O alienista passo a passo

Ancorado no registro das antigas crônicas, Machado de Assis, em “O Alienista”, faz uma contundente crítica ao cientificismo da segunda metade do século XIX. O doutor Bacamarte, com suas teorias acerca da loucura, além de simbolizar a fragilidade das certezas científicas, é, também, indiscutivelmente, numa dimensão humana universal, o símbolo de nossas permanentes incertezas nessa caminhada no teatro da vida. Se o cientista, com seu aporte especial, vive num mundo de dúvidas, de buscas permanentes, o que se dizer então do homem comum desprovido desse cabedal? Estamos fadados a conviver no emaranhado de nossas próprias contradições, parece nos alertar o narrador machadiano do alto de sua incomplacente ironia.

Valendo-se do foco narrativo em terceira pessoa, o narrador nos apresenta Simão Bacamarte, o grande médico, que escolheu Itaguaí para seu universo, preterindo os grandes centros do saber europeu. Radicando-se na terra natal, ele se casa com uma viúva de limitados dotes físicos, em quem vira os atributos de saúde necessários para lhe dar uma prole saudável. Dona Evarista frustra as previsões e não lhe dá filhos... Talvez aí, já esteja o primeiro índice de que a ciência era falível...

Doutor Bacamarte elegeu para suas atenções científicas o recanto psíquico e resolveu solicitar à Câmara de Itaguaí permissão para instalar na cidade uma casa de orates. A Câmara votou o imposto necessário para financiar o tratamento dos pobres, e a Casa Verde, assim chamada pela cor de suas janelas, foi inaugurada com muita pompa.

Os primeiros alienados começaram a povoar o hospício. No início, poucos; depois, em número maior. Dona Evarista sentiu-se preterida, e o sábio marido enxergou-lhe a dor. Compensou-lhe com uma viagem ao Rio de Janeiro. Dona Evarista se foi acompanhada de uma comitiva, e Bacamarte continuou seus estudos, sua dedicação aos loucos que afluíam à Casa Verde.

Crispim Soares, o boticário, era amigo e confidente do alienista. Certa feita, o doutor o mandou chamar. Crispim, cuja mulher viajara com d. Evarista, ficou preocupadíssimo e correu à Casa Verde. Na verdade, não havia notícias dos viajantes. Simão lhe confidenciara algo de maior importância: “Trata-se (...) de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”.

Padre Lopes, a quem o alienista também expôs a nova teoria, ponderou que os limites entre a razão e a loucura estavam bem delimitados. “Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?”, acrescentou o vigário.

A partir daí, instala-se o terror na cidade. A população assistiu, pasmada, ao recolhimento do personagem Costa. Justamente ele, uma pessoa tão querida. Seu defeito era dissipar a herança recebida de um tio, dividindo-a em empréstimos, sem usura. Um louco perfeito!, segundo a teoria em prática. Uma prima foi interceder por ele. Contou para o médico que o caráter perdulário do primo era consequência de uma praga muito bem rogada. O tio de Costa negara água a um homem, que, vingativo, rogou a praga para que seu dinheiro não durasse mais de sete anos e um dia. E a pobre senhora, feita a defesa, acabou sendo recolhida à Casa Verde. Foi a última pessoa que intercedeu por Costa. Muitos outros seriam recolhidos.

Pobre Mateus! Ficara rico com albardas e construiu uma casa suntuosa, cuja beleza vivia contemplando. Além disso, gostava de que o contemplassem, quando ficava à janela de sua casa. Foi recolhido! Literalmente, implantou-se o terror. Um médico sem clínica chamou a Casa Verde de cárcere privado, e a opinião “pegou e grassou” rapidamente.

D. Evarista era aguardada ansiosamente, na esperança de que ela minimizasse a fúria da ciência. Puro engano! A chegada da mulher ainda propiciou nova internação. Martim Brito fez um discurso em homenagem à ilustre dama, enfatizando que, na criação dos homens, “Deus quis vencer a Deus e criou d. Evarista”. O alienista viu ali um caso típico de lesão cerebral, e o moço foi recolhido.

A essa altura, Bacamarte era considerado um déspota. A rebelião era iminente. Lideradas pelo barbeiro Porfírio, cerca de trinta pessoas levaram uma representação à Câmara, que negou qualquer interferência em assunto de natureza científica. O vereador Sebastião de Freitas, entretanto, ponderou que não havia garantias de que o alienado não fosse o alienista. Os revoltosos partem para Casa Verde, com a intenção de destruí-la. “- Abaixo a Casa Verde, bradavam os Canjicas”, assim denominados os revoltosos sob o comando de Porfírio. Simão Bacamarte, sereno e eloquente, dissertou sobre a seriedade da ciência , enfatizando que seus atos só seriam explicados aos mestres e a Deus, jamais a leigos ou a rebeldes. A eloquência do alienista arrefeceu os ânimos, mas o barbeiro conseguiu manter o estado de exaltação.

Chega o regimento dos dragões para preservar a legalidade. Porfírio, então, discursa: “- Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos e, com eles, a salvação de Itaguaí”.

O conflito era inevitável, os Canjicas fatalmente sairiam derrotados. Parte dos dragões, entretanto, aderiu aos revoltosos e, por fim, quase todos eles. A revolução triunfou. A Câmara, vendo os dragões chegarem, julgando-se vitoriosa, votou uma petição para que eles fossem premiados com um mês de soldo, com a aprovação de Sebastião de Freitas, o mesmo que defendera os Canjicas. Pura ilusão! A Câmara foi deposta e o barbeiro Porfírio nomeado “protetor da vila em nome de sua majestade e do povo”.

