Um pai sem filho

Não são todos os dias que vemos um pai negar um filho, por isso a obra O Filho Eterno se torna tão diferenciada dentre tantas obras, ainda mais pela forma seca como a história é narrada. O Filho Eterno é um romance escrito pelo autor Cristóvão Tezza, foi publicada originalmente em Janeiro de 2007 pela editora Record. O livro recebeu várias premiações, como: Prêmio APCA 2007, Prêmio Bravo! 2008, Prêmio Jabuti! Melhor Romance 2008, Prêmio São Paulo de Literatura - Melhor livro do ano de 2008, Prêmio Portugal Telecom e Prêmio Zaffari & Bourbon 2009. Apesar de descrita como Romance, a obra poderia ser vista como autobiográfica, já que na epígrafe o autor deixa de forma subliminar que seriam suas memórias:

“Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a

verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e,

no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade.

Thomas Bernhard

Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e,

para o filho, o pai é por sua vez um espelho

no qual ele se vê no futuro.

Søren Kierkegaard”

Um fato curioso é que o escritor Cristóvão Tezza tem um filho com Síndrome de Dawn, assim como o personagem do pai no livro. Todavia o livro é narrado em terceira pessoa, descartando a autobiografia e como ele mesmo diz na epígrafe: “Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade.” Sendo assim, temos um texto ficcional apesar de todas as características levarem a pensar que é a vida do escritor.

O livro contém 25 capítulos e duas epígrafes. A história se passa no espaço urbano e periférico, narrando o lugar onde eles moram e para onde se mudam e também os lugares para onde viajam com a chegada do filho e suas buscas pelo tratamento do filho. Além das viagens do pai para outros países que são narradas no texto.

O enredo conta a história de um pai (não é citado seu nome e nem o da mãe) que não estava preparado para a chegada do filho com Síndrome de Dawn ( o Felipe, único personagem nomeado) e mostra de forma fria toda a sua frustração e descontentamento com esse filho e acima de tudo, sua dificuldade de lidar com a sua nova realidade.O pai é um ser frustrado, que não conseguia a princípio um bom emprego, casou-se pela obrigação e imposição da sociedade e teve um filho, do qual não estava preparado para ter. Ele era um pai sem filho.

“[...]A tentativa de se tornar piloto da marinha mercante, a profissão de relojoeiro, o envolvimento no projeto rousseauniano-comunitário de arte popular, a dependência de um guru acima do bem e do mal, a arrogância nietzschiana e autossuficiente com toques fascistas daqueles tempos alegres (ele percebe hoje), enfim a derrocada de se entregar ao casamento formal assinando aquela papelada ridícula num evento mais ridículo ainda vestindo um paletó, [...]a falta de rumo, uma relutância estúpida em romper com o próprio passado, náufrago dele mesmo, depois o curso universitário com a definitiva integração ao sistema, mas nenhuma de suas vantagens, desempregado indócil, escritor sem obra, movendo-se na sombra ensaboada de seu bom humor —e agora pai sem filho.[...]”

“[...]E o que ele tem? Nada. Vive às custas da mulher, jamais escreveu um texto verdadeiramente bom, sofre de uma insegurança doentia e, agora, tem um filho que, se sobreviver, o que é pouco provável, será uma pedra inútil que ele terá de arrastar todas as manhãs para recomeçar no dia seguinte e assim até o fim dos dias[...]”

Nos primeiros dias de nascimento de Felipe, o pai pensa em todas as possibilidades possíveis e impossíveis para que seu filho pudesse ser “curado”, como se seu filho fosse apenas um produto que veio às mãos do cliente com defeito. O pai é totalmente frio e calculista, chega mesmo a pensar que seu filho irá morrer e sentiria alívio por isso.

“[...]dizia, não há velhos mongoloides. Você tem certeza disso?, alguém perguntaria, erguendo o braço; sim, nenhuma dúvida; eles morrem logo, e ele desejou passear por uma rua movimentada às seis da tarde só para conferir in loco, cabeça a cabeça, essa verdade indiscutível: eles não existem. Veja você mesmo. Procure na multidão: não existem. Era quase meio-dia, a maternidade agitada.[...] talvez— ele calculou —seja só uma questão de dias, dependendo da gravidade da síndrome.[...]”

“[...]se ela morresse aos dois dias da cardiopatia inexistente, se fosse fulminada por uma outra mutação qualquer no quarto dia de vida ou por qualquer outra razão aleatória dos possíveis da vida, bem—lá estaríamos nós no entardecer do cemitério, sob a sombra daquela bela árvore, recebendo pêsames, com um sopro de alívio.[...]”

O pai não se sentia pai, o filho era apenas produto de uma fecundação, que talvez tenha dado errado. O autor não deixa em nenhum momento de descrever de forma minuciosa todo esse sentimento de rejeição que o pai sentia pelo filho:“[...]o mundo começa de novo todas as manhãs e qualquer coisa é melhor do que nada, quando se tem um não filho nas mãos.[...]”

Muitas partes do texto são chocantes, um pai que odeia o fato de ter um filho e deseja as coisas mais ruins para seu filho para que assim pudesse se livrar dele. Entretanto, querendo o pai ou não o filho sempre existirá, mesmo após a morte este mesmo filho sempre será conhecido como Seu. O pai apenas aceita seu filho quando ele o perde e percebe a falta que este mesmo filho insignificante faz. O insignificante, inexistente, passa a existir e a ser enfim filho.

“[...]. É preciso pensar, sempre, o aqui e o agora, essa teia infinita de complicações que nos prendem os braços, e então todo o resto faz diferença.

Aqui e agora: voltando para casa sem o filho, o mesmo filho que ele desejou morto assim que nasceu, e que agora, pela ausência, parece matá-lo.[...]”

O que mais importante frisar neste livro e observar é o quanto nós seres humanos podemos ser mesquinhos, egoístas, pensantes de si e que até um filho, sangue do seu sangue pode ser considerado uma pedra no caminho que deve ser eliminada. Mesmo que aquela época era difícil porque a síndrome ainda era muito pouco conhecida e estudada, o pai era pai.

Mesmo assim, vemos que nem todo ser humano não nasce com uma fórmula, não nasce pronto para ser pai, mãe e até mesmo filho. O pai tem uma filha que nasce perfeita e ainda assim não fica satisfeito, na verdade ele nunca estava satisfeito com nada. Para ele era uma vergonha ter um filho “mongoloide”.

Demorou muito, anos, até que o pai percebesse que ele sempre teve um filho, um filho que precisava de amor não só da mãe e da irmã, mas do seu pai também que estava ali por toda a vida. Entre altos e baixos, enfim, o pai percebeu que ele era pai, mesmo que antes pensasse que não tinha um filho.

“Nada do que não foi

poderia ter sido.

Não há outro tempo

sobre esse tempo.[...]”

Nada do que não foi jamais poderia acontecer na vida do pai, do Felipe, da mãe, da irmã e nem em nós.

M em Poesias
Enviado por M em Poesias em 06/07/2017
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