Sobre A BOLSA E A VIDA, de Jacques Le Goff

LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a Vida – Economia e Religião na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989.
 
O célebre historiador francês Jacques Le Goff volta a discorrer sobre mais um tema de grande interesse da Idade Média, em sua obra A Bolsa e a Vida. Especialista em assuntos atinentes a este fértil período da história europeia, nessa obra ele aborda a questão da perseguição àqueles que praticavam a usura e, mais especificamente, a sua prática por judeus e cristãos novos.

O livro é fascinante e surpreendente desde o seu título. Parafraseando a célebre expressão utilizada por fascínoras ao abordar suas vítimas, durante um assalto – “A bolsa ou a vida!”, equivalente ao atualmente em voga “Perdeu, playboy!” – Le Goff quer demonstrar que aos praticantes da usura tudo deveria ser subtraído: tanto a riqueza acumulada pela sua prática financeira, quanto a sua alma, condenada pelo ato pecaminoso.

Para entendermos a obra, primeiramente precisamos compreender alguns conceitos e o seu contexto. Entendia-se por usura, a prática do empréstimo de dinheiro a juros, hoje tão comum e principal fonte de lucro do sistema bancário, principalmente no Brasil, onde o spread bancário - que, em termos simplificados, é a diferença entre a taxa de juros cobrada aos tomadores de crédito e a taxa de juros paga aos depositantes, pelos bancos (1) se constitui em um dos maiores do mundo, girando em torno de 35 pontos percentuais. Usura, esta, que foi a precursora do sistema econômico hoje chamado de Capitalismo.

Mas porque essa prática era, então, considerada condenável? No Antigo Testamento bíblico são vários os versículos que recomendam não se emprestar dinheiro a juros (2). Baseando-se na frase de Aristóteles – “Nummus non parit nummos” (O dinheiro não se reproduz), um dos mais importantes pensadores católicos, o teólogo Tomás de Aquino, afirmou na Suma Teológica, a sua mais importante obra:
 
A moeda (...) foi principalmente inventada para as trocas; assim, seu uso próprio e primeiro é o de ser consumido, gasto nas trocas. Por consequência, é injusto em si receber uma recompensa pelo uso do dinheiro emprestado: é nisso que consiste a usura.

Não apenas isto: de crime, a usura passa a ser pecado, em mais uma evidência da estreita relação entre a Religião, o Poder e o Dinheiro, através dos tempos,  e o usuário considerado como um ladrão que rouba um bem que pertence unicamente a Deus: o Tempo! Thomas de Chobham, teólogo inglês do século XIII, afirmava, em sua obra Summa Confessorum:
 
O usurário não vende ao devedor nada que lhe pertença, somente o tempo, que pertence a Deus (sed tantum tempus quod dei est). Ele, portanto, não pode tirar proveito da venda de um bem alheio... Como ele vende uma coisa alheia, disso não deve tirar nenhum proveito.

O cerco ao usurário estava fechado. Agora, ele era um criminoso não apenas aos olhos dos homens, mas também aos olhos de Deus. E Seus representantes na Terra cuidariam de julgá-lo, condená-lo e executar a sentença.

É importante lembrar que a prática da usura nunca foi uma atividade exclusiva dos judeus. Em suas origens, era ela praticada com maior intensidade por aquele povo, por um motivo óbvio. Até o século XII, o empréstimo a juros, que não punha em cena somas importantes, estava essencialmente na mão dos judeus, a quem eram proibidas as atividades produtivas primárias e secundárias, restando-lhes apenas algumas profissões liberais, como a prática da medicina e a de realizar empréstimos.

Com o decorrer dos anos, a prática passou a ser realizada também por cristãos novos (judeus convertidos, geralmente por motivos circunstanciais, ao cristianismo) e adeptos do catolicismo. Para estes, então, estava destinada a mais alta condenação espiritual: padecer no Inferno, caso não se arrependessem, antes de sua morte, e não restituíssem toda a riqueza que acumularam, com a sua prática condenatória, àqueles que exploraram, o que, evidentemente, nunca acontecia.

