Estudo sobre o haicai ( Benedita Azevedo)
 
Hokku, Haicai, Haiku, Haicai

Uma ampla visão histórica sobre o haicai, desde os primórdios, no japão, e sua naturalização brasileira, no mais completo relato que já li sobre o assunto. Embora venha estudando o haicai desde o ano 2000 e já conheça a maior parte da teoria contida neste estudo, encontrei algumas novidades, numa visão de conjunto bem interessante, na obra, Boa Companhia, 190 páginas, organizada por Rodolfo Witzig Guttilla, um dos fundadores do Grêmio Haicai Ipê, em 1987.

Vejamos o que nos oferece no artigo de  apresentação "Haicai, haicais (ou como o mais importante poema japonês foi abrasileirado). Vale a pena ler e comprar o livro.

 "Poema de origem japonesa, o haicai descende de uma antiquíssima linhagem que remonta ao século VII depois de Cristo: nesse período surge o waka “poema à moda do país de Wa”, como os chineses chamavam o Japão), com versos de cinco e sete fonemas – o equivalente a sílabas métricas no Ocidente. A partir de então, a poesia tradicional japonesa adotará esse metro. Os primeiros waka serão reunidos no “Man’yôshû” (ou “antologia de dez mil folhas”, em uma das muitas traduções possíveis), a maior e mais antiga coletânea poética do Japão, iniciada no ano de 759 d. C. Elaborada entre os séculos VI e VIII, a obra é constituída por vinte volumes e reúne cerca de 4,500 poemas.

A forma poética predominante no “Man’yôshu”, com mais de 4.000 poemas, é o tanka, composto de 5-7-5-7-7 fonemas. Também chamado misohitomoji, ou poema de 31 sílabas”, o tanka dividia-se em duas unidades ou estrofes: a primeira formada por 5-7-5 versos e chamada kami no ku (“primeiro verso”), e a segunda, com 7-7 versos, conhecida como shimo no ku (“último verso”). Durante a Era Heian (794-1185), o tanka passa a ser criado por duas pessoas: uma encarregada da primeira estrofe (denominada hokku), outra pela estrofe seguinte (conhecida por wakiku). No período Kamakura (1186-1339),o pequeno poema vai tornar-se uma espécie de entretenimento entre os cortesões da aristocracia feudal. Entre os anos 913 e 1439, os imperadores japoneses encomendaram 21 antologias aos poetas do período, cada uma com cerca de 20 volumes. O conjunto ficou conhecido por “Chokusen Waka-Shú” (“Coletânea de poemas waka”).

Com o tempo a composição passará a ligar-se a outras estrofes da mesma medida, somando uma centena de versos. A nova forma ficou conhecida por renga e, em seguida, por renga haicai, ou renku. Entre os séculos XVI e VII, surgem duas principais escolas de renga haicai: a Teimon-há, ou ”escola de Mtsunaga Teitoku” (1571-1653) – que buscava a sofisticação da linguagem e a composição elaborada – e a Danrim-fú, ou “templo” cujo principal representante foi Nishiyama Sôin (1605-82).Seguida por monges representantes da burguesia e de artistas populares. Esta escola enfatizava o coloquialismo e, em alguns casos, as expressões vulgares e o humor rasteiro, repercutindo, em seus poemas, a temática das coisas simples e cotidianas.

