Resenha do livro 'Memórias do cárcere', de Graciliano Ramos.

Título da resenha: Uma história-depoimento de uma antiga realidade brasileira.

Subtítulo: perfil com a descrição da obra ‘Memórias do cárcere’.

Livros: Memórias do cárcere (Graciliano Ramos), volumes 1 e 2 – Editora Record, 1985.

‘Memórias do cárcere’ é uma obra de Graciliano Ramos em que ele narra suas memórias de quando esteve encarcerado. Trata-se de uma obra póstuma e escrita dez anos após Graciliano ser liberto, não possui seu último capítulo, pois o autor faleceu antes de completar sua obra.

A obra que foi lida foi produzida em dois volumes pela Editora Record em sua 21ª edição. No primeiro volume encontram-se a Primeira Parte (Viagens) e a Segunda Parte (Pavilhão dos Primários), cada parte com determinados números de capítulos. No segundo volume encontram-se a Terceira Parte (Colônia Correcional) e a Quarta Parte (Casa de Correção), também cada uma com determinado número de capítulos, e junto com uma explicação final escrita por Ricardo Ramos, pois, como já mencionado, Graciliano faleceu antes de completar sua obra.

“Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão - e provavelmente isto será publicação póstuma como convém a um livro de memórias.”

O primeiro capítulo do livro inicia-se uma explicação do que Graciliano escrevera nas páginas da obra que se segue. Ele explica, de certa forma, como escreverá o livro, mas também descreve um pouco como é a escrita dos demais autores de sua época. No dia 3 de março de 1936, dias depois de ter sido demitido da Secretaria de Educação, é preso sob a acusação de ligação com o Partido Comunista. A acusação é falsa, pois Graciliano entraria para o PCB em 1945. Mesmo sem acusação formal ou julgamento, é levado para Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde permanece encarcerado até 1937. Dessa experiência de 10 meses encarcerado, nasceu “Memórias do cárcere’, obra-depoimento que ultrapassa os limites do pessoal para se tornar um importante depoimento da realidade brasileira da época e uma denúncia do atraso cultural e do autoritarismo da era Vargas.

“Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos”.

Graciliano Ramos explica como se decidiu, depois das dúvidas, a escrever as suas memórias:

“Tendo exercido vários ofícios, esqueci todos, e assim posso mover-me sem nenhum constrangimento. Não me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos. Por outro lado, não me obrigo a reduzir um panorama, sujeitá-lo a dimensões regulares, atender ao paginador e ao horário do passageiro do bonde. Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essências ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente”.

Nos três primeiros parágrafos do livro ele se explica, justificando a demora de dez anos. E, depois, resolvido a escrever, sabe que sua narrativa será amarga. A sua honestidade intrínseca, entretanto, não lhe permitiu a desmandos de omitir alguns fatos. Livre em manifestar-se, despido de preocupações, e com os acontecimentos à distância, tinha responsabilidade tácitas, a que não faltaria. Escreveu, a esse respeito, com propriedade singular:

“Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”.

O capítulo 2 começa contando sobre março de 1936, quando Graciliano começa a contar que trabalhava como secretário de educação no Palácio dos Martírios, era casado com uma mulher extremamente ciumenta e que tinha filhos pequenos. A narrativa começa em 1ª pessoa, o que, a meu ver, torna o livro mais atraente. Ele conta, neste capítulo, sobre algum outro funcionário (que, por sinal, não faz nada além de se meter na vida alheia), conta também que estava cheio de obrigações e preocupações no trabalho etc. O capítulo 2 do livro entra mais na vida pessoal rotineira do autor. Porém, no início do capítulo, ele conta que insistiam em ligar para seu trabalho à sua procura, mas, para ele, não eram de cunho oficial. A partir daí, ele foi demitido e, dias depois, em sua casa, recebe a notícia que logo será preso com a acusação de comunismo. Graciliano resolve não fugir, ele decide encarar tudo. Então, em instantes, foi detido em sua casa e levado à prisão. Depois de passar por várias prisões, foi levado para Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde permaneceu encarcerado por dez meses.

