O cotidiano da espera (Gustavo Queiroz)

Siga Bem Caminhoneiro

Este pequeno livro traz o resultado do trabalho de conclusão de um aluno de jornalismo, que resolveu encarar uma semana ao lado de um caminhoneiro profissional. Aventura, momentos engraçados, outros perigosos, burocracia, adversidades do clima e muita, muita espera.

Descobri enquanto navegava pelo catálogo de uma livraria on-line, a capa me chamou atenção: um livro sobre caminhoneiros! Como era grátis, resolvi baixar o e-book e, lendo a introdução, fiquei ainda mais interessado:

“[…] quis entender melhor o que é o jornalismo gonzo, e me surpreendi ao descobrir em uma pesquisa na internet uma história em quadrinhos de Warren Ellis batizada de Transmetropolitan, livremente inspirada na carreira do jornalista Hunter S. Thompson, que tanto me ensinou em aulas póstumas, através de seus livros. Esses caras me convenceram de que o jornalismo não precisa ser burocrático”.

Depois de terminar a leitura, pesquisei mais sobre a história em quadrinhos Transmetropolitan e vi que ela reúne duas características que gosto: temática cyberpunk e uma crítica ao formato consagrado hoje pelo Facebook, no qual as pessoas apenas leem o título de uma notícia e já tiram suas conclusões (segundo a vídeo-resenha do Canal Central HQs).

Além disso, o jornalista no qual a história desta HQ foi inspirada escreveu o livro Medo e Delírio em Las Vegas, que foi adaptado para o cinema por um diretor que admiro muito (Terry Gilliam). Depois vou correr atrás destes materiais e talvez surjam algumas resenhas deles aqui mas, por hora, voltemos à estrada.

Basicamente, o tal jornalismo gonzo é aquele no qual o repórter se envolve, de tal maneira, no ambiente que perde a objetividade. Lendo sobre assunto, vi que muitos nem mesmo consideram jornalismo. O fato é que o jornalista Hunter S. Thompson foi o pioneiro no estilo.

Gustavo Queiroz já trabalhava no mercado de transporte de cargas e teve a ideia de fazer seu trabalho de conclusão em forma de livro-reportagem, com foco no caminhoneiro. Seu primeiro contato com essa faceta do jornalismo foi em um estágio em que trabalhou com Pedro Trucão.

Quando vi este nome fiz uma pesquisa e confirmei: era o repórter do programa Siga Bem Caminhoneiro, que costumava assistir muito nas manhãs de domingo no SBT quando criança. Também fiquei sabendo que o Pedro Trucão nasceu em minha cidade natal!

O autor conseguiu um patrocínio da Iveco, que proporcionou verba e também o contato com Vanguarda do Brasil, cliente da marca. Uma das coisas que mais me atraiu na leitura foi o clima de documentário / diário de bordo.

Tudo começa na escaldante Cuiabá (MT) (ou Cuia Cuia, no jargão dos caminhoneiros), onde o autor se junta a Gilson Furlanetto, o motorista que acompanha durante toda a viagem. Engatam o bitrem, vão até Nova Mutum para fazer o carregamento de algodão e partem em direção à Paranaguá (PR).

Enfrentam as adversidades do clima: sol forte, chuva torrencial e frio. Assim como estradas mal conservadas, pneus estourando e cruzando a pista, cidades perigosas e grande risco de serem assaltados. Sem contar a, sempre presente, espera. Para carregar, descarregar, postos de fiscalização, manutenção do caminhão, burocracia etc.

“— A vida do caminhoneiro é esperar. Esse é o dilema do motorista —desabafou Gilson. — A gente espera a vez de descarregar, espera para carregar, espera a vez de enlonar o bitrem, espera a liberação da nota. A gente espera pra tudo, até para o que não é da nossa conta a gente tem que esperar — explicou Furlanetto, muito paciente, mas ansioso para ver sua família. — Em São Paulo, tem gente que se estressa só de esperar em fila de padaria. Imagina se trabalhassem com isso — comparou, aos risos”.

Há um detalhe que vale salientar: apenas o motorista Gilson Furlanetto dorme na boleia, o autor sempre se hospedava em algum hotel nas paradas. Algo que tira um pouco da vivência e da dificuldade, algo que poderia ser “condenável” para um jornalista profissional que se propõe a tal projeto (de jornalismo gonzo), mas compreensível para um estudante que está se formando.

