Brasil - Mito fundador e sociedade autoritária

CHAUÍ, Marilena. Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

Marilena de Souza Chauí é doutora em Filosofia pela Universidade do Estado de São Paulo – USP (1971). Atualmente é professora desta mesma instituição, atuando, exponencialmente, na área de História da Filosofia. É um dos nomes mais referenciados neste campo, tendo suas mais importantes obras publicadas a favor do estudo da Filosofia, as quais podem ser recomendadas às diversas áreas de estudo científico. O livro que a seguir será resenhado é parte de sua coleção “História do povo brasileiro”, na qual busca fazer um apanhado geral de construções historiográficas para torná-las acessíveis ao grande público.

O tema proposto por Chauí em Brasil – mito fundador e sociedade autoritária é a averiguação da crença, existente na sociedade brasileira, em uma suposta ideia de cordialidade – espécie de marca identitária nacional transmitida ao longo dos anos –, que comporia, deste modo, o processo histórico responsável por estabelecer a estrutura política e socioeconômica deste país. Para tanto, a autora aborda esta clássica leitura de Brasil como um “mito fundador”. Faz-se importante salientar que, para fundamentar esta denominação, Chauí precisou ultrapassar os significados etimológicos atribuídos a ambos os termos, “mito” e “fundador”, alcançando os seus sentidos antropológicos. Deste modo, descreve de que maneira o “imaginário popular” é atingido e em que momento tende a repetir e a repassar tal crença, que se estabelece e funciona como uma ideologia – no sentido marxista do termo, como narrativa para fazer perpetuar as relações de poder mantenedoras do status quo. Afinal, o “mito fundador” baseado na ideia de cordialidade coloca em cena uma ideia positiva de identidade, esquecendo-se (propositalmente) de confrontá-la com o real histórico nacional, bloqueando possíveis alterações da forma como se pensar o país.

Nessas circunstâncias, Chauí (2000) procura discutir a nação como produto de um semióforo, algo que simboliza “o invisível espacial ou temporal” celebrando a continuidade perene de “uma crença comum ou passado comum”. Ao explorar as formas como essa difusão acontece, a autora elenca, paralelamente, as instituições que dominam o uso desses signos, detendo, assim, poder sobre todos os outros indivíduos. O principal intuito da pequena parcela detentora do poder, geralmente a elite intelectual, é constituir a sensação de uma sociedade unificada, indivisível.

A princípio, quando os portugueses chegaram a estas terras, usaram o semióforo da existência do território como dádiva divina, interpretando a si mesmos como “os escolhidos”. O objetivo de estabelecer relação entre a “descoberta” das terras e os conceitos de fé dos colonizadores, era concretizar a fixação destes aqui e, com isso, fundar uma colônia que dialogasse com os desígnios celestiais, uma vez que Portugal sempre esteve muito atado a uma ideologia religiosa de extração católica. Essa também foi uma das ferramentas usadas para explorar a natureza e o povo dessas terras.

De acordo com Laura de Mello e Souza (2002), é preciso desmitificar a chegada dos portugueses às supostas “Índias”, descrita sob a égide do “domínio estabelecido pacificamente” exercido pelos colonizadores, não somente em solos, mas também em corpos do “Novo Mundo”. A principal fonte desse discurso são os escritos deixados por cronistas que vieram relatar à Metrópole como seus nativos os receberam e quais os aspectos dessa terra. Nesse contexto, o que nos interessa é compreender a forma como essa narrativa se estruturou: fazer com que o leitor imaginasse a terra de Santa Cruz como o Paraíso. Não foi uma simples consequência das histórias contadas popularmente nem, tampouco, sua difusão permanente ao longo dos anos foi feita de modo aleatório. O semióforo de “cordialidade” foi elaborado para que a terra de Santa Cruz aparecesse como recompensa “prometida por Deus” e, os portugueses, como seres “escolhidos para colonizar” este lugar. Além disso, a cordialidade está imbricada a uma ilustração branda, especialmente quando comparada às invasões sofridas por outras colônias sul-americanas ou norte-americanas, principalmente no que tange à escravidão

Chauí (2000) enumera, em seu primeiro capítulo, “Com fé e orgulho”, representações que os brasileiros ainda trazem seguindo essa mesma perspectiva – um Brasil “indivisível” e “solidário”. A autora discute os cenários em que essa crença aparece e propõe a reflexão sobre a atuação desse signo que recai ao cotidiano naturalmente, dificultando a possibilidade de identificá-lo em um discurso de unidade e identidade nacionais:

Eis por que algumas pesquisas de opinião indicam que uma parte da população atribui os males do país à colonização portuguesa, à presença dos negros ou dos asiáticos e, evidentemente, aos maus governos, traidores do povo e da pátria. Nada impede, porém, que em outras ocasiões o inimigo seja o ‘gringo’ explorador ou alguma potência econômica estrangeira. A representação é suficientemente forte e fluida para receber essas alterações que não tocam em seu fundo (CHAUÍ, 2000, p. 4).

