A micro-história de Menocchio, um moleiro filósofo que contracena com a inquisição em "O queijo e os vermes", de Ginzburg

A micro-história defende uma delimitação temática extremamente específica por parte do historiador, inclusive em termos de espacialidade e de temporalidade. Esse gênero historiográfico surgiu com a publicação da coleção “Microstorie”, sob a direção de Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, na Itália (entre 1981 e 1988). Esta nova corrente historiográfica ora foi vista como história cultural, ora foi confundida com a história das mentalidades e com a história do cotidiano. Mas o desenvolvimento da micro-história veio fortalecer os anseios de historiadores que buscavam um novo modo de compor a história; de tornar possível a historiografia dos anônimos, dos esquecidos, buscando nesses elementos os pressupostos da história social e cultural; seu foco é muito mais o particular que o geral.

Os historiadores puderam, a partir de então, focalizar, pesquisar, pensar e escrever história a partir de outras perspectivas, quebrando paradigmas, voltando seus interesses para uma história preocupada com os anônimos, seu modo de viver, sentir e agir, resgatando a importância dos interesses individuais. É assim que, através do livro “O queijo e os vermes”, o historiador italiano e professor da Universidade da Califórnia, Carlo Ginzburg, narra a trajetória de Domenico Scandella, chamado Menocchio, um moleiro do norte da Itália, que no século XVI desafiou os poderes da inquisição afirmando que a origem do mundo estava na putrefação.

O moleiro filósofo Menocchio tinha uma visão particular das coisas, idéias singulares que contrariavam as idéias do seu tempo. Para ele tudo era um caos: a terra, o ar, a água e o fogo, e de todo esse volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, o qual apodrece e dele surgem os vermes, e esses vermes seriam os anjos:

Eu disse que, segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, a terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento... (GINZBURG, 2006)

No olhar de Menocchio, a crença cristã sobre a formação do mundo seria uma inverdade, a verdade é que tudo teria se transformado numa grande massa de onde surgiram os anjos, do mesmo modo, como já foi dito, que acontece com o queijo que apodrece e dessa podridão surgem os vermes. Esses vermes, segundo Menocchio, seriam os anjos e entre esses anjos, um se sobressaia, era o Deus de todos eles. É claro que essa afirmação do moleiro, contrariando aquilo que estava escrito na Bíblia, trazendo uma nova vertente sobre a história da vida, foi motivo gerador de um conflito entre ele e o clero. Aquele era um período marcado pela Reforma Protestante e consolidação da Inquisição como forma de “castigar” todos aqueles que se colocassem contra os preceitos religiosos da Igreja.

O livro é na verdade uma história real sobre um julgamento da época da Inquisição. O que o difere dos outros é a forma como é contada. Utilizando o conceito de Paul Veyne sobre história, em que esta tanto pode ser uma série de acontecimentos quanto uma narração de uma série de acontecimentos, Jacques Le Goff (1924, p.18) ainda acrescenta que história é uma narração verdadeira ou falsa, com base na “realidade histórica ou puramente imaginativa” (história ou fábula). Partindo desse conceito, podemos enveredar pela narrativa encontrada em “O queijo e os vermes” para refletir sobre essa idéia, visto que esse livro “pretende ser uma história, bem como um escrito histórico”, como diz o próprio historiador Ginzburg no prefácio à edição inglesa (2006, p. 10).