Nesse momento o hokku, primeira estrofe do renga haicai, ou simplesmente haicai (cujo significado é poema de dezessete sílabas”), irá constitutir-se em expressão autônoma.O terceto atingirá seu apogeu no século XVII, durante o período Edo (1603-1867) sob o mando do clã Tokugawa, quando Matsuó Bashô (1644-94) filho de samurai e samurai por nascimento, renuncia à sua classe social para, aos 25 anos tornar-se monge andarilho. Em sua jornada de autoconhecimento, Bashô eleva o haicai à condição de kadô (ou “caminho da poesia”), infundindo a visão de mundo zen em sua criação, herança do confucionismo e do budismo de estirpe Mahayana – principalmente a crença na interdependência de todas as coisas na natureza, as grandes e as pequenas. Em seu ofício Bashô irá revelar a beleza existente nas coisas modestas, humildes, imperfeitas, transitórias e não convencionais (sintetizada pelo conceito wabi-sabi). Sua escola ficará conhecida por Shomôn, ou “escola de Bashô”. Consta que o poeta teve mais de três mil discípulos em vida, entre eles o chamado Bashô Jijjetzsu (* dez grandes discípulos de Bashô”): Sampu. Kyorai, Ransêtsu, Kyorôku, Kikaku, Josô, Yaha, Shiko, Etsujin e Hokúshi, todos dignos herdeiros de sua trajetória de vida, pautada pela humildade, pelo desapego e pela simplicidade.

Em seguida a esse período virtuoso, Buson (1716-84) , Kobayashi Issa, (1763-1827) e Massoka Shiki (1867-1902) irão estabelecer novos padrões para o pequeno poema, e ascender ao panteão dos haijins (ou “praticantes do haicai”) clássico. Ainda que as diferenças entre buson e Issa sejam evidentes ( o primeiro mais conceitual e racional , o outro confessional e emotivo), é visível a filiação de ambos ao “espírito da época” encarnado por Bashô e sua escola. Um período em que o Japão permanecerá isolado de todo o contato com o mundo exterior.

Nascido no início da era Meiji (1867-1902), Shiki irá presenciar a abertura do Japão para o Ocidente, simbolicamente iniciada em 8 de julho de 1853, quando o oficial da Marinha norte-americana Matthew Calbraight Perry atracou no porto de Uraga, próximo a Edo (atual Tóquio e capital do Império desde o período Tokugawa), com uma esquadra de quatro naus, e apresentou ao Shogunato (senhores feudais locais) o pedido de abertura dos portos do Japão para o comércio e para reabastecimento de naves estrangeiras.

Nesse contexto, o projeto de vida de Shiki será preservar a integridade da poesia japonesa e do haicai como forma original e local. Como parte desse empreendimento, o poeta criará o neologismo haiku (aglutinação de haikai e hokku) para nomear o poema de dezessete sílabas. Irá também estabelecer regras rígidas para sua composição, fundando em 1892 a escola Nippon-há. Entre as principais regras, o poema deveria ser breve, resumindo-se a dezessete fonemas ou sílabas; conter a referência à estação do ano (ou kigô) e ao local de sua criação: ser rico em onomatopeias; e, por fim explicar o kireji, partícula expletiva que pode introduzir uma pausa, denotar a dúvida ou emoção do poeta diante do acontecimento que inaugura o poema – tal como a interjeição”ah” na sintaxe ocidental. Mais próxima à poética de Buson que a de Bashô, Shiki afirmava que seu maior mestre continuava sendo a natureza, em todas as suas sutis manifestações.

ANTECEDENTES DO HAICAI NO BRASIL
 
Passados quatro anos do último haijin clássico japonês, o haicai (como o termo será abrasileirado) entrará no Brasil em 1906, por obra de Monteiro Lobato, então redator, editor e fac-totum de o Minarete, pequeno jornal de Pindamonhangaba, interior de São Paulo. Na ocasião,  lobato irá publicar na Gazela o artigo  “A poesia japonesa” ,  em que pioneiramente, traduz  seis haicais. Dono de espírito crítico e inovador, o autor de “O Sítio do Pica-Pau Amarelo exercerá  grande influência sobre a geração de escritores e poetas que, 1922 romperá com a sintaxe passadista e inaugurará o “modernismo” no país – inspirados não somente, mas, de forma marcante, pela oralidade, pelo coloquialismo e pelo despojamento da narrativa lobatista,

Em 18 de junho de 1908, aportará em Santos a fabulosa nau Kasato Maru, trazendo a bordo 791 imigrantes japoneses. Segundo Massuda Goga, haiku no meigo, ou ”nome de haicaísta”, de Hdekasu Massuda (1911-2008), o primeiro haiku em território brasileiro foi escrito por Shûhei Uetsuka (1876-1935). Momentos antes de atracar.
 