Em dado momento, Gustavo Queiroz fica hospedado na casa de Gilson Furlanetto, durante a refeição, uma situação engraçada:

“Estavam cozinhando muita coisa, entre elas, peixe. Detesto peixe, nunca gostei. Para mim, de peixe já basta o Santos F. C. Fiquei desconcertado, pois não queria deixá-los chateados por estarem preparando algo de que eu não gostava […] Posso te servir de peixe, Gustavo? — ;ofereceu Gilson. Recusei. Disse que sofria de alergia — uma mentira deslavada”.

Fico imaginando a reação de Furlanetto ao ler o livro e descobrir isso depois! Aliás, um detalhe interessante: todos os motoristas com os quais Gustavo Queiroz conversa, dizem que irão comprar o livro quando sair. O autor faz uma observação sobre isso:

“Ao contrário de muitos colegas que pediram um exemplar de presente, os motoristas com os quais conversei, sem exceção, afirmaram que vão comprar seus exemplares a fim de me ajudar”.

Isso mostra não só uma “ajuda”, mas também uma espécie de consciência de pertencimento à uma classe e parecem perceber o potencial do livro para ampliar suas vozes. Frequentemente são feitas críticas às condições de algumas estradas, a ausência de um sistema mais automatizado de fiscalização, como o Sem Parar que existe para pedágios.

Há também um intercâmbio de informações, assim como o autor aprende, na prática, como é a vida na estrada, também compartilha seu conhecimento a respeito de como são os caminhões e os procedimentos na Europa (diga-se de passagem, bem diferente do Brasil, longe daquela visão romantizada que os simuladores de caminhão passam nos games).

Frequentemente comentam sobre os perigos na estrada, principalmente os acidentes causados por caminhões antigos e/ou sem manutenção. De acordo com os relatos neste livro, os caminhoneiros parecem ser bem solidários e costumam se comunicar através de rádio, dando alertas aos companheiros sobre as condições da estrada.

Temos acesso também a algumas curiosidades, como a relação entre o zelo ou desleixo de um caminhoneiro apenas pela observação do quão esticada está a lona. E também sobre a situação dos caminhoneiros durante as eleições. Geralmente não votam, apenas vão até algum colégio próximo de onde estão para justificar o voto. Segundo os relatos, esse seria o motivo pelo qual os candidatos não fazem promessas para a categoria.

Ao longo do livro, Gustavo Queiroz também fornece alguns dados que nos ajudam a mensurar a importância que estes profissionais têm em nossa sociedade, apesar de serem sempre estereotipados (inclusive ele ressalta que Gilson Furlanetto era um profissional que fugia totalmente da imagem costumeira que se tem dos caminhoneiros):

“[…] os caminhoneiros carregam o Brasil nas costas, não deixam faltar produtos nas gôndolas e prateleiras das lojas […] o modal rodoviário transporta cerca de 60% dos produtos comercializados no Brasil […] enquanto a tecnologia de teletransporte não extrapolar as histórias de ficção científica, os caminhões continuarão exercendo seu papel fundamental na sociedade”.

Em meio às conversas durante o percurso, temos algumas falas bem emocionantes e espontâneas:

“— A vida na estrada, para quem está no dia-a-dia, é mais dolorida. Quando você viaja a trabalho, a estrada tem outra cara. A passeio é melhor, você contempla a paisagem, pode estar com a família e sabe que vai chegar logo em casa, ou está de férias. Tenho a felicidade e a sorte de estar em um bom caminhão zero quilômetro, nos últimos três anos só rodei com zerinho, um a cada ano. Nem dá tempo de acontecerem problemas graves de manutenção — disse Gilson, meio embargado. Foi seu primeiro depoimento emocionado sobre a vida na estrada”.

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Se você é caminhoneiro ou se interessa pelo assunto, vale a pena ler este livro. Apesar de ser um trabalho feito por um formando sem muita experiência, fico imaginando o potencial de mais livros neste formato, nos ajudando a ver o mundo a partir de outros pontos de vista e, quem sabe, inspirar maior pacificação e colaboração entre diferentes atores sociais.