Lovecraft em desfile

LOVECRAFT EM DESFILE
Miguel Carqueija


Resenha da coletânea “O mundo fantastico de H.P. Lovecraft (contos, poesias e ensaios) organizada por Denilson Earhart Ricci (autor também da biografia do ficcionista, no início do volume). Editora Clock Tower, Brasil, segunda edição, 2014. Prefácio de Fabiano M. Hasegawa.


H.P. Lovecraft, autor norte-americano de contos e novelas de terror (1890-1937), nascido em Providence (Nova Inglaterra), sabe-se ter publicado apenas um livro em vida, embora aparecesse muito em revistas; com o tempo porém tornou-se um monstro sagrado da literatura fantástica e de ficção científica. Já nos anos 50 era um nome de grande prestígio, e este prestígio só aumentou com o passar do tempo. O próprio Roger Corman filmou-o pelo menos duas vezes: “O castelo assombrado” (adaptação de seu único romance, “O estranho caso de Charles Dexter Ward”) em 1963, e “Altar do diabo” (“The Dunwoch horror” conforme o conto homônimo) em 1969. E os fãs de Lovecraft vem se multiplicando pelo mundo e se disseminando na internet.
Este livro, apesar de falhas de tradução e de português, é um trabalho notável pelo esforço desenvolvido e que resultou numa obra de aspecto profissional ainda que desenvolvida por fãs. Admiradores da obra de Lovecraft. Este esforço beneficou-se muito dos recursos da internet. E, graças a esta publicação, pude tomar conhecimento de textos do autor que eu ainda não conhecia, junto com otros que já conheço bem.
Vejamos o material apresentado:

O CHAMADO DE CTHULHU (The call of Cthulhu, 1926)

Este extenso conto, uma verdadeira noveleta, é tido como um dos mais importantes da mitologia lovecraftiana, já que desvenda muitas coisas sobre o ente mais conhecido, e que deu nome aos tais mitos: Cthulhu, que pode ser pronunciado de diversas maneiras (creio que não há um consenso). Quem ou o que é Cthulhu? Um monstro imenso, com asas de morcego ou dragão, rosto de polvo, tentáculos... com grandes poderes telepáticos, imortal e vindo de outra galáxia ou universo. No meu entender seria um demônio, mas, jun tamente com os demais “Grandes Antigos”, é apresentado como uma espécie de “deus” pagão, totalmente maligno.
O conto em questão fala na pesquisa arqueológica que um cientista faz, a partir de uma estatueta de material desconhecido e inccrível antiguidade, representando o monstro. A partir daí o personagem-narrador, apesar de seu ceticismo, vai descobrindo cada vez mais coisas terríveis e assustadoras, inclusive um culto macabro e ancestral mantido por mestiços da Flórida, por esquimós degenerados de uma tribo da Groenlândia e em outros locais. Há um racismo subjacente nesses detalhes, fruto talvez da época em que Lovecraft viveu. De qualque modo, nesta história, que já conheço de há muito, ocorre o padrão que, como vim a descobrir, acompanha os “Mitos de Cthulhu”: os personagens que tomam conhecimento das coisas ocultas vão enlouquecendo ou se desesperando e, não sendo crentes, não sendo cristãos, não contam com proteção espiritual. Que, ao que parece, nem existiria, pois ao imaginar um Cosmos totalmente blasfemo e hediondo, Lovecraft parece dar a entender que isto é natural e que nós, com nossos conceitos morais, é que somos a anormalidade; o próprio Deus não existiria (o Cristianismo, quando aparece em Lovecraft, é inóquo ou quase).
É por isso que eu, quando passei a escrever histórias lovecraftianas, pus o meu toque pessoal introduzido heroínas cristãs... mas isso é outra história. A saga de Sailor Moon, da mangaká Naoko Takeushi, mostra evidentes toques lovecraftianos, mas aí o bem é poderoso através de um grupo de heroínas paranormais.

O FESTIVAL (The festival, 1923)

Narrativa sinistra de um sujeito que vai a um festival em Kingsport, cidade fictícia da Nova Inglaterra, para cumprir a determinação de sua família. Da casa indicada é levada numa procissão macabra por subterrãneos horrendos onde testemunha coisas apavorantes, das quais acaba fugindo. A idéia dos horrores ocltos perpassa como sempre a obra lovecraftiana.

A HISTÓRIA DO NECRONOMICON
(The History of Necronomicon, 1927)

Pequeno artigo de ficção contando a tragetória do livro secreto através dos séculos e referindo as cópias conhecidas ainda existentes. A referência ao exemplar da inexistente universidade Miskatonic na inexistente cidade de Arkham revela o caráter ficcional da matéria.