Karetaki
Miagete tsukinu
Imisen
-
A nau imigrante
Chegando: vê-se lá no alto
A cascata seca,

Durante anos, o poema (assim como outra manifestações culturais e artísticas tradicionais) ficará em segundo plano entre os novos colonizadores, empenhados que estavam em garantir sua sobrevivência  no Buragiru, ou Brasil. Somente nos anos 1930 surgirão os primeiros núcleos de haiku entre os colonos, logo interrompidos com o início da segunda Grande Guerra. Nesse ambiente de grandes e tão duras limitações,  Nempuku Sato (1898-1979) irá destacar-se : interlocutor de Uetsuka e mentor de Goga. Nempuku irá comentar e difundir, a partir de 1933, o haiku produzido no idioma japonês no Brasil. Em 1948, lançará a revista mensal  Kokage, dedicada ao poema (que deixará de circular em outubro de 1979, ano da morte do poeta, após 372 números ininterruptos). Tendo em vista a qualidade de sua reflexão e criação poética, Nempuku irá tornar-se o principal representante no Brasil da escola NIPPOM-HÁ, de Massaoka Shiki. Considerando o ambiente de preconceito e exclusão que cercava a comunidade japonesa desde sua chegada ao país, especialmente após a guerra, os primeiros intercâmbios culturais apenas serão admitidos, ao menos publicamente a partir do final dos anos 1940, graças à iniciativa de Guilherme de Almeida
Pouco mais de uma década após a chegada dos primeiros imigrantes japoneses, caberá ao poeta, historiador e crítico literário, Afrânio Peixoto, em 1919, a forma do haicai a brasileiaro: três versos com cinco, sete, cinco pés, respectivamente, totalizando dezessete sílabas métricas. E nada mais.  Tendo em vista o parentesco do metro japonês (5-7) com a redondilha (menor e maior) esse formato será adotado por muitos praticantes do haicai.

Nesse período uma grande e impactante mudança estava para ocorrer no ambiente literário.: no início dos anos 1920, os modernistas romperão com a sintaxe e a métrica tradicionais, inaugurando o verso livre e, principalmente, impondo a linguagem coloquial há poesia (guardadas as circunstâncias da mesma maneira que o movimento empreendido pela escola Danrim, no Japão do século XVII). A temática também será virada do avesso: na era da novíssima Revolução Industrial e da velocidade o poeta descerá do Monte Parnaso e arredores (muitos a contragosto)  para viver o bulício das ruas. Nesse contexto o haicai deduzir-se-á a um terceto breve e bem humorado, cujo tema refletirá a novidade da vida urbana e burguesa, em contraste com a pasmaceira da roça do Brasil profundo, representado pela figura emblemática da figura do Jeca-Tatu, de monteiro Lobato que, de um lado inspira os modernistas a adotarem uma sintaxe livre, nativa e inventiva, deles se afasta, de outro, em virtude de seus valors éticos e estéticos.

1922 e o HAICAI

Em 1922, o haicai era não somente praticado como também discutido por poetas que participaram da Semana de Arte Moderna: após a consagradora estreia da rapaziada no Teatro Mu7nicipal de São Paulo, a revista Klaxon irá comentar, em seu segundo número, as transformações promovidas na poesia japonesa a partir de 1895 (no caso do haiku, como vimos, produzidas por Shiki). Intitulado “A poesia japonesa contemporânea”, o texto9 o texto será assinado pelo poeta japonês Nico Horigoutchi, colaborador da revista. Em “A escrava que não era Isaura, discurso sobre algumas tendências da poesia modernista”, obra escrita entre abril e maio de 1922, Mário de Andrade irá reconhecer a influência de “certos gêneros orientais, benefício que nos veio do passado romântico, os tankas, os haicais japoneses [...]”, na poética modernista.

