A desaprovação de Rui Barbosa à escolha de Clóvis Beviláqua para o projeto do Código Civil de 1916.

Dias atrás publiquei um artigo no sítio da revista eletrônica Recanto das Letras: “Nosso primeiro Código Civil demorou quase um século” que trata da história do Código Civil de 1916, que mesmo já tendo decorrido mais de um século, ainda intriga e surpreende no meio jurídico brasileiro.

Neste trabalho procuraremos focar em outros aspectos dessa história e que se inicia com a escolha do professor Clóvis Beviláqua para o projeto de elaboração do nosso primeiro Código Civil. A elaboração desse diploma legislativo era considerada, à época, a maior honra que poderia caber a um jurista e a garantia segura de sua imortalidade no panteão nacional.

Após a independência, foi editada a Lei de 20 de outubro de 1823, que estabelecia as bases do direito Imperial e já consignava a previsão de uma legislação nacional. A Constituição brasileira de 1824 também propugnava por um Código Civil e Penal, o quanto antes.

O Código Penal foi aprovado em 1830, seguido do Código de Processo Penal em 1832. Em 1850, ganhamos um Código Comercial. Só após a promulgação deste último, deu-se conta da urgência de se fazer um Código Civil, partindo-se, então, da cogitação para a execução.

A legislação civil vigente à época consistia na aplicação continuada das Ordenações Filipinas de 1603, constituída pelo disperso e amontoado conjunto normativo composto de regulamentos, alvarás, decretos e resoluções promulgados pelos reis de Portugal e vigentes à época da independência, até que surgisse uma legislação nacional.

Só em 1855, o governo imperial resolveu iniciar o processo de elaboração do Código Civil brasileiro. No entanto, entendeu que, antes da codificação, era preciso fazer uma ampla e prévia revisão da numerosa e espessa legislação brasileira.

Para a execução dessa tarefa foi nomeado o grande civilista baiano Teixeira de Freitas. O próprio jurisconsulto avaliou a situação em que se encontrava a nossa legislação civil, qualificando-a como “um imenso caos de leis complicadas e extravagantes”. Em 1858, foi aprovada a Consolidação das Leis Civis, com 1.333 artigos.

Ainda no mesmo ano, o governo Imperial, pelo Decreto nº 2.318, autorizou o Ministério da Justiça a contratar o próprio Teixeira de Freitas para a árdua tarefa de elaborar um Código Civil para os brasileiros. O resultado foi uma obra genial, com quase 5.000 artigos, que Freitas denominou de “Esboço de Código Civil”, que, ainda inacabado, não recebeu uma boa aceitação pelo fato de promover a unificação do Direito Civil ao Comercial.

O próprio imperador D. Pedro II tinha grande interesse no tema, participando, inclusive, da seleção de juristas. O caso da escolha do jurista português Antônio Luís de Seabra e Sousa, o Visconde de Seabra, autor do Código Civil português de 1867, deu o que falar e foi desencorajado por pesadas críticas. Argumentava-se que não se poderia aceitar a feitura do código por um jurista da antiga metrópole colonial, quando no Brasil já existiam grandes nomes dignos desse desiderato.

A tarefa de construir o Código, por motivos variados, tornou-se intermitente e vários juristas abraçaram essa missão, além dos já citados: Nabuco de Araújo (1872), Felício dos Santos (1881/82), Antônio Coelho Rodrigues (1890/93).

Finalmente, em abril de 1899, o então ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, incumbiu o jornalista e professor de Direito Clóvis Beviláqua para redigir o anteprojeto do Código Civil brasileiro, num prazo de oito meses. Aceitando a empreitada, o jurista mudou-se com a família para o Rio de Janeiro.

A partir desse ponto, segue-se na direção de um enredo confuso e intrincado que somente terá fim no final do ano de 1915, com a aprovação do Código Civil a viger a partir de 1º de janeiro de 2017.

O processo de elaboração do código, portanto, se inicia com Teixeira de Freitas. É ele quem vai abrir a marcha, que Milton Duarte Segurado faz analogia com os movimentos da ópera, ou seja, ora solene, ora trágico, ora rápido, ora vagaroso. Sobre o Código Civil, em 5 movimentos: 1. “passionato” (Teixeira de Freitas); 2. “affetuoso” (Nabuco de Araújo); 3. “con motu” (Felício dos Santos); 4. “con anima” (Coelho Rodrigues); 5. “agitato com fuoco” (Clovis Beviláqua)”[1].

O quinto dos movimentos é o que nos interessa e se inicia com a escolha do jurista Clovis Beviláqua para elaborar o tão esperado e badalado Código Civil brasileiro, aproveitando-se, tanto quanto possível, o trabalho do piauiense Antonio Coelho Rodrigues, e só terminaria com sua aprovação em janeiro de 1916.

