A metáfora bovina

A METÁFORA BOVINA
Miguel Carqueija


“A hora dos ruminantes”, publicado originalmente em 1966, é um dos mais conhecidos livros de José J. Veiga (1915-1999), tido como um dos nossos mais importantes escritores de temática fantasiosa. Não foi um especialista em ficção científica, fantasia ou terror, mas no conto e no romance surreais, onde num cenário prosaico, tudo pode acontecer.
Este romance, por exemplo, utiliza metáforas que soam até ridículas para formar uma crítica às ditaduras e demonstrar a maneira sub-reptícia como, às vezes, se suprimem as liberdades.
A fictícia cidade de Manarairema — que aparentemente não tem prefeito, nem câmara de vereadores, nem polícia – tem a sua rotina alterada pelo aparecimento, nas proximidades, de uns forasteiros que ninguém sabe quem são, porque vieram, o que querem. Eles se estabelecem sem pedir permissão a quem quer que seja e vão aos poucos, sutilmente, intimidando toda a população da vila, com poucas excessões. O povo local é por demais passivo e não consegue reagir mesmo quando o lugarejo é invadido por uma incompreensível matilha de cães que aparentemente pertencem aos forasteiros. O pior porém está para vir, isto é, a invasão dos bois que dão título ao volume.
O livro é muito bem escrito mas os personagens são meio irritantes, tanto quanto podem ser as pessoas que falam por enigmas, que não esclarecem o que deveria ser esclarecido e nem do que é que têm medo. Entretanto, a pusilanimidade da população de Manarairema é um dos pontos-chave da narrrativa, ajudando ametáfora de um poder opressor adjacente, que não deve ser contrariado. No fundo, “A hora dos ruminantes” é uma fábula sobre a liberdade e a escravidão, na linha do clássico livro “Animal farm”, de George Orwell.
O que dizer de Geminiano, o coveiro que começa desacatando um dos “homens da tapera” (isto é, os forasteiros que se estabelecem perto da vila) e depois, por caminhos não revelados, torna-se subserviente? Praticamente todos os habitantes — com uma ou outra excessão — vão se nulificando, se apagando ante a prepot~encia mal explicitada, mais sugerida, dos estranhos.
Este e outros personagens são emblemáticos. Amâncio, por exemplo, como comerciante, dono da venda, torna-se um aliado dos “homens da tapera”; Manoel Florêncio e Apolinário — marceneiro e ferreiro — mantém a sua liberdade.
O livro é matafórico do início ao fim, como outro romance — esse, posterior — de José J. Veiga, o bizarro “Sombras de reis barbudos”.
“A hora dos ruminantes” é altamente recomendável para quem deseja entrar em contato com a literatura alegórica brasileira e com um de seus principais cultores.