Ao falar do poder que esses signos exercem, aponta, com ironia, como alguns dos semióforos empregados em relação ao povo brasileiro, e repetidos por essa mesma sociedade, reforçam a ideia de “cordialidade” impressa no período colonial. Por exemplo, o pacifismo, a ordem, a generosidade, a alegria e a ausência de preconceitos. A autora demonstra preocupação com um possível extravio das verdadeiras questões políticas desse país, pois a repetição dessas expressões pode resolver momentânea e imaginariamente algumas tensões reais, produzindo contradições que, escondidas sob um manto de qualidades benévolas, são ocultadas e esquecidas.

Continuemos no curso provocativo que Chauí sugere, de que a fundação de uma “nação” tem base imaginária, por ser fruto de signos que ligam o “visível” ao “invisível”, sendo capaz de penetrar e fixar-se no “imaginário popular” – de onde surge a proposta de tratar a formação da sociedade brasileira como “mito”. Pode-se afirmar, portanto, que a invenção desse conjunto de signos, se faz necessária para a fundamentação desse produto, a nação. Assim, toda e qualquer comunidade irá se distinguir, não por ser “autêntica” ou “fraudulenta”, mas pela diferente forma com que foi imaginada, assim como nos alerta Anderson.

É indispensável fomentar a discussão acerca de como esses signos têm fundamentação ideológica para que possamos entender de que modo eles engessam as compreensões da realidade e as expectativas de transformá-la.

Em outro momento, Chauí (2013, p. 117) irá nos dizer que a ideologia nada mais é que “[...] um conjunto de ideias ou representações com teor explicativo e prático ou de caráter prescritivo, normativo, regulador”. Através dessa definição, a autora nos esclarece o mecanismo com o qual os semióforos são criados, instaurados, repetidos e perpetuados. O valor perene se deve à condição identitária que possuem, pois são capazes de “nivelar” a sociedade. Para isso, o uso desses signos pode massacrar as questões de classe, escondendo todos os conflitos oriundos de uma estrutura social dividida, trazendo a tentativa de “solidificar a nação” como argumento – leia-se: consolidar ad infinitum os lugares de poder e de subalternidade.

Um exemplo que podemos trazer para ilustrar os termos lugar de poder e subalternidade, é o debate levantado por Mignolo (2003) sobre as histórias locais europeias e como elas são disseminadas a nível global, sendo ainda tratadas como paradigmas do saber. A subalternidade é discutida a partir do estado de colonialidade de outros territórios nacionais ante a esse modelo de conhecimento que ainda habita estes espaços.

A grande inovação tecida por Mignolo (2003) é a relação constituída em um processo histórico epistemológico de domínio, ainda, excepcionalmente, Europeu e a predominância que o continente mantém mesmo em locais externos.

O que nos é interessante dentro dessa proposta de Mignolo (2003) é pensar as relações de força pautadas na detenção do saber que ainda estão inseridas no nosso contexto − processo de descolonização. Vejamos bem: Brasil, nação fundada pela força colonizadora de Portugal, país europeu. Quase 200 anos após a proclamação de sua “independência”, o país ainda se encontra estreitamente atrelado aos ideais portugueses de formação e transmissão de conhecimento. A representação que temos de nós mesmos, em geral, provém do olhar colonizador impresso sobre nós. Chauí (2000, p. 5) nos mostra que se questionarmos “[...] de onde proveio essa representação e de onde ela tira sua força sempre renovada, seremos levados em direção ao mito fundador do Brasil, cujas raízes foram fincadas em 1500”.

Para construirmos esse diálogo precisamos saber que os principais meios de transmissão de semióforos são espaços que difundem conhecimento (escolas, bibliotecas, museus, etc.) e que as interpelações entre a classe dominante e seu domínio ideológico através da transmissão popular desses semióforos, consistem, basicamente, na linguagem, pois é através desta que todos os seus signos são disseminados e, por sua vez, instaurados e perpetuados.

Encerrando o paralelo entre a ideia de Mignolo (2013) e o pensamento de Chauí (2000), podemos traçar as seguintes relações para entender o contexto: o discurso epistemológico europeu predomina ainda nos territórios que foram colonizados durante um determinado tempo histórico. As influências desse discurso sobre o olhar que esses espaços em colonialidade tecem sobre si mesmos, ainda são muito presentes nas representações que adotam para falar de sua identidade, fortalecendo, com isso, o uso de semióforos estabelecidos pelos portugueses no período de Brasil colônia. Por sua vez, os semióforos usados no processo de “fundação da nação” brasileira têm suas bases fincadas na ideologia colonizadora.

No período que corresponde à contemporaneidade brasileira, esse estado de “colonialidade ideológica” é mantido pelos semióforos que são refletidos e revisitados por signos que estão fortemente ligados ao “verdeamarelismo” discutido por Chauí (2000). A camisa da seleção brasileira, por exemplo, é uma das mais fortes representações que atualmente vêm sendo retomadas para associar o patriotismo às questões políticas, assegurando, assim, a força de uma camada elitista e conservadora no poder deste país.

