Resenha de "As noites marcianas" de Fausto Cunha

RESENHA: AS NOITES MARCIANAS
Miguel Carqueija

Resenha da coletânea “As noites marcianas”, de Fausto Cunha. Edições GRD, Rio de Janeiro, 1960. Volume 4 da Ficção Científica GRD. Capa de Eddie Moyna, inspirada numa escultura de Henry Moore. Contos.

O editor Gumercindo Rocha Dórea tornou-se lendário pelo grande apoio que deu à ficção científica inclusive incentivando autores nacionais numa época em que pouca gente produzia esse gênero literário no Brasil. Sua influência nesse sentido foi tão grande que surgiu a expressão “Geração GRD” para designar os escritores brasileiros que se exercitaram na FC naquelas décadas de 50 e 60.
Fausto Cunha, crítico literário, incursionou diversas vezes na modalidade, e seu livro “As noites marcianas”, coletânea de contos, tornou-se um clássico. E está a merecer uma nova edição. Vejamos, um por um, os trabalhos que o compoem.
VIAGEM SENTIMENTAL DE UM JOVEM MARCIANO AO PLANETA TERRA – Conto semi-humorístico onde um explorador vindo de Marte em sua nave espacial desce no continente antártico e leva um grande tempo tentando entrar em contato com os pinguins pensando serem os humanos, os habitantes racionais do nosso mundo. Ele afinal é esclarecido pelo seu superior, numa transmissão instantãnea através de dezenas de milhões de quilômetros. Pela maneira como fala, 0.187 (esse o nome do personagem) está muito bem informado sobre o que são pinguins. E o astronauta, 0,123, em contato com o frio das proximidades do Pólo Sul considera desdenhosamente as lendas que falavam num calor infernal na Terra, que podia chegar a 20 graus (sic) acima de zero! Bem, esse conto já está muito desatualizado e talvez já fosse anacrônico nos anos 60.
CHAMAVAM-ME DE MONSTRO – Um monstro alienígena transmorfo vem incógnito à Terra e fica se transformando em seres diversos que vê, pois tem a capacidade de possuir o seu corpo e assumir sua identidade. Cada vez que faz isso porém o ser desaparece. O simulacro também “morre” quando ele o abandona. Blixt, do planeta Ghrh, vai contando suas aventuras e detalhando as coisas de seu mundo e também da estrela 61 Cigni, título de outro conto da coletânea. Nota-se que essa história também não é totalmente séria mas na verdade uma sátira,talvez à própria ficção científica.
61 CIGNY – A meu ver o melhor conto do volume, uma pequena obra-prima trágica e terrificante, retrata a terrível experiência d euma prostituta na rua, de madrugada, diante de uma forma de vida alienígena (mas não é uma cena de sexo, bem entendido). Um conto original e difícil de esquecer, foi um dos primeiros exemplos que eu li, há muitos anos e num suplemento de jornal, da ficção científica brasileira.
REGRESSO – Pedro Santos é um astronauta brasileiro e negro, que parte na missão de ser o primeiro a alcançar outra galáxia, Messier 33; ao regressar, depois de ficar “rodando em círculos” pelos misteriosos canais de vácuo, descobre que se passaram milênios na Terra o que, tendo em vista o Raletivismo, já se tornou clichê na FC. Achei exagerado o suspense que fizeram para lhe contar a verdade, que ele aliás devia ter adivinhado.
CAI UMA FOLHA EM SETEMBRO – um dos contos mais surreais que eu já vi, onde o próprio mês de setembro é personificado. Ele dialoga com a misteriosa Figura num entrecho estremamente metafórico e que convida à reflexão, mas talvez seja por demais hermético.
STELLA MATUTINA – um Comandante sem nome por puro acaso vence uma importante batalha naval, numa guerra também sem nome; é transformado em herói e logo recebe a proposta de um estúdio cinematográfico, para filmar a sua vida. Ao refletir sobre as vantagens da proposta para ele e sua esposa, ainda que o filme em questão devesse ser mentiroso, cheio de dúvidas em sua consciência acaba refletindo: “Não recebi nenhum poder sobre a verdade”. Portanto, um claro e importante dilema ético.
O ANZOL E OS PEIXES – sátira ferina ao mundo da publicidade, à influência subliminar da propaganda. “O esquilo pode gemer à vontade, mas é ele que se atira à goela da cobra”. Não é dos meus contos favoritos, mas Fausto Cunha merece elogio pelo seu estilo correto e seguro. Dá gosto ler textos em bom português quando hoje em dia editoras profissionais publicam tanta coisa mal escrita.
O DIA QUE JÁ PASSOU – paradoxo temporal do tipo círculo vicioso. Em crime passional, um homem mata a mulher a quem amava, mas volta no tempo e tenta modificar o que já aconteceu. No futuro hipótético em que se passda a história a Ciência está trabalhando experimentalmente com as viagens temporais. Cunha forjou todo um jargão específico para a narrativa: “retroscopia”, “retrossônica”, “cronovôo”... “Os aparelhos de retroperícia não estavam adaptados para as superposições”. Não deixa de ser um conto policial em ambiente de ficção científica. Quanto aos paradoxos temporais... é mais fácil imaginá-los que acreditar neles.
MOBILE – noveleta onde um velho e aposentado astronauta conta para os netos suas passadas experiências. Há até uma referência aos “misliks”, os “apagadores de estrelas”, de um romance de Francis Carsac, autor francês, “Guerra de estrelas”, que viria a ser editado no Brasil pelo mesmo editor GRD. Mas a maior parte da narração refere-se a uma aventura num planeta habitado por umas nuvens inteligentes mas de dificílimo contato por falta de semântica adequada. Este conto extenso foi mais tarde publicado em separado, como uma novela infanto-juvenil, “O lobo do espaço”. Por fim, apesar das muitas experiências exóticas vividas, o velho astronauta ainda acha que o mais estranho dos seres é o homem.
A VELA QUE O MUNDO APAGOU – a originalidade deste conto está na sua forma de resenha de livro, um livro imaginário contando a história de um personagem fictício, Thomas Muliro. Tratar-se-ia de um cientista e matemático negro, assassinado ainda jovem, juguladas assim suas pesquisas. Sendo misteriosas as circunstãncias de sua morte, fica implícito que ele teria sido morto pelas forças ocultas (por ser negro?) já que suas teorias eram revolucionárias. Achei um tanto ou quanto inconvincente a história, mas a intenção do autor fica bem clara, ou seja, aludir às forças da inveja e do preconceito que cerceiam gênios quando eles contrariam o “status quo”.
SOBRE FAUSTO CUNHA – quando entrei no fandom nacional de ficção científica, em 1983, Fausto Cunha, que em certa época era considerado nosso mais importante escritor do gênero, já não publicava seus textos, até onde eu sei. Publicou quatro livros, participou de antologias, prefaciou, e se retirou. Entre nós circulou que ele não queria mais saber de FC. Um dos nossos fanzines divulgou uma entrevista que Claudio Oliveira Egalon (que pouco depois se retirou para sempre, para os Estados Unidos, onde se empregou na NASA) obtivera com Cunha, talvez aí por 1980, e que divulgou num jornal fluminense. Havia interesse em que contatássemos com Fausto Cunha, mas nada se fez de concreto até sua morte. Nós, afinal de contas, fazíamos o caminho inverso da Geração GRD, onde escritores consagrados incursionavam pela literatura de antecipação. Nós entrávamos por baixo, pelos fanzines, pelo anonimato prévio. Por isso era tão importante estabelecer a ligação com nossos antecessores.

Rio de Janeiro, 17 e 18 de agosto de 2016.