La Cathédrale (parte 01)

A noite estava quente e havia algumas dezenas de magnatas em suas coberturas com piscina, sentados em suas cadeiras de praia, mas o que tornava aquele sujeito especial era, em definitivo, a estaca firmemente fincada em seu peito.

Olhando para ele, Bárbara lembrava como fora tola nos primeiros meses de não-vida ao apavorar-se diante de um simples pedaço pontudo de madeira. Todavia, seu preceptor lhe tranqüilizou a esse respeito, afirmando categoricamente que mesmo trespassando o seu coração, uma estaca somente a deixaria paralisada. Claro que para outras castas de vampiros, uma estaca de madeira seria fatal.

Se alguém pudesse ver o pequeno grupo reunido ao redor do vampiro estaqueado, poderia pensar que eram velhos amigos. Todos riam e faziam piadas. Foi Jean-Baptiste que teve a idéia de colocar bermudas no vampiro paralisado, Apófis encontrara a camisa florida, Alijandro emprestou-lhe os óculos escuros, Darkmoon trouxera os chinelões e Bárbara tratou de fazer uma limonada (com três cubos de gelo) para colocar na sua mão entorpecida. Em menos de dez minutos o sujeito estava todo montado à espera do seu derradeiro banho de sol.

Bárbara ainda encontrara um bronzeador e tratara de passar no corpão do vampiro. Claro, imagine se ela ia perder a chance de alisar aquele tórax sarado, o peito, as coxas... uau.

- Um dia - seu preceptor sempre dizia - todos esses impulsos humanos vão deixar de fazer sentido pra você, Babi. Nada de sexo, comida ou drogas.

Bárbara achava uma graça o jeitinho que ele falava o seu nome (o biquinho que ele fazia ao pronunciar a última sílaba), mas em quase um século e meio de existência, jamais deixara de sentir tesão. Um tesão que não era manifesto por um calor entre as pernas, mas por caninos pontiagudos.

Naquela noite ela sussurrara para seu preceptor que nunca poderia deixar de desejar um gostosão como aquele que Darkmoon queria executar. Se arrependeu logo em seguida.

Ele agarrara rudemente o seu braço, puxando Bárbara para longe dos outros e dizendo num tom baixo, mas irritado:

- Cale a boca, Bárbara - seu rosto se tornara uma máscara fria - Sua estupidez ainda vai nos matar.

- Me larga..

- Ouça-me - o vampiro lhe falou, fincando ainda mais as garras em seu braço - você está falando do homem que escravizou nosso povo durante mil e trezentos anos e não de um brinquedinho insignificante como os que você usa para se divertir quando pensa que eu não estou olhando.

- Eu não acredito nisso, Otaviano - Bárbara retrucara, com um misto de raiva e dor - Não acredito que esse pobre coitado seja um dos Sete Tiranos. Olha pra ele, porra.

- Quando você tiver a minha idade, vai aprender a não ver somente o óbvio, Babi - ele respondeu, soltando o seu braço.

Otaviano não estava mais nervoso, mas mesmo assim ela manteve-se cautelosamente distante.

- Mas ele é tão frágil - ela arriscou dizer - quase como um ignaro. Nem reagiu quando os outros atacaram.

- Ele está muito mais longe de ser um não-iniciado do que nós, Babi. Todo traço de humanidade nele se foi há meio milênio. Você disse para que eu o olhasse, mas olhe você. Não olhe para o seu corpo atlético, ou entre as suas pernas como você sempre olha. Olhe dentro dos seus olhos, se é que você consegue, e me diga depois se ele não é o Tirano.

A conversa se encerrara ali mesmo e, na verdade, ela não conseguiu encarar o sujeito, mesmo com a estaca enfiada no seu peito.

Com um gesto, ela apagou de sua mente aquelas recordações. Tudo aquilo acontecera há três anos em Nova Iorque. Desde então, a Mantilha Dilacerada se desfez, ela voltara para São Paulo e seus velhos companheiros inquisidores a caçavam tão obstinadamente quanto haviam caçado o Tirano.

Somente Otaviano a acompanhara, mas ele se tornara tão inumano que limitava suas emoções a uma exígua faixa de expressões, como uma leve tensão ao redor da sua boca e o olhar ligeiramente alheio quando estava realmente furioso. Isso e a cordialidade glacial com que seu antigo preceptor a tratava cuidaram para que ambos não tornassem a se encontrar, desde sua chegada à megalópole paulista.

De vez em quando vinha o desejo de ligar para ele, mas aquele era um relacionamento condenado. Portanto, ela se limitava a olhar para o telefone até seu desejo passar, ou então, ligava a televisão e zapeava até que os canais se embaralhassem em sua mente e ela se transportasse para aquela noite quente em Nova Iorque há três anos, como invariavelmente acontecia.

A noite de quarta-feira arrastava-se preguiçosamente sem que Bárbara encontrasse nada divertido para fazer. Tornara-se uma videota. Se não houvesse nada passando na tv, então, sintonizava a MTV e ficava assistindo a algum clipe, sem prestar atenção realmente.

