O LIRISMO DE CAMÕES

Por: Francineide B. de S. Pedrosa

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Alguma coisa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

(Camões - Soneto dedicado a Dinamene, a asiática que ele amou e que morreu num naufrágio)

O classicismo partiu do Renascimento, um movimento artístico cultural iniciado na Itália, pelo qual se revivem a cultura e a arte do mundo greco-romano. O classicismo consiste na volta ao mundo antigo, que tem o homem como centro de toda atividade humana, por julgá-lo o ponto final de tudo. É a concepção antropocêntrica, em oposição à concepção teocêntrica, onde Deus é o ponto para onde converge toda a atividade do homem.

O classicismo coincide com o apogeu português, A época das grandes navegações e descobrimentos, e tem como características:

1. conceber a arte como representação objetiva da realidade;

2. imitar os modelos greco-latinos;

3. predomínio da razão sobre a emoção;

4. preocupação com uma forma perfeita de expressão artística;

Influenciados pelo renascimento são introduzidos na literatura portuguesa: o soneto, a ode, e a epopéia; e as obras teatrais, como a tragédia e a comédia.

O soneto é um tipo de poema que tem forma fixa, vivacidade, beleza e sentimento. Codificado por Petrarca na Itália e introduzido na França pela escola de Marot. Foi criado por um poeta siciliano, Giácomo de Lentini, que viveu na metade do século XII, isso de acordo com recentes investigações do Prof. G. A. Cesareio, visto que antes disso, a paternidade do soneto é atribuída por alguns, ao trovador francês Girard de Bourneuil e por outros, ao italiano Petrus de Vineis.

No século XIX, o soneto volta a ter grande aceitação, com adaptações nas suas regras. Na versão italiana e na adaptação francesa, torna-se próprio para a expressão lírica dos sentimentos, registrando assim um poema onde a expressão da afetividade é difundida de uma forma resumida.

Quanto à estrutura estrófica, o soneto se constitui de quatorze versos, distribuídos em duas quadras e dois tercetos. Os versos são comumente decassílabos. Adotam-se também, a partir do século XIX, os sonetos de versos alexandrinos (doze sílabas), e setissílabos (sete sílabas). Possuindo rimas bem dispostas, os dois quartetos devem fazer a apresentação do tema. Já no primeiro terceto, deve haver a elevação do assunto, que segue o ritmo do pensamento do autor. O terceto final deve conter a conclusão, ou a chamada chave de ouro do poema.

As poesias líricas de Camões estão em rimas, e o que se nota no seu lirismo é uma marca profunda da experiência pessoal, tanto no trato com o mundo, como nas relações afetivas com as mulheres.

Nos seus sonetos, observam-se sínteses belíssimas e um aprofundamento metafísico no que diz respeito aos temas, como: reflexões pessoais, amor, fatalismo, o paradoxo e a existência da condição humana, o amor platônico e até antecipações barrocas, a exemplo do soneto dedicado a Dinamene, que aponta características barrocas, ou seja, o dualismo e a presença de antíteses.

Neste soneto Camões canta sua experiência de separação, que se dá com a morte da amada. O eu lírico mostra-se em traços fortes, e está explícito logo na primeira estrofe, “(...) E viva eu cá na terra sempre triste”. O verso seguinte mostra o dualismo presente no poema, “Se lá no assento etéreo onde subiste”, é clara também a presença de antíteses, “terra – céu; vida – morte”. E o poema continua com um apelo para que a amada, ao ver-se diante de Deus, interceda para que seus dias aqui na terra sejam diminuídos, e que o encontro dos amantes na eternidade seja antecedido ao tempo. Volta aí, a presença da antítese, “o sagrado e o humano”.

Quanto à versificação, os versos se estruturam em decassílabos heróicos com acento na sexta e décima sílaba. Com uma observação no quarto e oitavo versos, que tem cesura na quarta, oitava e décima sílaba, formando assim, dois versos decassílabos sáficos.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Al / ma / mi / nha / gen / til / que / te / par / tis / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Tão / ce / do / des / ta / vi / da / des /con / ten /te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Re / pou/ sa / lá / no / céu / e / ter / na / men / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

E / vi / va eu / cá / na /ter / ra / sem / pre / tris / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Se / lá / no as / sen / to e / té / reo on / de / su / bis / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Me / mó / ria /des / ta / vi /da / se / con / sen / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Não / te es / que /ças / da / que / le a / mor / ar / den / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Que / já / nos / o / lhos / meus / tão / pu / ro / vis / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