À época do convite para elaborar o projeto do Código Civil, Clóvis Beviláqua era um civilista relativamente jovem. Lente da Faculdade de Direito de Recife, se destacava pela discrição e sobriedade, pelo trabalho aturado, pela vasta erudição, mansidão de espírito, poder de síntese e clareza de exposição. Não tinha ambições políticas ou literárias. Era um acadêmico puro do mundo do direito, obediente ao partido acadêmico de que era produto e cuja ambição era viver entre os livros de sua biblioteca, escrevendo sobre filosofia e doutrina jurídica, elogiando os amigos e lhes fornecendo pareceres sem lhes cobrar um níquel sequer. [2]

Beviláqua era um legítimo representante da Escola de Recife, considerada por muitos como o primeiro movimento filosófico organizado do país. Ficou marcado pela influência das ideias de Tobias Barreto, brilhante filósofo representante do germanismo e líder inconteste daquele grupo na Faculdade de Direito de Recife.

Além de civilista, Clovis teve destacada produção jurídica em muitos outros campos do direito, como o Direito Internacional Público e Privado, Direito Constitucional, Legislação Comparada de Direito Privado, História, Literatura, Economia Política e Criminologia. Seus comentários ao Código Civil brasileiro e, sobretudo, a sua defesa do Projeto de Código Civil, tornaram-se obras célebres.

Durante 28 anos Beviláqua dedicou-se à função de consultor jurídico do Itamaraty. De 1906 a 1934, redigiu centenas de pareceres, à frente do Ministério das Relações Exteriores. Foi, seguramente, o consultor que mais tempo esteve à frente do cargo, na Casa de Rio Branco.

A competência e a disponibilidade, somada à sua irreverência política, permitia a Clóvis Beviláqua ser benquisto por todos os seus ex-colegas de faculdade, que não viam nele um concorrente, mas um gênio do Direito em que podiam confiar e ao qual podiam recorrer.

Em 1890, foi secretário do governo do Estado do Piauí e integrou, no ano seguinte, a Assembleia Constituinte que redigiu a primeira Constituição do Estado do Ceará, chegando, inclusive, a presidir os trabalhos. Renunciou ao mandato por ter sido voto vencido na propositura de um referendo popular para aprovação da Carta (tema atualíssimo, que Clóvis, visionário, trouxe à baila há 120 anos), retornando suas atividades de professor e articulista de jornais, publicando alguns de seus livros de literatura, filosofia do direito, história, direito civil e economia política. [3]

O convite a Beviláqua partiu de Epitácio Pessoa (ministro da justiça do governo de Campos Sales, e futuro presidente do STF e presidente da República), seu contemporâneo da Faculdade de Direito de Recife. Portanto, não foi uma escolha impensada. O ministro lembrou-se daquele jurista moço e ainda relativamente obscuro, que com ele colou grau no mesmo ano de 1882, na Faculdade de Direito de Recife.

Na época da indicação de Beviláqua, o Brasil vivia um verdadeiro contraste: de um lado, o entusiasmo decorrente de efervescência cultural própria da “belle époque”, e de outro, uma depressão econômica mundial que, no país, assumia proporções muito mais dramáticas.

Sob o aspecto cultural, o Brasil vivia o seu esplendor. Surge, em 1897, a Academia Brasileira de Letras, que teve Machado de Assis como presidente da instituição. O próprio Machado, em 1891, publicara Quincas Borba e, em 1890, Dom Casmurro. Em 1888, Olavo Bilac, autor marcado pelo extremo rigor na linguagem e na forma, estreia na literatura com o livro Poesias. [4]

Sob o aspecto da economia, o presidente Campos Sales adotava uma política ortodoxa de contenção de gastos para colocar em ordem a inflação e as finanças públicas descontroladas pela política do encilhamento. Esta política foi adotada por Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda do governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca, com o propósito de irrigar o meio circulante que já não atendia às necessidades da nova economia pós-abolição dos escravos que a partir daí passaram a receber salários.

A nomeação de Beviláqua não agradou a Rui Barbosa e sua reação foi retumbante e surpreendente, considerando-a “um rasgo do coração, não da cabeça”. Alegava que uma tarefa dessa envergadura não deveria ser elaborada por uma única pessoa e que o encarregado da tarefa não possuía o suficiente conhecimento do vernáculo.

Vejamos o que Ruy Barbosa, redator-chefe do jornal “A Imprensa”, escreveu nos dias 14 e 15 de março de 1898: "Aí está por que, ao nosso ver, a sua escolha (de Beviláqua) para codificar as nossas leis civis, foi um rasgo do coração, não da cabeça. Com todas as suas prendas de jurisconsulto, lente e expositor, não reúne todos os atributos, entretanto, para essa missão, entre todas melindrosa. Falta-lhe ainda, a madureza de suas qualidades. Falta-lhe a consagração dos anos. Falta-lhe a evidência da autoridade. Falta-lhe um requisito primário, essencial, soberano para tais obras: a ciência da linguagem, a vernaculidade, a casta correção do escrever. Há nos seus livros, um desalinho, uma negligência, um desdém pela boa linguagem que lhe tira a concisão, lhes tolda a clareza, lhes entibia o vigor". [5]

Para Rui Barbosa, apenas um nome se erguia acima da plêiade dos grandes juristas da época: o de Lafayette Rodrigues Pereira, mais conhecido como Conselheiro Lafayette, que vinha da geração de Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo e se erguera pelo prestígio dos seus livros à autoridade de um oráculo.