Uma leve perturbação no ar, que não chegava a tocar meros sentidos, como a visão ou a audição, mas algo como uma flutuação de energia, atingiu sua nuca provocando um ligeiro arrepio que percorreu sua espinha, eriçando pelinhos e chamando a sua atenção.

Ela não estava mais sozinha.

Sem que houvesse qualquer mudança perceptível em sua postura - parecia uma garota displicentemente estendia no seu sofá, entediada e despenteada - Bárbara preparou-se. Seus olhos postos na televisão já não via mais as imagens, nem seus ouvidos ouviam a música. Todo o seu ser fora transportado para o último quarto do espaçoso apartamento, onde alguém ou alguma coisa abrira cuidadosamente a janela.

No instante imediatamente anterior à voz da amiga chegar-lhe ao ouvido, Bárbara sabia de quem se tratava.

- Toc, toc - disse Ana Clara, escondendo alguma coisa por trás daquele tom jovial - alguém em casa? É a moça da Yakult.

Sem esconder a alegria Bárbara correu em direção à amiga com os braços abertos e um sorriso nos lábios.

- Aninhaaaaa - dizia em um tom infantil.

- Euzinhaaaaa - respondia Ana Clara, no mesmo tom.

- Onde você se meteu, menina? Nunca mais recebi um telefonema seu, nem e-mail, nem nada. Será que eu tenho que ir naquela sua cidadezinha caipira pra te ver? - disse Bárbara em tom de cobrança, mas a expressão de desconsolo de Ana Clara fê-la ficar preocupada - O que aconteceu, Aninha? Que cara é essa?

A máscara de descontração de Ana Clara tinha desaparecido completamente. Se fosse humana, provavelmente estaria tremendo e chorando, mas vampiros não tinham essas reações involuntárias. Seus olhos esquadrinhavam algum ponto no rosto de Bárbara, sem, no entanto, enxergar a amiga. Parecia estar revivendo algum inferno particular.

- Meti-me numa enrascada, Babi. Você sempre disse que eu não devia me meter com demônios e tinha toda razão, sabe. Consegui ferrar a minha vida de vez, amiga. Perdi tudo, Bravuna virou o playground do inferno e você é tudo o que eu tenho agora.

Bárbara puxou a amiga contra si e deu-lhe um abraço apertado.

- Depois você me conta tudo, está bem? - falou afagando a cabeça de Ana Clara como se faz com uma criança bem pequena - Você sabe que pode ficar em casa quanto tempo você precisar. Vai ser bom estar em sua companhia, querida.

Ana Clara apertava-lhe o suficiente para esmagar qualquer humano, mas ela não ligava. Sabia que, se a confortasse agora, poderia pedir o que quisesse que a amiga não lhe negaria. Quase inconscientemente Bárbara Borges Campanaro começou a fazer planos.

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Lukas definia ghûl como um sujeito legal, que obedece a todas as ordens de um mestre-vampiro e que tem o péssimo hábito de devorar carne humana três vezes por dia.

Algum desmorto cretino decide que você dará um ótimo escravo de sangue, te mata e faz algum ritual tenebroso pra te trazer de volta. Daí vêm as "agradáveis" alternativas, que dependem do vampiro em questão ou do ritual utilizado: ou você vira um zumbi, do tipo que tem a inteligência de uma ameba e o vigor de leproso aidético, ou então, se você é um sujeito com MUITA força de vontade, vira um ghûl.

Se o vampiro que te criou é um cara esperto, mas esperto de verdade, então você vai viver para sempre, o que pode ser bom ou ruim, dependendo de como o teu "mestre e senhor" te trata. Tem o lance dos três goles de sangue, ou três picos na veia, dependendo quanto o teu mestre é moderninho (às vezes eles nem fazem questão de serem chamados de mestre, às vezes é "fornecedor" mesmo). O lance é o seguinte: se o teu mestre tiver o poder, ele te dá três doses do seu próprio sangue mágico e você passa a viver para sempre, mas em compensação, pode dizer "bye bye" pra tua liberdade. Corre à boca pequena que existem ghûls independentes, aliás, o que dizem MESMO por aí é que certos ghûls CAÇAM vampiros atrás do seu sangue.

Três semanas, foi o tempo que Lukas levou pra descobrir essa porrada de informações no Submundo Ghûl (aquilo que os vampiros chamam de Tálamo de Prometeu), mas ele próprio não era mais do que um ghûlzinho vagabundo que fora apanhado de improviso num lotação em Ferraz de Vasconcelos, "renasceu" em uma lixeira e tinha como fornecedora uma tal Ana Clara Castro Scariöttto.