Foi também neste ano mítico que Luís Aranha entregou a Mário de Andrade os manuscritos daquele que seria seu primeiro livro de poesia. Intitulado Cocktails, o livrinho continha quatro poemas anteriormente publicados em Klaxon, além de muitos inéditos. Em sua própria avaliação, Mário foi demasiado severo, qualificando a poesia de Luís Aranha como “preparatoriana”, e o livro como ”desastre definitivo”. Segundo mais de um crítico, seu juízo implacável condenaria o jovem autor ao silêncio estéril, encerrando, com esse episódio, sua trajetória poética – Cocktails  foi publicado somente em 1986, seis décadas após sua concepção. Em “Drogaria de éter e de sombra”, um dos três poemas longos que compõem a obra, Luís Aranha inseriu dois haicais, o mais saboroso deles inspirado em conhecido poema de Yamazaki Sohán (1465-1552. Trata-se dos primeiro haicais concebidos por um poeta brasileiro.

Após esta iniciativa pioneira, coube ao campeão do modernismo Oswald  de Andrade adotar o haicai em Pau Brasil, marco da poesia moderna. Paulo Prado prefaciador do livrinho publicado em Paris, em 1925, identifica na poética oswaldiana a concisão e a agudeza do haijin. Passados quatro anos, Oswald voltará ao terceto no livro-experimento Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade. Tendo em vista sua inclinação para a zombaria, muitos de seus poemas serão (deliberadamente) mal interpretados, recebendo o  o epíteto de “poema piada”, especialmente seus haicais.

No mesmo ano, Carlos Drummond de Andrade, ainda noviço na cena poética, irá praticar o haicai logo após reunir-se, em 1924, com Oswald, Mário e outro expoentes do modernismo em |Belo Horizonte, por ocasião de uma antologia jornada empreendida pelos paulistas às cidades históricas mineiras, com a intenção de “redescobrir o Brasil”. Seus seis primeiros haicais serão publicados na edição de 27 de junho de 1925 da então prestigiosa revista de variedades Para Todos.  O poeta voltará ao gênero em diversas oportunidades, seja espinafrar a censura nos anos de chumbo, seja para transpor em palavras a dor incomunicável da Pietá, de Michelangelo.

Outro modernista de primeira hora que se encantou com o poema japonês foi Manoel Bandeira. Apesar de ter produzido um único haicai em sua extensa oficina poética, publicado em Lira dos cinquent’anos (Poesias completas, 1940), Bandeira traduziu, com extrema sensibilidade, poemas de Bashô e do espanhol Juan Ramón Jiménez, prêmio Nobel de 1956. Dedicou também grande atenção ao poema do tratado “Versificação em língua portuguesa”, publicado em 1956 pela Enciclopédia Delta Larousse. O haicai estará igualmente presente em sua obra crítica e na correspondência com aigos de ofício, entre os quais Carlos Drumond de Andrade.

GUILHERME, GUIMARÃES ROSA, QUINTANA, MILLÔR E CONCRETOS
 
  Três versos de dezessete sílabas métricas: o primeiro com cinco, o segundo com sete e o terceiro novamente com cinco sílabas. Para rematar, uma rima interna no segundo verso, entre a segunda e a sétima sílaba, e outra ligando o primeiro ao terceiro verso, como representado no diagrama que segue:

­_ _ _ _ X
_ O _ _ _ _ O
_ _ _ _ X

Com esse feitio, Guilherme de Almeida tornou o haicai amplamente conhecido nos anos 1940 por meio de artigos publicados em O Estado de S. Paulo e de poemas reunidos nos livros Poesia vária (1947) e, quatro anos depois, O anjo de sal. Guilherme (segundo Bandeira, “o maior artista do verso em íngua portuguesa”) se destacará entre seus pares por transitar pelas diferentes formas poéticas sempre com maestria. Foi também Guilherme quem inaugurou, como já foi dito, as primeiras trocas de informações sobre o haiku e o haicai entre os primeiros imigrantes  e seus descendentes e os poetas nativos.