O futebol é uma representação constante em nossa realidade. Para ilustrar esse fato e trabalhá-lo na perspectiva de semióforo, Chauí (2000) irá rememorar a maneira como esse recurso foi utilizado ao longo de períodos históricos, quem os utilizou e qual a intencionalidade que se alcança com isto.

A autora atravessa as comemorações dos anos 1958 e 1970 e relata o uso das cores verde e amarelo como representações adotadas para ilustrar a identidade nacional naquele momento, que se voltava para as questões futebolísticas. A preocupação de Chauí (2000) em relação a esse “verdeamarelismo” é a forma como ele é utilizado pelo Estado, com a intenção de garantir que as “pautas nacionais” fossem alcançadas. Explica, ainda, o “verdeamarelismo” como instrumento de fixação de propostas específicas no imaginário popular e utilizado de acordo com as vontades das classes dominantes, tendo como propósito controlar a classe trabalhadora e sua atitude transformadora, cooptando-a para o conformismo social. Aqui, esses semióforos são manipulados para, alienando a luta de classes, procurar atribuir à relação capital-trabalho não uma imagem conflitante, mas, cooperativa, sob a proteção do Estado.

Chauí (2000) demonstra, ainda, que outra parcela social desse período, a que podemos retomar como elite intelectual, mostra-se bastante preocupada com o problema da identidade nacional, querendo chamar para si a tarefa de tramar um modelo de consciência nacional e promovendo, deste modo, a organização da “nação”. A autora também trata dos projetos de modernização anunciados, apontando o declínio de Gilberto Freyre e Plínio Salgado, defensores de semióforos ligados à natureza, dando lugar àqueles que se adaptam à nova realidade. Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Nestor Duarte, adeptos da modernização, irão de enquadrar muito menos relutantemente ao semióforo “progresso” industrial, que agora se sobressaía em relação à Natureza, como promotor de desenvolvimento. Um ponto que a todo o momento nos é retomado por Chauí é que o mito fundador não desaparece nesse cenário de maneirismo social, em que está acontecendo uma transição nos modos de a sociedade pensar a si própria. O Brasil segue sendo considerado “gigante pela própria natureza”, “presente de Deus”, e constituído por um “povo heroico”. Exatamente por essa razão que o “progresso” é tido como possível e o “milagre econômico” é bem aceito e crido pela sociedade.

Nos tempos atuais, podemos associar tais reflexões às manifestações “contra a corrupção” que aconteceram nos últimos meses. A população manifestante, paradoxalmente, trajava a camisa na Confederação Brasileira de Futebol, instituição frequentemente envolvida em escândalos de corrupção. É necessário pensar esse fenômeno das manifestações como a incorporação de um projeto majoritário e invisível que paira em nosso cotidiano sem que sequer percebamos sua existência. O cenário social desse momento em que vivemos também é de uma transição de pensamento sobre si, em que os projetos sociais voltados para as minorias estão sendo barrados, ocultados pela retomada do mito fundador. O que Chauí (2000) nos alerta a todo o momento em Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária é, justamente, a forma como esses semióforos são retomados, sempre tendendo ao favorecimento de uma classe social mais elevada tanto financeira quanto intelectualmente, que não quer ter seus privilégios ameaçados. A autora quer nos fazer pensar nossa questão histórica paralelamente à forma como somos designados a lidar com nossas questões políticas nacionais.

A tarefa que nos é proposta é entender como funcionam, atualizam e se fortalecem as estruturas que são arquitetadas para manter a nação “unida”, agindo contrariamente ao que nos é imposto por estas estruturas. Tarefa esta a ser desempenhada inocentemente, se a devida análise histórica for dispensada. Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária nos faz refletir profundamente nossas questões ideológicas, políticas e históricas e a forma como os mitos e os semióforos que sustentam essas estruturas são instrumentalizados pelo Estado para justificar sua própria existência e estão sempre justapostos a narrativas históricas, sem as quais não tem como se estabelecer.

A leitura de Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária é recomendável a qualquer pessoa que se interesse pela desmitificação do processo fundador da nação brasileira: seus vieses políticos, a intelectualidade imbricada ao domínio e ao poder, a opressão silenciosa sofrida pelas classes sociais mais baixas, a repetição e a perpetuação de narrativas que nos distraem da nossa verdadeira história e das questões reais às quais devemos questionar. No fim das contas, o que a autora quer despertar nos leitores é a percepção, diante do nosso quadro social, de que “não há o que comemorar”.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CHAUÍ, Marilena. Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Crítica e ideologia. In.:_______. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. São Paulo: Autêntica, 2013. p. 117-146.

SOUZA, Laura de Mello e. O novo mundo entre Deus e o Diabo. In.: _______. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 21-85.

MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

Taíse Dourado
Enviado por Taíse Dourado em 09/08/2016
Reeditado em 09/08/2016
Código do texto: T5723212
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