Ação afirmativa, sistema de cotas e intervenção estatal

 

Introdução

Ações afirmativas e sistema de cotas são expressões sinônimas, de modo que as providências adotadas tanto numa quanto noutra sejam perfeitamente coincidentes?

Seriam as ações afirmativas (também chamadas “discriminações positivas”) adequadas para garantir a proteção dos direitos das minorias? Em sendo, a intervenção do Estado no processo de seleção das universidades públicas, mediante o vestibular, atendendo à determinação legal do regime de cotas obrigatórias para afro-descendentes é a medida adequada?

São os temas aqui em tela.

Justificativa

 

Liminarmente, há que se distinguir aquelas duas expressões.

Entende-se por ações afirmativas medidas positivas adotadas pelos Estados visando evitar ou pelo menos atenuar os efeitos da discriminação passada e/ou presente, atual. Tratam-se de medidas especiais e temporárias que têm por objetivo acelerar o processo de construção da igualdade.

Dentre essas medidas encontra-se o sistema de cotas para afro-descendentes, que visa eliminar a lógica segregacionista e promover a inclusão social desse segmento social.     

Sendo o sistema de cotas espécie do gênero ação afirmativa, deduz-se que como esta seja uma medida especial e de caráter temporário.

As iniciativas de introduzir no Direito brasileiro algumas modalidades de ação afirmativa decorrem, principalmente, de três fatores:

- do reconhecimento, pelo Governo federal, da existência de discriminação contra negros no Brasil;

- da constatação de que urge tornar efetivo o princípio constitucional da igualdade, implantando no âmbito educacional medidas compensatórias que comecem a mitigar a profunda desigualdade existente entre o que é propiciado à elite branca, que historicamente detém a hegemonia política, econômica e social – e os negros e pobres, aos quais, por tradição, sempre se reserva uma educação de qualidade inferior;

- de ser o tema nobre nas áreas do Direito Constitucional comparado e do Direito Internacional, e que vinha sendo descuidado, olvidado, preterido – principalmente pelo Direito Constitucional pátrio.

Façamos, então, uma breve análise sobre esses fatores.

Desenvolvimento

 

Poder-se-ia distinguir a evolução histórica do conceito de igualdade aplicado às sociedades em três momentos: o primeiro, onde seria impensável a igualdade entre os Homens; o segundo, quando haveria o início do reconhecimento da igualdade entre os humanos, indistintamente; e o terceiro, e atual, no qual a igualdade se mostra atrelada à idéia de justiça, contando, inclusive, com intervenções estatais no sentido de diminuir as desigualdades sociais.

Bruno Herrlein Correia de Melo

Princípio constitucional da igualdade.

Para uma melhor compreensão do assunto em tela, cumpre aqui frisar a importância dos princípios. Princípios são como vigas-mestras de um determinado sistema jurídico e, como bússolas, norteiam todas as normas jurídicas. Se estas deles se apartam ou desviam, automaticamente perdem sua validade e/ou vigência.

A propósito, recordemos aqui, o pensamento de um dos mais ilustres juristas brasileiros:

"Pouca importância dão, em geral, os nossos publicistas às ‘questões de princípios’. Mas os princípios são tudo. Os interesses materiais da nação movem-se de redor deles, ou, por melhor dizermos, dentro deles."

Rui Barbosa

Por conseguinte, violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma, pois se a não observância desta constitui uma ofensa a um mandamento obrigatório específico, a violação daquele resulta em transgressão a todo ordenamento jurídico pátrio.

Posto isso, passemos à análise do princípio constitucional da igualdade.

A atual Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, dedica os quatro primeiros artigos à consagração dos princípios fundamentais que a orientam, que a embasam. Destes, destaca-se o art. 3°, que especifica a diretriz política pela qual se deve pautar o Estado brasileiro:

"Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Aqui, os princípios constitucionais assumem uma função dirigente e impositiva, impondo aos poderes públicos tarefas e programas que devem ser concretizados, precisamente por constarem na Constituição de forma impositiva, obrigatória, vinculando a conduta não só do legislador constituído, mas igualmente as ações de todos os membros dos Três Poderes e de todas pessoas (físicas e jurídicas, públicas e privadas) que compõem a sociedade política.

Na história do Estado de Direito, as noções formal e material do princípio da igualdade têm sido recorrentes nos textos das Constituições.

Na Constituição pátria vigente, essas duas noções encontram-se devidamente insculpidas, em seu art. 3°:

- a igualdade material é a inscrita no inciso III:

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

- e a igualdade formal é a estabelecida no inciso IV:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Por igualdade material entende-se o tratamento equânime e uniformizado de todas as pessoas, inclusive equiparando-as no que concerne as possibilidades de concessão de oportunidades. Ou seja, as chances, as oportunidades de se conquistar os bens da cultura devem ser proporcionadas igualitariamente, para todos os seres humanos. Assim, na busca por atingir o conhecimento, devem ser oferecidas a todos os cidadãos oportunidades, chances de forma igualitária, imparcial, justa.