Tendo em vista seu virtuosismo e influência no ambiente literário, diversos  poetas passarão a emular o haicai Guilhermiano – caso de Waldomiro Siqueira Jr., autor de Haikais, primeiro livro inteiramente dedicado ao poemeto no país, lançado em 1933, que nas obras seguintes adotará a forma concebida pelo Príncipe dos Poetas. Nesse contexto, Guilherme e seguidores irão atualizar o espírito da escola  Teimon na cena literária tupiniquim.

 Foi também Guilherme que, em 1936, na condição de jurado singular relator da comissão julgadora da Academia Brasileira de Letras, atribuiu a Magma, livro de estreia de João Guilherme Rosa, a premiação máxima. Inédito até 1997 por decisão expressa do autor, o livro – que inaugura a aventura rosiana no mundo da literatura – surpreenderá o examinador por  seu viço e originalidade. Experimento único, Rosa jamais voltará a publicar o gênero. Irá, em contrapartida, impregnar de poesia a sua “prosa-porosa”.

Entre os poemas de Magma, destacam-se nove tercetos, enfeixados sob o título “Hai-Kais”. Tendo em vista  a simpatia  de Guilherme para com o poemeto, é possível especular que foram os haicais nativos e espontâneos do autor de Grande sertão: Veredas que o comoveram. A leitura dos poemas revela que Guimarães Rosa desconhecia, ou intencionalmente ignorou as regras de composição, tanto as eruditas, como as abrasileiradas. Esse fato não irá diminuir a qualidade de suas criações: ao contrário, muitos dos poemas encontram-se impregnados do espírito do zen.

Em 1948, destoando do cânon formalista de Guilherme, o poeta gaúcho  Mario Quintana  publicará  seu primeiro haicai em Sapato florido: intitulado “Hai-kai da cozinheira”, o poema,  deliciosamente singelo, irá expor, na raia dos três  versos, as relações assimétricas  e hierárquicas que delimitam a posição do negro e das classes subalternas no país, com o mesmo lirismo e sabor nativo dos poemas  de Oswald de Andrade, especialmente do Primeiro caderno de poesia... . Ao longo de mais de seis décadas de ofício poético, Quintana publicará cerca de cinquenta haicais, que, por sua qualidade, o alçarão à condição de um de seus  melhores artífices.

Anos mais tarde, a partir de 1956, Millôr Fernandes irá desconstruir  o haicai nas  páginas da revista de variedades  O Cruzeiro, radicalizando a verve humorística dos primeiros modernistas. Sempre ilustrados por charges  refinadas, seus poemas serão acompanhados, semanalmente, por milhares de leitores ao longo de mais de uma década. Nos anos 1970, a elite bem-pensante e seus admiradores passarão a segui-lo nas principais revistas semanais de notícias. Emulando o arrebatamento, foi Millôr quem, de fato, popularizou o haicai no país, projetando-o para as  massas.

Ainda no período que compreende o final dos anos 1950 e meados dos 1960, inspirando pelas vanguardas artísticas europeias  e norte- americanas, bem como pela poesia de Oswald de Andrade (entre outras inúmeras influências), um grupo de jovens poetas paulistas, liderado por Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, passará a discutir o haicai. Nesse ambiente, será marcante o papel de Invenção – Revista de Arte de Vanguarda: criada e editada pelo núcleo duro dos poetas concretos – Edgard Braga, Mário da Silva Brito, Ronaldo Azeredo e Pedro Xisto, além dos irmãos Campos e de Pignatari - , a publicação abrirá espaço para os haicais  experimentais de José Paulo Paes e Pedro Xisto, e para os primeiros constructos  do poeta estreante Paulo Leminski.

CAPRICHOS & RELAXOS: O HAICAI NOS ANOS 1980 E DEPOIS

Nos  anos 1980, o haicai irá consolidar-se na cena literária como uma das mais populares formas poéticas no país. Se no passado o poema e seus autores eram editados por pequeníssimas e inexpressivas editoras, nesse período  virtuoso a editora Brasiliense, a mais influente e prestigiosa casa editorial de então, ocupa papel de destaque. Não menos relevante será a contribuição das pequenas, mas atuantes, casas editoriais Massao  Ohno (que desde os anos 1970 destacava-se em sua atividade, publicando obras de novíssimos poetas e haicaístas) e Roswitha  Kempf, para a difusão do poemeto, graças, em parte, à sua associação com entidades de fomento à cultura japonesa, como a Fundação Cultura Brasil-Japão.