Para alguns, Rui foi movido por despeito e inveja, pois gostaria, ele mesmo, de ter sido o autor do projeto. Para outros, o que motivou o magistral jurista baiano, principal redator da Constituição Republicana de 1891, foi o zelo com a elaboração legislativa, procurando o debate amplo e detido da matéria, a fim de evitar aprovação açodada que comprometesse o conteúdo de obra de tamanha envergadura, a primeira codificação civil do Brasil.

Politicamente, Rui não nutria nenhuma simpatia nem com o presidente Campos Sales, tampouco com o seu ministro da Justiça Epitácio Pessoa, o que contribuiu para que as críticas do senador tivessem uma grande repercussão e provocassem um intenso debate junto à sociedade.

A redação do projeto foi concluída em outubro de 1900 e encaminhada ao Congresso Nacional, onde iniciou sua tramitação. Na Câmara dos Deputados, foi constituída uma comissão especial de 21 membros, cujo relator geral foi Sílvio Romero.

Antes de concluído os trabalhos dessa Comissão, seu presidente, o deputado baiano José Joaquim Seabra, confiou a seu conterrâneo o filólogo e professor Ernesto Carneiro Ribeiro a revisão da parte gramatical do projeto Beviláqua. O trabalho de revisão a cargo do professor baiano consistia em leitura e correção e foi realizado, conforme seu próprio depoimento, em apenas quatro dias e algumas horas. O projeto foi votado pela Câmara no mesmo ano e aprovado sem maiores dificuldades. Ainda em 1900, foi encaminhado ao Senado.

No senado, uma comissão presidida por Rui Barbosa já estava de prontidão, aguardando-o. Ao final de três dias, Rui apresentou duzentas e dezessete folhas manuscritas, com o seguinte título: “Parecer do senador Rui Barbosa sobre a redação do projeto do código civil”. A atuação do senador gerou uma comoção nacional em um projeto que parecia ir para o senado apenas para uma ratificação do que se fizera na Câmara dos Deputados.

Em abril de 1902, o presidente da Comissão apresentou 524 emendas de redação. Não tratou de questões jurídicas, cingindo-se, apenas, a questões gramaticais.

Muitas foram as discussões e polêmicas, mas um dos momentos maravilhosos destas polêmicas ocorreu entre os baianos Rui Barbosa e o médico, filólogo e professor de português Ernesto Carneiro Ribeiro, que elaborou a revisão da redação do texto do Código Civil. Este último havia sido professor de Rui Barbosa e Castro Alves nos bancos escolares do Liceu baiano.

Em artigo ulterior, trataremos do embate gramatical travado entre Ruy Barbosa e o seu ex-professor.

Os senadores consumiram mais de uma década em debates, destacando-se as polêmicas intervenções de Rui Barbosa, defensor de que “a pressa na votação forçosamente haveria de produzir uma obra tosca, indigesta, aleijada”.

A discussão somente foi retomada porque a Câmara propôs adotar o projeto até que o Senado tomasse uma posição. Assim sendo, o Senado aprovou-o, acatando as emendas de Rui Barbosa.

Em 1912, o projeto volta à Câmara, onde se iniciam os últimos debates, até sua aprovação final em 1915.

Em janeiro de 1916 foi sancionada pelo presidente Venceslau Brás, para viger a partir de 1º de janeiro de 1917, aquela que, conforme o próprio Beviláqua, seria a maior obra legislativa do Parlamento da República: o nosso primeiro Código Civil.

Djahy Ferreira Lima é contador e advogado.

REFERÊNCIAS:

[1] SEGURADO, Milton Duarte. O Direito no Brasil. Ed. Universidade de São Paulo. 1973. p. 385.

[2] ROMERO, Lauro. Clóvis Beviláqua. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1956, p.25.

[3] SCHUBSKY, Cássio. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-set-04/justica-historia-clovis-bevilaqua-senhor-brasileiro.

[4] LYNCH, Cristian Edward Cyril. Disponível em: https://www.academia.edu/34570147/Rep%C3%BAblica_evolucionismo_e_C%C3%B3digo_Civil_a_presid%C3%AAncia_Campos_Sales_e_o_projeto_Cl%C3%B3vis_Bevil%C3%A1qua.

[5] DANTAS, San Tiago. Rui Barbosa e o Código Civil. file:///C:/Users/Djay/Dropbox/Organização%20-%20Pessoal/Direito/História%20do%20Direito/História%20do%20Código%20Civil%20de%201916/Rui%20Barbosa%20e%20o%20Código%20Civil%20-%20San%20Tiago%20Dantas.pdf.

DJAHY LIMA
Enviado por DJAHY LIMA em 14/10/2017
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