Analisando o percurso de Ginzburg até chegar à narrativa pronta, pudemos ver que suas pesquisas e seus achados foram muitíssimo relevantes para o seu trabalho; segundo ele, no mesmo prefácio já citado, encontrou uma “farta documentação” que lhe deu condições de narrar a história do personagem central – Menocchio – com riqueza de informações sobre sua vida social e intelectual. Graças a essa documentação, Ginzburg trouxe à tona o perfil de Menocchio, seus pensamentos, suas leituras e discussões, suas relações com amigos e vizinhos. Mais do que a descrição psicológica do moleiro, o autor traça um panorama minucioso do período em que este viveu – uma Europa pré-industrial marcada pelo Renascimento e pela Reforma. No entanto, a originalidade do pensamento de Menocchio é sempre destacada, como podemos perceber no fragmento abaixo:

Mas o que um moleiro como Menocchio saberia sobre esse emaranhado de contradições políticas, sociais, econômicas? Qual a imagem que construiria para si do enorme jogo de forças que, silenciosamente, condicionava sua existência? (...) parece que Menocchio em seus discursos, dá indícios de ter uma atitude diferenciada em relação aos “superiores”. A violência do ataque contra as autoridades da Igreja – “E me parece que nossa lei o Papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres” – contrasta com a crítica muito mais amena, que vem em seguida, às autoridades políticas: “Me aparece também que os senhores venezianos abrigam ladrões naquela cidade... eu gostaria que cumprissem seus deveres”. (...) Aos seus olhos, a encarnação da opressão estava na hierarquia eclesiástica. (2006, p. 50-51)

O autor salienta que Menocchio é muito mais radical em seus argumentos contra o clero que aos políticos da época. Mas, além da vida interessante do personagem, podemos destacar alguns pontos em referência à religião camponesa semi-pagã que ainda existia no interior da Europa em pleno Renascimento:

“Acredito que todas as águas sejam abençoadas por Deus”, e, “se um leigo soubesse as palavras, valeriam tanto quanto as do sacerdote, porque Deus distribuiu a virtude igualmente para todos e não mais a um que a outro”. Tratava-se, resumindo, de uma religião camponesa que tinha muito pouco em comum com a que o pároco pregava do púlpito. (2006, p.117)

Apesar de utilizar documentos (aparentemente) verdadeiros, já que fazem parte do Arquivo da Cúria Episcopal (Udine) que preserva um acervo de documentos inquisitoriais extremamente ricos (2006, p.09), Ginzburg faz reflexões sobre o papel da história e dos historiadores em relação ao testemunho da veracidade destes. No prefácio à edição italiana, o autor diz que os historiadores de hoje estão cada vez mais interessados naquilo que seus predecessores haviam ocultado, talvez por terem ignorado alguns indícios, ou por falta de testemunhos. Num período em que a escrita era direito de poucos, onde a classe vista como inferior tinha como testemunho apenas a oralidade, era possível haver “quebras” nas idéias originais, ou “abortos”, isto é, apagamento dessas idéias.

Nessa discussão sobre a veracidade dos acontecimentos e valorização da cultura oral, ou mesmo daquilo que não foi dito, Le Goff (p.109-110) diz que é necessário fazer um “inventário dos arquivos do silêncio, fazer a história a partir dos documentos e das ausências dos documentos” e que “nenhum documento é inocente, por isso deve ser analisado, e por ser um monumento, deve ser “des-estruturado”, “des-montado”. A não inocência do documento é algo positivo dentro desta perspectiva de Le Goff, já que não existem verdades absolutas, tudo pode ser revisto, porque sempre ficam fatos esquecidos, coisas não ditas, e, até mesmo, coisas ditas sobre uma ótica particular de quem disse ou escreveu. Sendo assim, “os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estarem sujeitos a tratamentos destinados a transformar a sua função de mentira em confusão de verdade” (p.110).

Nesse contexto de “arquivos dos silêncios” em que nos fala Le Goff, podemos refletir sobre a cultura das classes subalternas que é predominantemente oral, portanto estão documentadas de forma indireta, já que não foi escrita pelas mãos da voz que a verbalizou. Ginzburg (2006, p.13) diz sobre isso que “os pensamentos, crenças, esperanças dos camponeses e artesões do passado chegam até nós através de filtros e intermediários que os deformam”. Esse fato pode causar distanciamento de alguns historiadores, que se sentem desencorajados a fazer pesquisas nessa direção, mas isso não é consistente para Le Goff, já que para ele é o historiador quem vai “discernir o que é falso; avaliar a credibilidade do documento” (p.112) e saber desmistificá-lo. A idéia de Le Goff e de Ginzburg se afina com a de Heródoto, para quem o “testemunho por excelência é o testemunho pessoal, aquele em que o historiador pode dizer: vi e ouvi” (1924, p.112). Vê-se aí que há uma valorização do testemunho oral desde os séculos passados, sendo relevante, entretanto, que se avaliem esses testemunhos.