Nesse contexto, a população, em 1983, de Caprichos & relaxos, coletânea de poemas e haicais de Paulo Leminski, pela editora Brasiliense,  constituirá um marco no meio editorial, com grande reflexo na imprensa especializada. Revelado na década de 1960, na revista Invenção, o poeta irá atualizar o haicai por meio de poemas despojadamente líricos. Influenciados pela escola Shomôn, de Bashô e  discípulos, observando e praticando em sua oficina poética princípios do zen-budismo, Leminski promoverá  a conexão do haicai de estirpe modernista com as regras clássicas centenárias, tornando-se a mais importante referência para uma novíssima geração de poetas.

No mesmo ano, Olga Savary, jornalista, tradutora e pioneira do haicai no Brasil, inspirando-se na versão em espanhol do poeta mexicano Octavio Paz e do tradutor Eikichi Hayashiya, publicará uma elegante tradução   de Sendas de Oku (Oku no Hosomichi), o mais conhecido diário de viagem ou Haibun, de Matsuo Bashô. A edição da obra capital de Bashô irá propiciar um ambiente de discussão sem precedentes. Como parte desse movimento renovador, o Encontro Brasileiro de Haicai, promovido um ano antes, em 1982, passará a reunir, na capital paulista, dezenas de pesquisadores, criadores e interessados no poema (em 2008, o evento encontrava-se em sua vigésima edição). Cinco anos depois, surge o Grêmio de Haicai Ipê, também em São Paulo, por inspiração de Massuda Goga, para discutir e traduzir  autores e poemas clássicos. Esse  grupo influenciará, posteriormente, o surgimento de inúmeras agremiações no país. Após esse período profícuo, os anos seguintes serão marcados por lançamentos e iniciativas pouco expressivas, em um processo de diluição do vigor criativo predominante nos anos 1980.

A apatia será interrompida em 1996 com a publicação de Desorientais, opera-magna de Alice Ruiz, que desde os anos 1970 perseverava na prática do poema (o livro de poesia Vice-versos, de 1983, será  reconhecido com o prêmio Jabuti). Em uma década  em que os grandes acontecimentos em torno do haicai serão a publicação  de poemas póstumos de Guimarães Rosa (coligidos, no distante ano de 1936, no livro Magma e publicados sessenta anos depois de sua criação), entre eles nove haicais, e de Paulo Leminski  (reunidos pela família do autor em La vie en close e em O ex-tranho), a poesia de Alice irá chacoalhar a pasmaceira  e o artificialismo anacrônicos  que, à época, tomaram de assalto o poemeto. Para encerrar o período, registre-se a edição de Haikai (1990), coletânea de haikus clássicos, traduzidos por Paulo Franchetti, Elza Taeko Dói  e Luiz Dantas, e de duas novas versões de Oku no Hosomichi , de Bashô: a primeira por Carlos Verçosa (que, em 1996, repetirá o percurso traçado por Savary, tomando por base a versão de Octavio Paz) e a outra, em 1997, por Kimi Takenaka e Alberto Marsicano, diretamente  do japonês.

Apresentado ao leitor brasileiro em 1906, graças ao gênio e ao espírito desbravador de Monteiro Lobato, o haicai  adentrará o século XXI completamente abrasileirado.
  