Embora a sociedade brasileira prime por uma desigualdade material extremada, na Constituição Federal vigente, vários textos visam mitigá-la. Dentre esses destacam-se: o art. 3°; o art. 170 e incisos, que disciplina a ordem econômica e social; o art. 7°, que prescreve sobre a questão salarial; o art. 205, que preceitua sobre a democratização do ensino.

Instaurar a igualdade material é um princípio programático, incluso em copiosas normas constitucionais positivas, dotadas, em princípio, de todas as suas características formais.

A igualdade formal é a prescrita no art. 5°, da Constituição Federal – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,... É a igualdade jurídica, que mais de perto e de imediato interessa ao jurista, e a que mais diretamente rege o legislador, proibindo-o conceder privilégio de classe.

Pela igualdade formal, adotada pelo Estado Liberal, deve este vedar todo tratamento discriminatório, proibindo quaisquer atos do Poder Público (sejam administrativos, judiciais ou expedientes normativos) que de alguma forma venham privar o cidadão do gozo das liberdades públicas fundamentais com base em critérios como raça, religião ou classe social.

Já para promover a igualdade material, o Estado Social que a contempla, se compromete a oferecer oportunidades através de políticas públicas e leis que compensem as desigualdades reais decorrentes do processo histórico e da sedimentação cultural.

A igualdade material, ao contrário da formal, preocupa-se com importantes aspectos que antecedem o ingresso das pessoas no mercado competitivo, com fatores externos como classe ou origem social, a qualidade da educação recebida etc., que influem de forma decisiva no resultado que vierem a obter.

Percebe-se que o princípio da igualdade material absorve e estende o da igualdade formal, pois além de vedar o tratamento discriminatório, busca implementar políticas públicas tendentes a exterminar ou, pelo menos, mitigar as várias desigualdades realmente existentes na sociedade.

Entretanto, se é certo que o princípio da igualdade está consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil, em vários de seus principais artigos, incluso no Preâmbulo deste Diploma Legal, tendo, inclusive, status de norma supraconstitucional - ou seja, trata-se de um princípio, direito e garantia, ao qual todas as demais normas devem observância - a igualdade no exercício dos benefícios e ônus nunca foi material, real, efetiva para todos os cidadãos brasileiros. No mundo fático, o que se constata são profundas desigualdades sócio-econômicas, configurando, destarte, que aquelas normas que objetivam diminuí-las, são desrespeitadas de forma contumaz e sob a égide da impunidade.

Igualdade e dignidade

Observe-se que o princípio da igualdade é um dos que estão amalgamados ao princípio constitucional maior, pelo qual se pauta todo o ordenamento jurídico brasileiro: o princípio da dignidade da pessoa humana.

O princípio da dignidade humana tem status universal, assim definido pela Declaração Universal de Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, que em seu artigo 1° determina que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Ou seja, é nesse diploma legal universal que tem origem aquele amalgamento, aquela indissociabilidade entre dignidade e igualdade, existente em nossa Carta Magna.

Como assinalou Fábio Konder Comparato, todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. Com base nesse pensamento, digo eu: se todas as coisas têm um preço, todas as pessoas têm dignidade.

Dignidade da pessoa humana: o que significa esta expressão? O vocábulo pessoa já não recebe uma distinção redundante quando a ele apensamos o humana? Dignidade: se tem ou se é digno? Ser digno é diferente de ter dignidade? Ter dignidade é mais importante do que ser digno?

Ter dignidade parece uma idéia carregada do velho patrimonialismo, que leva o homem a crer que pode comprar quanta dignidade os seus bens materiais permitirem. Ser digno já transmite a idéia de que ou o homem se esmerou para alcançá-la, ou de que ela lhe é inata. É esta dignidade - a inata - que o Direito deve – efetivamente - começar a respeitar, proteger e assegurar a todos os seres humanos. Todos os seres humanos são dignos, independente de sexo, raça, língua, religião, opinião política e condições pessoais e sociais. Independente de ser ou não “rei da criação”, de ser ou não o único ser racional, de ser ou não o único ser autoconsciente, o ser humano é digno tão-somente porque está dotado desse bem fascinante e admirável que é a – vida.