Em “O queijo e os vermes”, Ginzburg também dialoga sobre as influências que Menocchio recebeu e os autores que leu, percebe que essas influências são muito importantes, porém, parece-lhe que o mais importante é mostrar como ele recebeu tais influências, de que forma absorveu as leituras realizadas e como as transformou, como criou a sua própria teoria para o surgimento do universo:

Mais de uma vez Menocchio indicou este ou aquele livro como fonte (não exclusiva, no caso) das suas “opiniões”. Mas o que é que Menocchio leu? Infelizmente não temos a lista completa de seus livros. No momento da prisão, o vigário-geral mandou que revistassem sua casa. Foram encontrados alguns volumes, mas não eram livros suspeitos ou proibidos e, portanto, não foram inventariados. (2006, p. 67)

O autor também se surpreendeu com o fato de numa aldeia tão pequena, de pessoas com tão poucos recursos financeiros, existirem leitores e estes estarem ligados pela idéia de socializar a leitura (mesmo sem saberem que o fazia), visto que os livros passavam de mão em mão. Ele reflete, entretanto, que o livro era um objeto tratado sem muitos cuidados.

Sabe-se que em Undine, desde o século XVI, havia sido aberta uma escola, sob a direção de Gerolamo Amaseo, “para ler e ensinar, sem exceção, filhos de cidadãos assim como de artesãos e populares, grandes ou pequenos, sem nenhum tipo de pagamento”. (...) Surpreende, entretanto, que numa aldeia tão pequena de colina se lesse tanto. (...) para essas pessoas o livro fazia parte da experiência comum: era um objeto de uso, tratado sem muitos cuidados, exposto ao risco de se molhar e se desfazer. (p.69-70)

Era relevante saber que tipo de leitor era Menocchio e se sua consciência crítica sobre a vida e a religião estaria norteada pelas leituras que realizou. Provavelmente ele não foi mais o mesmo depois das leituras que fez. É claro que ninguém se transforma em outra pessoa porque leu este ou aquele livro, mas a leitura tem poder e aquele que lê vai apreender, dependendo do efeito que o texto lhe cause, o conteúdo das leituras, para depois filtrar aquilo que lhe interessa, bem como fazer juízo de valores, criar seus próprios conceitos. Neste contexto, concordo com Wolfgang Iser quando este diz que “o texto é um potencial de efeitos que se atualiza no processo da leitura” (1996, p.15). Segundo Iser o efeito é estético quando requer atividades imaginativas do leitor, obrigando-o a diferenciar suas próprias atitudes:

O efeito estético deve ser analisado, portanto, na relação dialética entre texto, leitor e sua interação. Ele é chamado de efeito estético porque – apesar de ser motivado pelo texto – requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas, a fim de obrigá-lo a diferenciar suas próprias atitudes. (p.16)

Podemos dizer que as leituras que Menocchio realizou, senão todas, mas algumas delas, causaram efeito estético no moleiro e este pode, assim, estabelecer atitudes próprias, criar conceitos e, até mesmo, atraí-lo para uma situação de autonomia, de coragem, de desejo de expandir suas convicções e crenças. Nesse sentido, Menocchio seria um leitor que não apenas flui com as criações dos autores lidos, mas é também produtor de textos2, através da oralidade, pois ele sentia necessidade de dizer, de tornar público suas

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2 - Discussão realizada por Muniz Sodré no livro “Beste-seller: a literatura de mercado”, 1985.

convicções. As leituras adotadas foram influentes, mas também mostram o poder que o leitor tem sobre o texto, pois Menocchio desenvolveu uma maneira singular de ver as coisas. Nesse sentido, podemos refletir sobre a leitura como “transação” entre o texto e o leitor, tese de Rosenblatt, discutido por Zilberman (1989, p. 26), um processo de mão dupla, que exige a contribuição do leitor.

