Paradoxos entre a Constituição Federal e o trabalho escravo

“Seja o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’” (Mt 5:37). O Brasil é o país dos paradoxos. Além dos contrastes físicos e culturais que encantam os turistas, também predominam em seu território os contrastes socioeconômicos/legais que depõem contra ele, vez que são responsáveis potenciais pela escravização de quase um quarto de sua população, que somente sobrevive à custa da exploração de sua dignidade.

“Que lindo! Que maravilha! Que espetáculo! Isso aqui é um paraíso! Brasil! Brasil! Brasil-sil-sil!”. Frases assim adocicam os ouvidos dos guias turísticos brasileiros da Ponta do Seixas à Serra da Contamana, do monte Caburaí ao arroio Xuí, eufemizando sua condição de subempregados, sem CTPS assinada e sem patrões, de “autônomos” sem autonomia. Destarte, apesar de bonitos, esses ditos são também retratos coloridos da realidade em preto e branco vivida pelas maiorias desse país.

É de destacar que o Brasil não está conseguindo incluir o seu povo no processo de globalização, conforme atesta a “última pesquisa da empresa de consultoria A. T. Kearney e da revista Foreign Policy, com a avaliação de 62 países que representam 85% da população mundial. O Índice de Globalização (IG) do Brasil é o 57º” . Além disso, segundo relata a Organização das Nações Unidas, seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mediu a qualidade de vida de seu povo no ano de 2003 é de 0,792. No ranking dos 177 países pesquisados, o Brasil ocupou a 63ª posição, registrando-se que esse IDH denota o contraste brasileiro da desigualdade na distribuição de renda. Segundo o relatório “só em cinco países os 10% mais pobres ficam com uma parcela de renda menor que a dos brasileiros miseráveis. [...] Por outro lado, em apenas sete países os 10% mais ricos da população se apropriam de uma fatia de renda nacional maior que a dos ricos brasileiros, que abocanham 46,9% da renda”. Uns têm tudo e vivem bem; outros não têm nada e são condenados a servir àqueles, com salários e jornadas de escravos. Essa é a verdadeira “morte e vida severina” de João Cabral de Melo.

Extremamente ricos e extremamente pobres. Vivendo nos extremos desses contrastes, a parte mais frágil, mesmo majoritária, dança perigosamente na corda bamba, a mercê de seus opressores, para os quais a solução da miséria do planeta ainda segue a velha fórmula romana do “pão e circo”, hoje rebatizada pelo vocábulo: “tittytainment, combinação de entertainment (diversão, entretenimento) e tits (gíria americana para seios ou tetas). Ao cunhar a expressão, Brzezinski pensou menos em sexo e mais no leite da mãe que amamenta. Com uma mistura de diversão anestesiante e alimento suficiente – o ‘entretenimento’ numa tentativa de tradução –, a vasta legião de frustrados e excluídos poderia ser mantida satisfeita”.

Pão e circo. Esta é a solução dos ricos para aquele que só tem “de seu” as mãos, os pés, a barriga vazia e cujo projeto de vida mais feliz é de um dia poder incluir-se no sonho capitalista e poder viver em um país do primeiro mundo, mesmo que seja trabalhando em ritmo escravo, duas, três ou mais jornadas diárias de trabalho, sozinho, longe de seu país e de seus familiares, como degredado.

“Tittytainment”. São muitos os falsos heróis que levam essa gente a sonhar com a alforria a ser dada pelo capital, enquanto vive no mundo da lua, através dos bolsões de pobreza do Estado opressor, como soldados dos “exércitos de reserva”, aguardando a convocação para substituir aqueles que sucumbirem nas frentes de construção do Estado capitalista: deles, na medida deles e para eles tão somente, em detrimento do ideal democrático “do povo, pelo povo e para o povo”, do qual fica apenas o “pelo povo”, da força de trabalho. De resto, é de destacar o sangue ardente que pulsa pelos corações dessa gente cada vez mais oprimida, principalmente porque busca libertar-se pela pedagogia do dominante, ao invés da sua própria, conforme orienta Paulo Freire.