Cumpre ainda lembrar: não existe justiça sem igualdade. Sem dúvida, vivemos numa época de “relativização” dos conceitos, que faz muitos considerarem o vocábulo justiça ambíguo, complexo e polissêmico, pois atribuem a ele significados múltiplos, criando uma discussão semântica de largo espectro e, não raro, de conteúdo vazio e nulo. Infelizmente, o egoísmo e a hipocrisia fundamentam os sofismas que são criados para a compreensão - ou não compreensão - de certos termos.

Contudo, dentro da Hermenêutica Filosófica, Karl Raimund Popper assim nos elucida:

Que queremos realmente dizer quando falamos de ‘Justiça’? Não penso que indagações verbais dessa espécie sejam particularmente importantes ou que seja possível dar-lhes resposta definitiva, visto como tais são sempre usados em diversos sentidos. Contudo acho que a maioria de nós, especialmente aqueles cuja formação geral é humanitária, dá-lhe um sentido mais ou menos de: a) igual distribuição do ônus da cidadania, isto é das limitações de liberdade que são necessárias da vida social; b) tratamento igual dos cidadãos perante a lei, desde que, naturalmente, c) as leis não se mostram favoráveis ou desfavoráveis para com determinados cidadãos individuais, ou grupos, ou classes; d) imparcialidade das cortes de justiça; e) parte igual nos benefícios (e não só no ônus) que o caráter do membro do estado pode oferecer a seus cidadãos (Karl Raimund Popper, A sociedade aberta e seus inimigos.[1])

A idéia de justiça, portanto, está intimamente ligada à de igualdade de todos os seres humanos. Se todos não forem iguais perante a lei, se todos não tiverem iguais garantias legais, se todos não tiverem iguais direitos, inexiste justiça – pois o objetivo desta é precisamente proporcionar igualdade entre as pessoas – todas as pessoas, independente de raça, sexo, religião, status social etc.

Por conseguinte, promover a igualdade não significa eliminar os desiguais. Ao revés, a promoção da igualdade só se efetiva quando aos desiguais são propiciadas formas de alcançar as mesmas oportunidades, ou seja, é preciso oferecer oportunidades honestas a todos.

O reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da existência de discriminação contra negros dentro do território nacional.

Lamentavelmente, se geneticamente não há raças (pois em exames de DNA a diferença entre negros e brancos é mínima), socialmente elas existem. E dentre os mais discriminados encontram-se os negros e pardos. Tradicionalmente, são estes os mais atingidos:

 - pelo desemprego: a população negra representa mais da metade dos desempregados das principais cidades brasileiras, conforme pesquisa divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconomicos (Dieese), em novembro de 2006;

- pelo analfabetismo: segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados no final de setembro de 2007, dois em cada três analfabetos brasileiros são negros ou pardos (e esses dados são obtidos em um país em que quase metade da população declara-se branca);

- por menores salários: de acordo com os resultados da Síntese dos Indicadores Sociais 2007, divulgada no final de setembro de 2007, pelo IBGE, brancos ganham, em média, 40% a mais do que negros ou pardos com a mesma faixa de escolaridade;

- pela ausência de saneamento básico: de acordo com estudo feito pela pesquisadora Maria da Piedade Morais, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), negros e pardos são os mais atingidos com a falta de saneamento. Com o cruzamento de dados colhidos pelo Ipea com as informações do IBGE, negros e pardos são as maiores vítimas da falta de saneamento: o percentual de negros e pardos é quase o dobro do de brancos na mesma situação: 35,9% contra 18,7%.

Diante dos dados, bastante fragilizado fica o argumento de que a implantação do sistema de cotas gerará uma discriminação contra os brancos, visto que esta discriminação, esta desigualdade é ilusória, existente apenas quando imaginamos o pior dos mundos; enquanto que a desigualdade e a discriminação sofrida pelos negros e pardos são reais e cotidianas, e encontram arraigadas na sociedade há séculos.

O Direito Internacional

Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos, outro Tratado Internacional importantíssimo para o tema, é a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, adotada pelas Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965, que integra o sistema especial de proteção dos direitos humanos, e visa proteger um sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações. Ou seja, ao contrário do sistema geral de proteção que se destina, abstrata e genericamente, a toda e qualquer pessoa, o sistema especial tem como alvo um sujeito de direito concreto historicamente situado, especificado e particularizado, de acordo com categorizações concernentes ao gênero, idade, etnia, raça etc.

Os dois sistemas conjugam-se, somam-se e reforçam-se tendo por fito atingir o mais aprimorado e eficaz aparato de proteção, defesa e promoção dos direitos humanos.

Esta Convenção apresenta duas metas, básicas e indissociáveis:

- combater e eliminar toda e qualquer forma de discriminação racial; e

- promover a igualdade.

Logo em seu art. 1°, esta Convenção determina o que será considerado discriminação racial:

Artigo 1º - Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação racial" significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.