E / se / vi / res / que / po / de / me / re /cer / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Al / gu / ma / coi / sa a / dor / que / me / fi / cou

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Da / má / goa / sem / re / mé / dio / de / per / der / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Ro / ga a / Deus / que / teus / a / nos / en / cur / tou

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Que / tão / ce / do / de / cá / me / le / ve a / ver / te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Quão / ce / do / de / meus / o / lhos / te / le / vou

O esquema de rimas, na primeira e segunda estrofes, segue uma seqüência ABBA, ABBA, já na terceira e quarta estrofes, são intercalados, o nono, o décimo primeiro e o décimo terceiro versos; e o décimo, o décimo segundo e o décimo quarto versos: CDC, DCD.

Camões também lança mão de outro tipo de repetição, que são as aliterações e as assonâncias, presentes nas repetições da consoante T e da vogal E, encontradas em quase todos os versos do poema:

“Tão cedo desta vida, descontente”,

“E viva eu cá na terra sempre triste”.

“Se lá no assento etéreo, onde subiste”,

Identifica-se também no poema, outras figuras de linguagem como: eufemismo,”Alma minha gentil, que te partiste”, representando uma idéia de morte; hipérbato,”Repousa lá no céu eternamente”, há aí uma troca de palavras; metonímia, “Se lá no assento etéreo, onde subiste,”mostrando uma ocultação de palavras; que tornam o texto literário estruturalmente ornamentado, formando assim uma escrita altamente valorizada, original, agradável, sobretudo por efeitos rítmicos e fônicos. São elementos que encantam, não por transmitir uma mensagem, pois o poeta não se preocupa em transmitir algo, mas apenas expressar seus sentimentos. Encanta, por possuir uma linguagem diferenciada e pelo transbordamento da emoção.

De acordo com Valéry, apud Stalloni (2003), se Malherbe comparava a prosa ao caminhar, pode-se muito bem assimilar a poesia à dança:

De fato, enquanto o caminhar é, em suma, uma atividade bastante monótona e dificilmente aperfeiçoável, essa nova forma de ação, a dança, permite uma infinidade de criações e de variações ou figuras (...). O caminhar, como a prosa, visa a um objeto preciso. Ele é um ato dirigido para algo que queremos atingir (...). A dança é totalmente diferente (...). Ela não se dirige a parte alguma.

E por não se dirigir a parte alguma, permite-se usar a criatividade e as diversas formas de variações, deixando fluir a imaginação, sem precisar regular os sentimentos. O poema retrata o estado de espírito do poeta, que ao escrever, deixa fluir do mais íntimo do seu ser, sentimentos e emoções expressas através da magia da fala poética.

Ao analisar criticamente um poema, muda-se completamente a visão que se tem do mesmo. Passa-se a ver com outros olhos. O que antes parecia sem sentido, torna-se compreensível, deixando claro o jogo de palavras que embeleza o poema. Os sons, os ritmos, as figuras de linguagem que compõem os mesmos, dão uma estrutura harmoniosa, e os significados, aos poucos vão aparecendo.

O poema torna-se algo com sentido, onde o autor expressa seus sentimentos, suas emoções, que muitas vezes, de tão escondidas que estão nas suas entrelinhas, precisa um aprofundamento maior, uma reflexão, e uma visão do objeto da mimese descrito pelo autor. Por isso é necessário manter uma intimidade com o poema, uma imersão no mundo subjetivo, ou seja, uma sensibilidade maior por parte do leitor para se chegar a uma compreensão das composições literárias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMÕES, Luís de. Obra Completa. Volume único. Rio de Janeiro. Ed. Nova Aguilar, 2005.

OLIVEIRA, Ana Tereza Pinto de. Minimanual compacto de redação e estilo: teoria e prática. 1 ed. São Paulo: Rideel, 1999.

OLIVEIRA, Paulo de. Enciclopédia do Ensino Integrado e supletivo. São Paulo. Ed. Parma LTDA, 1980.

STALLONI, Yves. Os Gêneros Literários. Trabalho e notas. Trad. Flávia Nascimento. 2 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.

Fran Souza
Enviado por Fran Souza em 05/01/2013
Reeditado em 15/03/2013
Código do texto: T4068149
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