“POEMIRIM”

Adotado ao longo das décadas por diferentes movimentos literários e correntes estéticas, o haicai receberá  múltiplas  e variadas influências em nosso país. Como se  constatará  nas páginas de Boa companhia:  Haicai, ainda que os haijins brasileiros pouco tenham se dedicado a exercitar a ética e a estética do zen-budismo (as exceções ficarão por conta de Alice Ruiz, Helena Kolody, Olga Savary, Paulo Leminski e Pedro Xisto), seus criadores, tradutores e intérpretes mais notáveis  não se afastarão (ao menos completamente) dos estados de espírito essenciais para sua prática, da forma como descritos por Reginald Horace Blyth (1898-1964), maior autoridade no assunto em língua inglesa. São eles: a abnegação, a aceitação da solidão humana diante do universo, os sentimentos de grata aceitação e de desprendimento do mundo, o exercício  da não intelectualidade, o acolhimento da contradição, a expressão do sentimento de liberdade, a busca pela não moralidade e simplicidade, o interesse pelas experiências concretas e materiais, o amor por todos os seres vivos e matérias  inanimadas, a coragem para enfrentar as vicissitudes  da existência e, por  fim, o humor – de longe a disposição predominante entre os autores presentes nesta antologia.

No plano formal, alguns haijins perseguirão o modelo  tradicional
fixado por Shiki e, no Brasil, por Afrânio Peixoto, adotando o metro  de cinco e sete sílabas. Pouquíssimos recorrerão ao recurso da onomatopeia  (Pedro Xisto à frente) e do  termo que enuncia a estação do ano em que  o poema foi  criado, ou Kigô  (como Abel Pereira, Alice Ruiz, Helena Kolody e Oldegar Vieira, entre os principais que, vez ou outra, o adotaram). De modo geral, todos irão perseguir a brevidade, uma das mais valorizadas qualidades  do haicai à brasileira.

Equivocadamente, uma parte da crítica nacional  tomará brevidade por “síntese”. Nada mais distante do espírito do zen que anima o kadô, ou caminho da poesia, uma vez que o exercício  da síntese pressupõe uma sofisticada operação mental, enquanto  a brevidade deve ser obtida por meio da experiência imediata  e  pessoal da realidade, livre de artifícios cerebrais ou retóricas. O que está em jogo na prática do haicai é menos o poema que a tentativa de reproduzir, com economia de força, a experiência de vida retratada pelo poema. O impacto, diz um conhecido aforismo zen, “é um bom servo e um mau mestre”. Ainda que nitidamente  subordinados ao intelecto, os haicais da turma  de Invenção (Décio Pignatari, Haroldo de Campos, José Lino Grunewald e Pedro Xisto, entre os que compõe esta antologia) revelam a afinidade dos autores  com a filosofia oriental, além  da busca por uma nova sintaxe na poesia, inspirada pelo ideograma e por seu poder de concisão.   
      
Assim como o Japão possui  o seu panteão  dedicado  aos  grandes haicaístas, o pequeno oratório dedicado  ao “poemirim” no Brasil será  dividido (por ordem de chegada) por Guilherme de Almeida, Mario Quintana, Millôr Fernandes, Olga Savary, Paulo Leminski e Alice Ruiz. Obviamente, por tratar-se de uma escolha subordinada a valores éticos e estéticos  do organizador, a escalação certamente poderá ser questionada, em especial pelos amantes da tradição. Nesse caso, o sentimento de grata aceitação será o melhor conselheiro.

 Além de poemas originais, Boa companhia: haicai  traz diversas traduções de haikus clássicos (que virão grafados em itálico). Dentre os principais haicaístas nativos que irão distinguir-se como exímios tradutores, selecionados versões de poemas feitas por Alice Ruiz, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Monteiro Lobato. O leitor  interessado deve investigar, também, as contribuições  de Afrânio Peixoto, Manuel  Bandeira e Olga Savary, entre as principais.

Por fim, infelizmente nem todos os grandes interpretes do haicai no Brasil puderam ser reunidos  nesta edição. Entre as ausências mais sentidas  destacam-se  João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Mario Quintana. Ainda assim, o leitor  que se aventurar pelas páginas deste livrinho se encontrará em boa, muito boa companhia".
 
 Fonte: Transcrito do livro: Boa Companhia – HAICAIS, Organização, Seleção e Introdução, Rodolfo Witzig Guttilla, Companhia das Letras – 2009
 







 

 
Rodolfo Witzig Guttilla
Enviado por Benedita Azevedo em 04/10/2014
Reeditado em 16/06/2016
Código do texto: T4987448
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