As angústias do boticário são descritas com a mais fina ironia. Crispim Soares, logo que soube da rebelião contra o alienista, fingiu-se de doente. Sabendo depois que Porfírio fora à Casa Verde, imaginou que o alienista estivesse na iminência de ser preso, e o que seria dele como fiel aliado? Diante dessa situação, correu ao palácio do novo governo e manifestou sua adesão aos funcionários que o receberam. Nesse sentido, como se vê, o narrador critica com maestria os bastidores do poder, as adesões interesseiras, em detrimento de causas sólidas. É o ser humano movido pelo mais puro egoísmo. E, na descrição desses estados de alma, o criador de Dom Casmurro está sempre a proporcionar as mais argutas reflexões sobre o comportamento humano, sobre o egoísmo humano.

Contrariando as expectativas, Porfírio procurou uma conciliação com a ciência. Conversou com o alienista e solicitou um “alvitre intermediário” capaz de sossegar a população. Cinco dias depois, vários aclamadores do novo governo foram trancados na Casa Verde. Outro barbeiro, João de Pina, denunciava que Porfírio havia se “vendido ao ouro de Simão Bacamarte”. João de Pina assume o poder, mas o governo do vice-reino mandou reforços que restabeleceram a antiga ordem em Itaguaí.

A Casa Verde, novamente sob a proteção do poder instituído, continuou abrigando os loucos de Itaguaí. Desta feita, o barbeiro Porfírio, Crispim Soares, o vereador Sebastião de Freitas e tantos outros foram recolhidos ao hospício. No dizer do narrador, “foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura”. Até mesmo d. Evarista, em quem o alienista enxergara uma certa “mania suntuária”, fora recolhida ao hospício.

Certo dia, a população ficou assombrada. O alienista oficiara à Câmara que os loucos iam ser libertados. Ele concluíra que quatro quintos da população estavam alojados na Casa Verde. O fato estatístico contribuíra para se chegar à conclusão de que a teoria merecia ser revista. Concluía o alienista que o normal e exemplar era o desequilíbrio e que se deveriam considerar como patológicos os casos em que houvesse equilíbrio ininterrupto das faculdades mentais.

Houve muitas festas para comemorar o retorno dos antigos reclusos. A enfermidade, contudo, continuava existindo, e o médico estaria à busca dos novos loucos, segundo sua mais recente teoria.

Restituiu-se a ordem. Os barbeiros, absolvidos, voltaram a seu trabalho. Os vereadores permitiram as novas pesquisas, mas votaram pela exclusão de suas próprias mentes, apesar dos protestos do vereador Galvão, para quem a Câmara, “legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das consequências da lei”. Simão Bacamarte considerou esse vereador um cérebro organizado, e pediu licença à câmara para recolhê-lo, pedido que recebeu unânime aprovação.

Depois foi a vez do padre Lopes, da mulher do boticário... Passaram-se cinco meses, e a Casa Verde alojava umas dezoito pessoas. Eram poucos os loucos, o que confirmava a nova teoria. O médico não afrouxava; “ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias”.

Algumas das principais pessoas da vila, contrariadas com a Casa Verde, chegam, secretamente, a pedir o apoio do barbeiro Porfírio, que se negou, confessando-se ambicioso ao tentar subverter a ordem dominante. Simão Bacamarte soube disso e mandou recolher o ex-revolucionário. “- Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.”

Nessa nova fase, as curas foram pasmosas, conforme registram os cronistas. Os loucos eram agrupados em classes, segundo a perfeição moral predominante. Em uma pessoa que padecesse de modéstia, por exemplo, ele aplicava uma medicação que lhe incutisse o sentimento oposto. E tudo era muito dosado, segundo o estado, a idade, a posição social do doente etc. Houve um poeta modesto que resistia à terapêutica. O alienista, que já começava a desesperar da cura, mandou correr a matraca, “para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro”. Foi um santo remédio! O vereador Galvão, que se mostrara de tamanha equidade, perdeu um tio e corrompeu os juízes, favorecendo-se com o testamento. Estava curado... Mas, nesse caso, o alienista enxergou a simples força curativa da própria natureza.

Enfim, todos curados! Mas a dúvida era atroz.... A cura não seria apenas a descoberta do desequilíbrio do cérebro? Em Itaguaí não havia nenhum cérebro organizado?

Simão Bacamarte, aflito, reuniu os amigos, que apontaram nele as virtudes de um cérebro perfeito. O padre Lopes enfatizou que ele reunia inúmeras qualidades, realçadas pela modéstia. Foi a gota d’água. Simão Bacamarte recolheu-se à Casa Verde. Reunia em si a teoria e a prática. Em vão, a mulher, em lágrimas, o chamou. Dali a dezessete meses, o alienista morreu e foi enterrado com pompa e solenidade.

Sem dúvida, um texto envolvente, que nos leva a refletir sobre nós mesmos, sobre nossa (a)normalidade, sobre o poder e o jogo de interesses que o envolvem. Um texto em que a sabedoria da ciência é relativizada e ridicularizada através da construção desse personagem-símbolo das certezas incertas da ciência e do próprio homem.

Texto originalmente publicado no site Aprendiz.