A CIDADE SEM NOME
(The nameless city, 1921)


Um narrador na primeira pessoa, e sem nome, coisa comum em Poe e Lovecraft, conta como foi explorar a “cidade sem nome” nos confins do deserto da Arábia e, mergulhando nas ruínas soterradas, descobre as evidências de uma raça crocodiliana desaparecida e que teria existido no mundo em tempos imemoriais. Até o vento, nesse texto, parece uma coisa diabólica.

O DESCENDENTE
(The descendant, 1927?)

Conto meio vago que fala um pouco da história do sujeito que foi na cidade sem nome. No texto a afirmação de que o mundo tangível “é só um átomo num tecido vasto e ominoso”, ou seja, sempre a idéia subjacente de que o universo é mau, de que o bem não existe (a não ser em alguns de nós, talvez) e tudo é inútil. Apesar do fascínio exercido por sua literatura horrorífica tratada com elegância, Lovecraft talvez fosse um caso mental.

SONHOS NA CASA DA BRUXA
(The dreams in the witch house, 1932)

A aflitiva história de Walter Gilman, um rapaz esquisito que se hospeda numa casa de má fama em Arkham, onde teria morado uma bruxa. Histórias corriam sobre ela e um pequeno ser maligno parecido com rato que a acompanhava. Gilman começa a ter alucinações terrificantes e vai, aos poucos, sendo destruído por um fenômeno que não quer reconhecer. É um dos poucos textos de Lovecraft onde o Cristianismo aparece com alguma força, pois numa das cenas Gilman repele a bruxa por intermédio de um crucifixo. Mas ele é outro personagem sem proteção espiritual e impotente diante das malignidades.

O HORROR DE DUNWICH
(The Dunwich horror, 1928)

Filmado por Roger Corman em 1969, este conto narra a história de uma presença maligna que dominava uma fazenda e os esforços de alguns homens para esconjurá-lo, o que afinal conseguem. Dunwich é um dos lugarejos amaldiçoados, como Arkham, que aparecem nas histórias lovecraftianas. Este conto é um dos poucos em que os Grandes Antigos são enfrentados.

A BUSCA DE IRANON
(The quest of Iranon, 1921)

Narrativa desesperante, passada em época e lugares ignorados, falando de um homem que se julgava filho de rei e passou a vida inteira tentando retornar ao reino do qual se julgava originário, para afinal descobrir que tudo não passava de uma fantasia de criança.

O FORASTEIRO
(The outsider, 1921)

Outro conto terrível de um sujeito que conta memórias macabras, onde ninguém aparece, pois ele se diz criado em um castelo, cuidado por alguém mas de quem não se lembra; quando se vê só tenta fugir e no fim descobre que é um monstro. Como em outras narrativas de Lovecraft, as coisas são muito mal explicadas, para além da boa lógica. Nem se explica como é que ele possuía linguagem tão rica.

A SOMBRA EM INNSMOUTH
(The shadow over Innsmouth, 1931)

Um dos mais famosos e terrificantes trabalhos de Lovecraft, bastante extenso. Innsmouth é outro dos lugares tenebrosos e fictícios da Nova Inglaterra do novelista. Lovecraft criou um ambiente inverossímil, com uma comunidade esquisita e quase isolada do resto do país, e onde quase ninguém entra ou sai. Interessante é que o autor não explica como é que esta cidade fechada e onde os forasteiros que lá trabalhavam sentiam-se incomodados pelo clima esquisito funcionava na prática, já que teria de haver recolhimento de impostos, prefeito, polícia, toda uma gama de ligações inevitáveis que em grande parte são olvidadas na narrativa.
O fato é que das esquisitices que cercam a cidade misteriosa desemboca-se afinal numa apoteose de horror, com o local invadido por uma multidão repugnante de criaturas dos abismos submarinos, uma mistura de peixes e de sapos, mas de tamanho semelhante ao dos seres humanos, e toda essa invasão, acreditem ou não, é para caçar um único homem por ser um estranho que vinha investigar os segredos de Innsmouth. “Suas formas sugeriam vagamente algo de antropoide, enquanto que suas cabeças eram cabeças de peixe com prodigiosos olhos arregalados que nunca se fechavam. Nos lados do pescoço tinham guelras palpitantes e suas longas patas tinham membranas. Eles moviam-se aos saltos de modo irregular, às vezes sobre duas patas e outras vezes sobre quatro.” Essas gracinhas seriam os donos dos abismos submarinos e com poder latente para destruir a humanidade terrestre. Se o leitor aceitar a premissa (aquela história de “suspensão da incredulidade”) a história é formidável. Além disso, tem as dimensões de uma verdadeira novela.

