o prólogo um personagem-narrador problemático: após dez anos de prisão, Lúcio resolve contar a história de sua inocência, sem esperar com isso qualquer tipo de reabilitação.
      A passividade com que se comporta perante o tribunal soma-se à impressão de serenidade, de “desligamento” quanto à vida e ao futuro, que parece caracterizá-lo. Ele explica este comportamento revelando já ter vivido um momento que o marcou para sempre, “já ter vibrado o máximo das sensações íntimas”, sem nada mais esperar, a não ser relatar a história de um provável triângulo amoroso, da qual saíra como assassino.
      Cria-se, assim, um clima de mistério em relação ao que será revelado, clima que se mantém e vai-se intensificando ao longo da história até o seu clímax, o momento do crime...
      Lúcio é um escritor que mora em Paris, onde foi para estudar Direito, mas não estuda. Lá conhece Ricardo de Loureiro, poeta e também português. Os dois, no dia em que se encontram, vão a uma festa, promovidos por uma milionária americana, que constitui o episódio fundamental do enredo: para provar que a voluptuosidade (a volúpia das sensações) é uma arte, a milionária decora o seu palácio com aromas, luzes, cores, sons que o transformam num cenário fantasticamente sublime e sensual.
      A linguagem do livro é predominantemente simbolista, como de resto a sua aura de mistério e de busca de transcendência através de sensações, de um mundo de cores, de sons, de aromas, de formas no qual o ouro, os jorros de luz são expressões de sensualidade e misticismo, brilho e penumbra.
      Um show de dançarinos, que culmina com a apresentação onírica da nudez da americana, dançando e se confundindo com o fogo, a água e a embriaguez daquele cenário, convence os convidados, extasiados, de que se pode sentir a voluptuosidade espiritualmente, isto é, como se fosse uma obra de arte.
      Sob esta espécie de magia, aprofundam-se as relações entre Lúcio e Ricardo, cuja afinidade ao mesmo tempo é negada por Lúcio e afirmada pela aproximidade de ambos, pela admiração que Lúcio sente por Ricardo.
      Ricardo desnuda-lhe os desejos mais íntimos, as mais estranhas obsessões, dentre as quais ressalta-se a inexperiência amorosa, a contradição entre querer viver a realidade e não pertencer a ela, por ser artista, a tendência de transformar todas as coisas em literatura e, ainda, a necessidade de experimentar concretamente, fisicamente, os afetos, isto é, de convertê-los em ternuras... Após esta última revelação, que deixa Lúcio surpreso e fascinado, Ricardo volta a Lisboa, onde teria se casado.
      Um ano depois da partida de Ricardo, Lúcio também retorna, passando a conviver assiduamente com o amigo, a esposa Marta _ bela e misteriosa _ e um grupo de artistas, que frequenta a casa de Ricardo e Marta.
      Começa então o delírio de Lúcio, a confusão entre sonho e realidade e a intensificação do mistério e do suspense da história: apaixona-se por Marta, com quem tem uma relação ao mesmo tempo repleta de desejo e repugnância, de realidade e irrealidade, de mistério, na medida em que esta mulher confunde-se com Ricardo nos gostos, nas opiniões, no beijo cujo sabor é o mesmo, como percebe Lúcio ao ser beijado por Ricardo, num momento de brincadeira, devido à insistência de Marta.
      A descoberta da traição de Marta com o russo Sérgio Warginsky _ pertencente ao grupo de artistas, a quem Ricardo estimulava muito e Lúcio detestava _ leva ao máximo o delírio de Lúcio, que parte para Paris, em fuga desesperada. Lá, é encontrado por um empresário que pretende encenar em Lisboa sua nova peça _ Chama _ cujo último ato o escritor subitamente resolve alterar, voltando para Lisboa, onde, entretanto, não queria estar. O empresário e os atores discordam, acham absurda a alteração, que inviabiliza a apresentação da peça. Lúcio então a atira ao fogo.
      Encontra-se depois com Ricardo, confessando-lhe a aversão que lhe causou o procedimento do amigo, que parecia incentivar Marta e seus amantes, como dizia Lúcio.
      Ricardo, comovido, revela a Lúcio que não só incentivava, mas apontava a Marta quem amar, pois ela fora criada pelo artista para esta finalidade: transformar os afetos em ternura, em especial o afeto que sentia por Lúcio, o mais importante de todos para ele.
      Lúcio, fora de si, acompanha Ricardo e a esposa deste, e lá ocorre o desfecho dessa estranha história: Ricardo atira em Marta, destruindo-a pela incompreensão do amigo, que, estarrecido, a vê desaparecer e reconhece o corpo de Ricardo no chão...
      Como se percebe neste desfecho surpreendente, Marta não tem realidade “de fato”, mas realidade artística: Ricardo a cria para satisfazer os seus desejos sexuais em relação a Lúcio, o que nos faz evocar o episódio da festa da americana, no qual ela demonstra a possibilidade de sentir espiritualmente a volúpia, transformando-a em obra de arte... De que maneira, entretanto, ocorre esta confusão entre a “realidade de fato” e “realidade artística”, na novela? Como e por que elas parecem se inverter? A voluptuosidade, isto é, o prazer dos sentidos virar arte e Marta _ uma criação _ virar realidade são dois fenômenos inverossímeis, mas não impossíveis de entender...
      O mesmo Lúcio, que se espanta com a irrealidade de Marta, parece perceber, subterraneamente, os motivos de tal irrealidade.
      Desde o prólogo da narração, ele se divide em duas posições que convivem através de indícios, de detalhes que nos vão mostrando como que um desdobramento de personalidade: de um lado, o Lúcio “verossímil”, que afirma ser muito diferente de Ricardo e detestar os vícios, as perversidades eróticas da milionária americana, e o egocentrismo de Gervásio Vila-Nova, adepto de vanguardismo que ridiculariza (o “selvagismo”).
      De outro lado, o Lúcio “inverossímil”, cúmplice de Ricardo, da milionária americana e de Gervásio Vila-Nova, o Lúcio que amou a si mesmo através de     Ricardo, aceitando o seu jogo, invertendo, também fantasia e realidade: “Pareceu-me vagamente que eu era o meu drama _ A coisa artificial _ e o meu drama a realidade”.
       Deste ponto de vista, podemos imaginar que admiração de Ricardo por Lúcio seja uma admiração narcisista, isto é, que Ricardo seja uma projeção da imaginação de Lúcio, um alter ego, assim como Marta seria o seu “duplo” feminino.
      O homicídio foi um duplo suicídio: o suicídio de Ricardo, ao disparar o revólver sobre Marta, e o suicídio lento de Lúcio
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Mário de Sá-Carneiro.
Nasceu em Lisboa, em 19 de maio de 1890;
suicidou-se em Paris, em 26 de abril de 1916.
Publicou os seguintes livros:
Amizade, peça em 3 atos (com Tomás Cabreira Junior), 1912;
Princípios
, novelas, 1912;
Dispersão, 12 poemas, 1914:
A  Confissão de Lúcio, narrativa, 1914:
Céu em Fogo, novelas, 1915.
LordHermilioWerther
Enviado por LordHermilioWerther em 14/01/2011
Reeditado em 14/01/2011
Código do texto: T2728279
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