Ou seja, a discriminação racial será sempre a medida que tenha por objetivo ou efeito anular ou restringir a igualdade de condições no exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

A contrario sensu, o § 4° do mesmo artigo, estabelece o que não será considerado discriminação racial:

§ 4° Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.

 É neste sentido que são admitidas as cotas raciais, medidas especiais e temporárias, cujo intuito é o de acelerar ou implantar o processo de construção e efetivação da igualdade, ao aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório.

Diante de tantas formas de discriminação racial existentes, constitui um importante avanço ter a comunidade internacional, enfim, chegado a um consenso sobre a necessidade, imediata e inadiável, de coibir e, simultaneamente, promover a igualdade material ou de resultados.

Entretanto, é consabido que a discriminação não se desarraigará tão-somente proibindo-a através de legislação repressiva. Urge que sejam adotadas medidas aptas a inserir e incluir na sociedade grupos historicamente dela apartados, alijados. É preciso, pois, unir essas duas frentes – a repressiva-punitiva à positiva-promocional.

Esse consenso internacional - que consagra que a des­semelhança étnica-racial deve ser convivida como equivalência e não vivida como escudo (superioridade) ou desonra (inferioridade) - é sobranceiro à diversidade cultural dos povos, complexa e arraigada.

O Brasil, desde 1968, é signatário dessa Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação racial. E o resultado disso é que esse Tratado internacional introduz importantes mecanismos entre nações de monitoramento dos direitos nela manifestos, estando o país signatário obrigado a apresentar relatórios que demonstrem por quais métodos e medidas o Brasil tem dado cumprimento aos dispositivos da Convenção. Além do controle internacional no âmbito normativo nacional, a Convenção também tem incentivado que a legislação sobre a matéria seja aperfeiçoada. Como conseqüência desse incentivo, os mais expressivos avanços legislativos são a própria Constituição Federal, de 1988 (na qual destacam-se o art. 7°, inciso XX, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, bem como o artigo 37, inciso VII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência), e a decorrente legislação infra-constitucional regulamentadora – da qual há de se distinguir as Leis ns. 7.716/89 e 9.459/97.

Contudo, esses mecanismos legislativos nacionais previam medidas apenas na frente repressiva-punitiva, e ainda assim com pouca eficiência, pois decisões que condenem criminalmente a prática do racismo são esporádicas. E o são porque alguns membros do Poder Judiciário ainda não se libertaram de certas idéias condicionadas (por exemplo, ainda crêem no mito da “democracia racial brasileira”), de certos tipos de preconceito (até inconscientes), e também por ignorarem as leis nacionais – e, principalmente, as internacionais – que regem o combate à discriminação racial.

Urge, pois, que se elimine essa ignorância sobre o aparato normativo – nacional e internacional –dentro da comunidade jurídica.

Refrise-se aqui que o sistema de cotas não visa preservar a igualdade formal, mas a igualdade material, porquanto se ficarmos restritos àquela manteremos o status quo. Como disso historicamente nos deram exemplos várias nações que, limitando-se à igualdade formal, sempre registraram os índices de injustiça social mais extremados e vergonhosos. E isso porque ter políticas governamentais de combate à desigualdade social fundamentadas tão-somente na crença de que todos terão acesso aos mesmos instrumentos, é, no dia-a-dia, dar continuidade à perpetuação da desigualdade.

Logo, observando-se que o efetivo progresso na implementação do direito à igualdade inexiste apenas com medidas coibitivas e punitivas, tornam-se inadiáveis providências que sejam capazes de estimular e promover a inclusão daqueles grupos que vêm sendo rejeitados, preteridos, excluídos.

Passos nesse sentido são dados com a elaboração da Lei n° 9.100, de 1995, (alterada pela Lei n° 9.504, de 1997), que determina que cada partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. É também elaborado o Programa Nacional de Direitos Humanos, o qual expressamente se refere às políticas compensatórias, estabelecendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em proveito dos grupos atingidos pela preterição social.

Nesse contexto, surge o Programa de Ações Afirmativas na Administração Pública Federal, com o oferecimento de cotas para afro-descendentes em universidades – como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), dentre outras.

Voltando à esfera internacional, em 2001, durante a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, o Brasil apresentou um documento oficial no qual defendeu a adoção de medidas afirmativas para a população afro-descendente, bem como a utilização, em licitações públicas, de um critério de desempate que considere a presença de afro-descendentes, homossexuais e mulheres no quadro funcional das empresas concorrentes.

A Conferência de Durban, nos parágrafos 107 e 108 de suas recomendações, endossa de modo pontual a importância de sejam beneficiadas com ações afirmativas as vítimas de discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância congêneres.

(Continua)