Pobres... Costa e Silva dizia que “os ricos devem continuar cada vez mais ricos para poderem proporcionar a felicidade aos pobres” . Pobres... Jesus disse: “Os pobres vocês sempre os terão consigo” . Mas, da mesma sorte que “nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores” , nossos pobres também são mais pobres. Desde 2004, são mais de 44,8 milhões de miseráveis segundo divulgação da Fundação Getúlio Vargas .

Além das manifestações escravagistas de ordem fática, o mal se agrava através dos paradoxos existentes no próprio ordenamento jurídico pátrio. Aduz o texto constitucional em seu art. 1º, III, que a “dignidade da pessoa humana” é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, complementando em seu art. 3º, que esta tem dentre outros, o objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

É evidente que tais dispositivos são pilares a serem seguidos em tudo e por tudo, pelo povo brasileiro, como pautas de suas ações e omissões. De que adiantaria ao Brasil ter uma Constituição se ela não fosse respeitada enquanto tal? Segundo o juiz John Marshall, da Corte Suprema dos EUA dos idos de 1803, nos autos do caso Marbury x Madison, “com certeza, todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram no objetivo de determinar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseqüentemente, a teoria de tais governos deve ser a da nulidade de qualquer ato da legislatura ofensivo à Constituição” .

Todavia, em que pese haver adotado e aperfeiçoado essa postura desde 1891, construindo um dos melhores controles de constitucionalidade do mundo, o Brasil ainda admite como constitucional as “normas programáticas” meramente intencionais, pelas quais têm legitimado diversas ações e omissões inconstitucionais, como ocorre, v.g. com aquela insculpida no art. 7º, IV, da CF/88, que concede ao trabalhador um salário mínimo “fixado em lei, [...], capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.

Veja-se que, apesar da Constituição, apenas o valor “mínimo” tem sido considerado como norma de eficácia plena. Sobre o que se deve atender esses R$ 300,00 por mês, fixados pela Lei nº 11.164/05, não há Constituição. Polemiza-se ao absurdo para não se conceder mais que alguns pontos percentuais. E aqui está o xis da questão do trabalho escravo, quando se trabalha, mas não se é remunerado condignamente. Nesse caso, ou as leis que fixam esses valores são declaradas inconstitucionais pela afronta aos arts. 1º, III e 7º, IV da CF/88, ou então inexiste trabalho escravo no Brasil e todos têm o que comer, o que vestir e tudo o mais que necessita uma pessoa humana. Então não é a realidade vivida pelos brasileiros que está pintada em preto e branco; é o filme usado pelo fotógrafo que não é colorido. Sabe-se, no entanto, que esses não são os fatos, vez que ninguém consegue viver dignamente com 300 reais por mês.

Conclui-se, portanto, que o problema do trabalho escravo no Brasil perpassa pelos paradoxos existentes entre o ideal constitucional de dignidade e a realidade sócio-econômica indigna vivida pelo povo e aceita como natural pela sociedade brasileira. A superação desses contrastes culminará com a instalação de uma ordem justa e igualitária para todos. Essa deve ser a luta de todos os brasileiros.

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NOTAS

BUSCANDO eficácia na gestão pública. Gerente de Cidade, São Paulo, ano 9, n. 35, p. 1-5, jul.-set. 2005.

Idem.

MARTIN, H. A armadilha da globalização. 3.ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 12.

ARQUIVO N. Globo News. Documentário exibido em 02/12/2005 pelo canal 105 da TV por assinatura Sky.

BÍBLIA de estudo NVI. Mateus. São Paulo: Vida, 2003, cap. 26, v. 11, p. 1661.

DIAS, G. Canção do exílio. In: GOMES, V. M. M. C. (Org.) Poetas e escritores românticos do Brasil. São Paulo: Novo Brasil, 1987, p. 58

DANTAS, F. Número de miseráveis cai 8% no país. O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 nov. 2005. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=33409>. Acesso em 03/12/2005.

MIRANDA, H. S. Curso de direito constitucional. 2.ed. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 129, N.R.