Em 1936, quando esteve preso no pavilhão dos primários, na Casa de Detenção, Graciliano conheceu Vanderlino, “um homem útil”, habilidoso, capaz de esculpir peças de um jogo de xadrez depois de dividir um cabo de vassoura em 32 pedaços iguais. Criminoso comum, homem humilde, foi ele quem, mais tarde, na Colônia Correcional, apresentou um amigo a Graciliano. “Admirou-me a franqueza de Vanderlino ao dizer o nome e o ofício do personagem: -Gaúcho, ladrão, arrombador.” Gaúcho virou amigo de Graciliano, querendo aparecer em seus livros (“Eu queria que saísse o meu retrato”) e, além de personagem em ‘Memórias do Cárcere’, é citado também no conto “Um Ladrão”, de Insônia, história da ineficiência de um aprendiz seu num roubo que fizeram juntos. Esta foi uma das muitas histórias que Gaúcho contou a Graciliano, ouvinte atento. E assim a amizade entre eles cresceu, dentro dos muros, desinteressada e sincera. Enquanto esteve encarcerado, Graciliano cultivou amizades, conheceu muitos tipos de pessoas, passou por momentos desumanos e constrangedores, e presenciou cenas terríveis. Graciliano presenciou de humilhações a cenas constrangedoras de homossexuais. Enquanto esteve encarcerado, escrevia sobre o que passava em papeis que seus colegas de cárcere arranjavam para ele. No dia em que foi liberto, porém pouco antes disso, cada um dos encarcerados esconderam os escritos de Graciliano para que os oficiais não achassem. Os oficiais procuraram os escritos por meio da mala de Graciliano, porém não encontraram. Até que um deles acompanhou Graciliano até a saída da detenção e disse que de nada adiantaria os outros procurarem os escritos se eles tinham prendido um homem que sabia escrever. Então, ao ser liberto, Graciliano muda-se para o Rio de Janeiro com sua família.

A narrativa de Graciliano Ramos, pela exposição de motivos contida no capítulo de abertura da obra, dá ao texto uma autenticidade autobiográfica, sobretudo se a ela somarmos a “explicação final” de Ricardo Ramos, na qual ficam esclarecidas as dificuldades que impediram o autor de dar definitivamente o texto por concluído. Essa narrativa, característica do relato autobiográfico, oferece a típica junção autor-narrador-personagem, sendo possível percebê-la como resultado da experiência vivida, o que aproxima Graciliano Ramos da noção de narrador clássico. Graciliano Ramos foi preso em 1936. Só dez anos depois começou a pôr no papel as suas impressões do cárcere. Decisão maduramente refletida, passou por altos e baixos, na preparação, e por pausas e descuidos, na execução. É o romancista primeiro a confessar as dúvidas, a princípio com uma desculpa pouco forte:

“Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela”.

Graciliano, de passagem, refere-se àqueles tempos ominosos e afirma:

“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.” Para concluir: - “Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato, ele não nos impediu de escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício”.

Ao deixar o cárcere, cujos ângulos mais escondidos nos mostra, nas suas memórias, Graciliano Ramos já era um romancista conhecido. Estávamos em pleno desenvolvimento do pós-modernismo ou, para sermos mais exatos, já em seu declínio, quando o ambiente, turvado pelos desencontros políticos e totalmente pejado pelo advento do fascismo indígena, contribuía para quebrar as possibilidades do trabalho literário.

Os escritores surgidos com o pós-modernismo, como o próprio Graciliano, continuariam a escrever, e alguns nos dariam obras de excelente quilate. Mas já não havia clima para propiciar o aparecimento de valores novos, o movimento contínuo que caracteriza as fases em que o trabalho intelectual denuncia a sua força.

Em Graciliano Ramos se brutalizava tudo aquilo que a cultura pode realizar em favor do homem, de sua visão da existência, de sua ânsia pela liberdade. ‘Memórias do Cárcere’ é o testemunho da realidade nua e crua de quem, sem saber o porquê, viveu em porões imundos, sofreu com torturas e privações provocadas por um regime ditatorial chamado Estado Novo.

“Arrependia-me vagamente das asperezas e injustiças, ao mesmo tempo suponha-me fraco, a escorregar em condescendências inúteis, e queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período - riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígios das ideias obliteradas”.

Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 — Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por seu livro Vidas Secas (1938).

Letícia Negreiros
Enviado por Letícia Negreiros em 13/09/2014
Reeditado em 24/02/2019
Código do texto: T4960360
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