Entretanto, esta condenação implicava em um contrassenso: como condenar eternamente aquelas pessoas que, apesar da sua atividade ilícita e pecaminosa, “socorriam” os nobres em seus excessos, financiavam guerras, patrocinavam as Artes e contribuíam generosamente para os cofres da Igreja? Como entregá-las ao Diabo, “racionalizado e institucionalizado pela Igreja, e que começou a entrar em atividade por volta do Ano Mil”?
 Para solucionar este impasse, Le Goff cita mais uma das criativas produções da Idade Média, a invenção do Purgatório, no final do século XII:
 
Quando, durante o desenvolvimento do ocidente, do Ano Mil ao século XIII, os homens e a Igreja consideraram insuportável a oposição simplista entre o Paraíso e o Inferno, e quando se reuniram as condições para definir um terceiro lugar do Além onde os mortos podiam ser purgados de seu saldo de pecados, uma palavra apareceu, purgatorium, para designar esse local enfim identificado: o Purgatório.

Consequentemente, os crimes e os pecados dos usurários passaram a contar com “atenuantes”, que permitissem a sua estadia, mais ou menos duradoura, no Purgatório, de onde eles poderiam ascender ao Paraíso: o damnun emergens, que seria o aparecimento inesperado de um dano, devido ao atraso no reembolso do empréstimo; o lucrum cessans, que seria o impedimento de obter um lucro superior legítimo, que o usurário teria com outro negócio, ao invés de emprestar o dinheiro e, principalmente o periculum sortis, perigo de perder o capital emprestado, que se reverteria no ratio incertitudinis, risco da incerteza, base de todo o mercado financeiro atual.

Contudo, durante todo o período de crítica à usura, nos sermões dominicais das igrejas, era comum os pregadores utilizarem narrativas breves, em tom quase folclórico, para demonstrarem as danosas consequências daquela condenável prática: eram os Exempla (no singular, Exemplum), que foram as principais fontes de referência e pesquisa, utilizadas por Le Goff. Cita ele incríveis textos, em que acontecem as mais pavorosas condenações aos usurários: encontros do pecador com o Diabo, em pessoa, antes de morrer; relatos de sua “recepção” no Inferno; lepra; consequências nefastas aos familiares; cadáver lançado às serpentes ou ao estrume, dentre outros flagelos.

Em meio a tantos debates contemporâneos, em que adeptos das religiões procuram influenciar e normatizar as relações humanas e a liberdade individual – a exemplo das questões da legalização do aborto, do uso das drogas, das relações homoafetivas, da intolerância religiosa, dentre outras – Le Goff remonta um passado distante em que fatos semelhantes ocorreram, quando uma postura extremista influenciou o desenvolvimento de uma nova forma de relação socioeconômica. Em síntese, ele diz que:
 
O que procuro mostrar neste livro é justamente como um obstáculo ideológico pode entravar, retardar o desenvolvimento de um novo sistema econômico. Acredito que se compreende melhor esse fenômeno investigando os homens que são seus atores em vez de examinar somente os sistemas e as doutrinas econômicas. O que contesto é uma velha história da economia e do pensamento econômico que ainda perdura. Ela me parece bastante ineficaz para a Idade Média, pois nesse tempo não havia doutrina econômica da Igreja nem pensadores economistas.
 
Além de defender o seu ponto de vista com relação à historiografia propugnada pela Escola dos Annales, Le Goff faz do seu livro um belo exemplo de como podemos entender e conhecer a História sob diversos pontos de vista, principalmente a partir do olhar daqueles que a fizeram, em seu dia-a-dia, como personagens atuantes, seja como réus, vítimas, acusadores ou simples espectadores.
 
(1) Oreiro,  José Luís da Costa et alli. Determinantes macroeconômicos do spread bancário no Brasil: teoria e evidência recente in Economia Aplicada, vol. 10 n° 4. Ribeirão Preto, out-dez 2006, p. 624,. Citado em Wikipedia, verbete Spread Bancário.
(2) Êxodo, XXII, 24; Levítico, XXV, 35-37; Deuteronômio, XXIII, 20; Ezequiel, XVIII, 13.

 
Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 05/11/2015
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