O SABUJO
(The hound, 1922)

Pequeno conto bem trágico e talvez inspirado no clássico romance “O cão dos Baskervilles” de Conan Doyle. A diferença porém é que, em Lovecraft, a ameaça é sobrenatural mesmo e não uma mistificação.

UM SUSSURRO NA ESCURIDÃO
(The wisperer in darkness, 1930)

Uma das mais conhecidas e mais desesperantes novelas lovecraftianas, faz revelações sobre os tenebrosos “fungos de Yuggoth”, os seres repugnantes algo semelhantes a gigantescas lagostas, e que habitariam o nono planeta do Sistema Solar, ou seja Plutão, por eles chamado Yuggoth. Estes seres anteriam minas em regiões inóspitas nas montanhas de Vermont, Nova Inglaterra, locais evitados pelas populações próximas por causa das lendas assustadoras que corriam, até dos índios.
A narrativa se concentra na correspondência entre Albert Wilmarth e Henry Akeley, com este procurando convencer aquele que as lendas eram reais, e que seres tenebrosos vinham realmente das estrelas e nos vigiavam o tempo todo. Lovecraft inclui nisso tudo referências aos yetis da Himalaia e outras lendas conhecidas na vida real, misturando-as com os “Mitos de Cthulhu”. Aliás os tais fungos estariam entre os adoradores de Cthulhu.
Não se pode negar a alta qualidade da narração literária, ainda que sua leitura cause verdadeira aflição porque, na verdade, a gente não se conforma com forças malignas invencíveis, mesmo na ficção.

O DEPOIMENTO DE RANDOLPH CARTER
(The statement of Randolph Carter, 1919)

O protagonista narra sua terrível experiência junto a Harley Warren, que pesquisava fenômenos misteriosos e desce a uma espécie de catacumba, enquanto Randolph esperava na superfície. O desaparecimento de Warren é relacionado com o ataque de forças malignas que lá se encontravam.


O HABITANTE DAS TREVAS
(The haunter of the dark, 1935)


Relato sobre a obsessão de certo Robert Blake e seu trágico destino, ao pesquisar bairros misteriosos de Providence e uma igreja fechada e de má fama. Como de hábito, segredos mais ou menos percebidos por populações locais amedrontadas, e a mania do protagonista por estudos das coisas mais tenebrosas possíveis. Os alienígenas ou seres antigos são sempre monstruosos, poderosos e cruéis. Veja-se este trecho sobre um documento examinado por Blake: “Há referências a um “Habitante das Trevas” que é despertado pela contemplação do Trapezoedro Brilhante (sic), e insanas conjeturas sobre os abismos negros do caos de onde ele é chamado”.

NOTAS QUANTO A ESCREVER FICÇÃO FANTÁSTICA
(Notes on writing weird fiction, 1933)

Artigo onde Lovecraft discorre sobre seus métodos de criação e redação. Edgar Allan Poe já havia feito algo semelhante com sua “Filosofia da composição”.

UMA ELEGIA AO DR. FRANKLIN CHASE CLARK
(An elegy and Franklin Chase Clark, M.D. 1915)

Texto mais antigo de Lovecraft, como o nome diz, elogio de personalidade a quem ele muito respeitava.

O JARDIM
(A garden, 1917)

Poema curto e melancólico.

A ROSA DA INGLATERRA
(The rose of England, 1916)

Uma curiosa e curta exaltação da Inglaterra.

OS FUNGOS DE YUGGOTH
(Fungi from Yuggoth, 1930)

Longo poema escrito talvez no mesmo ano de “Um sussurro na escuridão”, é uma verdadeira coletânea de tudo quanto é horror lovecraftiano, e ñão apenas os habitantes de Yuggoth. Lá estão Arkham, Leng, os Antigos, o Caos etc. Num poema alucinante e obsedante.

CARTA DE H.P. LOVECRAFT A ROBERT E. HOWARD
(1934)

Da correspondência pessoal de Lovecraft, dirigida a seu amigo, o famoso criador do universo de Conan, dois anos antes do suicídio de Howard e três da própria morte de Lovecraft.

FRASES DE H.P. LOVECRAFT

Tirando fora o posfácio assinado por A.A.(creio que se trata de Alessa Akeshi, que assina parte da tradução e notas) o volume fecha com frases pinçadas de vários textos de Lovecraft.
Realmente, parece ser o volume mais completo deste autor, já lançado em língua portuguesa.


Rio de Janeiro, 2 de julho de 2015.