OLIVEIRAS BLUES (Akira Yamasaki)

"Oliveiras Blues - A alquimia poética de Akira Yamasaki"

“oh pássaro breve

leve-me leve”

A Poesia é, das expressões da Arte, talvez a que melhor traduza a sensorialização do bicho humano diante das coisas do mundo e da vida. Pela sua própria forma de exteriorização (a escrita e a audição), a Poesia requer instrumentos específicos de emissão e recepção para que se manifeste. A boca, a mão, o ouvido (logo, a fala, o gesto e a interpretação), fazem dessa arte a tradução da vida. Se um dia for extinta a força que impulsiona o ser vivente à criação e fruição do êxtase artístico, é porque a vida está encerrada aqui sobre essa camada. Impossível imaginar o homem sem o insight criador da Poesia, elã que o liga ao mistério que o diviniza.

O blues é quase um mantra, música cantada ao léu por negros escravizados nos campos de algodão em toda a vastidão do sul estadunidense, traz em sua melodia todos os exílios do homem. Tanto lamento como evocação divina, o blues é exaltação da África natal, é memória de seus mitos, lendas, guerras e amores.

Ler, portanto, “Oliveiras Blues”, segundo livro de uma produção caudalosa de um poeta brasileiro descendente de japonês, nascido no interior de São Paulo e crescido nos rincões da periferia de Sampa, parece um desencontro geográfico que só a Arte pode corrigir. Akira Yamasaki, nesta obra que homenageia o bairro onde vive, reafirma e reforça o raciocínio que tento elaborar. Demiurgo poético cujo refinamento vem da contemplação transparente e da reflexão nua, ao Akira pouco importa do que é feita a pedra, pois o melhor de sua alquimia é burilar essa pedra de tal forma que ela vire qualquer coisa em sua linguagem, em seu instinto criador. Assim, um simples olhar de um boi condenado vira mote para um texto que nos embriaga:

“nunca esqueço

uma cena de infância

uma volta da pescaria

uma curva na estrada

um boi amarrado

pelas patas e pescoço

em duas árvores

uma marreta

ainda hoje me assombra

o olho do boi”

Uma reflexão materna ilustra todas o desmedido amor de todas as mães do mundo: “(...) esse é treze de pedra e não tem cura, de hoje em diante só vou amá-lo e seja o que deus quiser”.

Também há uma vontade incontrolável de versejar a amada e a ela oferecer tudo o que sua matéria-prima permitir:

“fiquei do outro lado

da rua da sua casa

sob a garoa da saudade

ficou no meu coração

entrerrado para sempre

o punhal do seu perfume”.

E, justificando o título, o filho dileto presta culto à terra onde fincou suas raízes, o Jardim das Oliveiras, no extremo leste da cidade de São Paulo:

“bem que estranhei

o movimento incomum

nos últimos dias

mas só hoje eu soube

pelo cara do churrasquinho

que fica na porta

da rainha do oliveiras

houve, alguns dias atrás

uma rebelião na fundação

coisa feia mesmo

só para constar

o diretor da instituição

ainda está na uteí

queima de colchões

queima da unidade

queima de arquivos

e uma pá de moleques

pá pá pá nas ruas

por mera coincidência

vi dedo mole de novo

adequado ao padrão fifa

tênis da mizuno

boné do neymar”

Akira tem a peculiaridade de pegar a crônica mais vã, a mais prosaica visão do cotidiano e transformar, com toques sutis de poeta genial - que ele de fato é - a trama refinada que lembra a confecção de um tapete persa fino e raro. Este “Oliveiras Blues”, que poderia trazer o peso quase insustentável da musicalidade densa e etérea oriundas das fazendas ensolaradas do sul dos Estados Unidos, confunde, e traz o frescor da nota que não saiu na página policial do jornal. Traz o lirismo que desconcerta o leitor, a luz que destoa do cinza previsível da rotina. O brasileiríssimo poeta, descendente de orientais, que se dá ao luxo de abrir mão de régua e compasso na elaboração de suas composições, o generoso articulador cultural que mantém vários projetos de produção artística na região aonde mora, Akira Yamasaki, neste novo livro (o primeiro foi o já clássico “Bentevi, Itaim”, de 2012), proclama com clareza tão óbvia que até nos tonteia:

“não adianta portos

navios e oceanos

se não há acenos

partidas e chegadas”

Em tempo: “Oliveiras Blues” é um dos quatro títulos da série E.X.E.M.P.L.O.S., desenvolvida pela editora Lunna Guedes para a Scenarium Plural. Todos os livros dessa série foram feitos manualmente.