Nessa micro-história o autor resgatou a figura de um homem que ousou falar, dizer o que pensava, mesmo arriscando a própria vida. Uma ousadia que o levou, entretanto, a ser condenado, afinal, suas “heresias” deveriam ser mantidas distante dos camponeses: “Desde o início os juízes frisaram o fato de que Menocchio falara sobre suas opiniões heréticas e que argumentara contra a fé católica..., (não apenas com religiosos, mas também com pessoas simples e ignorantes), pondo em risco a fé daqueles”(p.145). Foi condenado a passar o resto dos seus dias na prisão, sob à custa dos filhos, porém, depois de dois anos preso, conseguiu que a pena fosse atenuada e transferida para algo como uma "prisão domiciliar", mas não poderia sair de Montereale e deveria carregar um hábito com a cruz. Quando, depois de alguns anos, conseguiu autorização para deixar a aldeia, não poderia fugir, se o fizesse, seu amigo “fiador” seria preso:

Menocchio foi condenado a abjurar publicamente todas as suas heresias, a cumprir várias penitências salutares, a vestir para sempre um hábito marcado com uma cruz, em sinal de penitência, e a passar no cárcere, à custa dos filhos, o resto de sua vida. (...) Um amigo, Daniele de Biasio, se responsabilizou por ele, comprometendo-se a pagar duzentos ducados em caso de violação da sentença. Arrasado física e mentalmente, Menocchio voltou a Montereale. (p.148-151)

Mesmo tendo sido julgado e condenado pela Santa Inquisição, Menocchio continuara tendo prestígio na comunidade, apesar do seu isolamento. Mas o moleiro não conseguia ficar calado, não podia deixar de dizer o que pensava, isto para ele era tão importante quanto viver, por isso continuou a pregar suas idéias “heréticas”. A insistente “ousadia” de Menocchio levou-o a um segundo julgamento. Estava, então, com 67 anos, e teve muito medo de voltar à prisão, por isso passou a falar o que queriam que falasse, mas não recebeu o perdão, foi condenado à tortura e morte na fogueira.

Pudemos observar nesta narrativa, que Ginzburg fez “um passeio” pela cultura popular do passado, fazendo uma relação com a cultura erudita de um período específico; com essa micro-história, que é a história pessoal de um moleiro especial, em um determinado lugar (a aldeia de Montereale), em uma determinada época (século XVI), o autor narra a vida e o julgamento do italiano Domenico Scandella, analisando o processo inquisitório, partindo da vida cotidiana nos campos italianos do século XVI até chegar à pessoa de Menocchio e na reflexão de seus pensamentos singulares. Faz uma análise investigativa e criteriosa para revelar fatos da vida desse personagem, que poderiam nunca ter sido revelados, nunca chegar ao conhecimento das épocas posteriores a ele. Isso foi possível graças a essa nova tendência – a micro-história, muito bem explorada por Carlos Ginzburg, nessa que pode ser chamada de obra-prima do gênero.

Arlânia Mª Reis de Pinho Menezes

Mestranda em Literatura - UEFS

BIBLIOGRAFIA:

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Tradução: Amoroso, Maria Betania; tradução dos poemas: Paes, José Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (companhia de Bolso)

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. (volume I) Tradução: krets Chamer, Johannes. São Paulo: Editora 34, 1996.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Leitão, Bernardo... (et al). Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1994.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e História da Literatura. São Paulo: Editora Ática, 1989.