Ele sabia que não tinha sido o primeiro sujeito que ela pegou no caminho entre Cordeirópolis e Sampa, mas também sabia que se ele fosse inteligente, aquele bico tinha chance de virar um trabalho pra vida inteira, o que podia durar um bocado de tempo, considerando que ele não morreria de velhice. Se ele não fosse astuto, digamos que Aninha não iria chorar no seu enterro. Agora, se ele fosse manhoso de verdade, esperto pra cacete, podia ser ele que ia ver o enterro da Aninha. E não ia chorar também.

O que Lukas tinha que fazer naquela quarta-feira, enquanto Aninha cuidava de enrolar a sua "amiga" ricaça, era dar um recadinho pro tal Jean-Qualquercoisa, um francezinho de merda que estava na captura da tal madame. Outra coisa importante, pensava o ghûl ardilosamente, era cuidar de fazer o seu "seguro de não-vida" caso Aninha estivesse pensando em descartá-lo.

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Desde que fora iniciado nos mistérios do Sangue, Mathew desejara ser um dos inquisidores. Era uma ambição comum visto que qualquer vampiro do Novo Mundo temia e adorava os membros do Tribunal Negro da Devil Zone com igual intensidade.

Para a grande maioria dos não-mortos americanos a D-Zone representava a elite das elites. Uma grande irmandade das sombras que dominava todo o continente americano e representava a única real oposição às pretensões imperialistas das "Famílias Ancestrais" do Velho Mundo.

Somente os vampiros indicados pelo grão-prior Cátedra Annangel podiam ser encaminhados para os temidos ritos de iniciação da D-Zone, aos quais, somente 5% dos candidatos sobreviviam.

Depois que Mathew passara por todo aquele perigoso processo é que ele pôde avaliar a verdadeira dimensão da instituição que o acolhera, cujo auge era, sem sombra de dúvida, o Tribunal Negro.

Trinta anos depois de se tornar um membro efetivo desse Tribunal, ou seja, tornar-se um inquisidor, e ganhar mais condecorações do que todos os seus colegas oficiais que Mathew pôde finalmente trabalhar junto com os maiores heróis de toda a D-Zone, os três Bispos Negros da antiga Mantilha Dilacerada: Jean-Baptiste Lecroix, Apófis e Alijandro Vázquez.

A história de como, durante três séculos, a Mantilha Dilacerada caçara o Primeiro Tirano destruindo-o irrevogavelmente, ecoava nos corredores secretos do Tablado Oculto americano e enchia os corações não-mortos de um justificável orgulho.

Igualmente justificável era a ira do Tribunal Negro que se abatia sobre os dois traidores, que covardemente abandonaram a mais alta classe inquisitorial da D-Zone para se aliar às decadentes Famílias Brasileiras. Todos os vampiros verdadeiramente americanos sentiam-se compelidos a caçar tais traidores e destruí-los irrevogavelmente afim de salvaguardar a honra e o bom nome da D-Zone.

Assim, Mathew odiava com todo o seu ser aquela vagabunda da Bárbara Borges Campanaro e tudo o que a ela estivesse relacionado, portanto era perfeitamente compreensível que ele não tratasse com cortesia o abjeto ghûl que representava sua amiga Ana Clara.

- Ih, cara! - dizia Lukas pela décima oitava vez naquela noite - Ce não ta sacando nada, né? Eu tenho que falar com o tal Jean-Poucamerda pessoalmente, sacou?

Pela décima oitava vez naquela noite, Mathew socou a cara do ghûl.

- Calaboca, gado humano - ordenou - Se abrir essa matraca de novo eu vou parar de ser tão delicado!

- Mas eu tenho que falar com o francezinho de bosta pessoalmente, ô cara - replicou Lukas, bancando o durão - Outra coisa: Dá pra me desamarrar?

Ao levantar o punho sujo de sangue Mathew ouviu Jean-Batiste ordenar:

- Deixe-nos a sós, Mathew.

Ao sair, o inquisidor ainda conseguiu ouvir:

- Você é o francês? Olha, cara. Eu tava só zoando com o teu moleque. Saca só, tenho um papo FEDERAL pra te contar, valeu.

O francês, sempre muito profissional, arrancou os olhos do ghûl, entregou a Apófis e disse:

- Tome, faça sua mágica e localize a vadia enquanto eu me divirto com nosso amigo aqui.

Apófis, um dos últimos descendentes da lendária Lâmia, levou o par de globos oculares para o seu laboratório com isolamento acústico, onde os gritos horrorizados do ghûl não poderiam desconcentrá-lo.

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O Sr Jessé pertencia ao Comando Desmodus há cinqüenta e sete anos e nunca vira tamanha falta de profissionalismo na vida.

- Ouça como a vadia geme, cara - um de seus monitores comentava - Todas essas vampiras são assim?

- Não - o outro respondia, visivelmente contrariado - Só as tlahuelpuchi.

- Tlahue o que?

- É, cara. Você não leu os informes, porra?

- Não, meu tio, que é senador, descolou esse trampo pra mim e...

O "sobrinho" assustou-se quando Seu Jessé arrancou os fones violentamente, machucando as suas orelhas.

- Sr Carvalho - falou Jessé, irritado - Nenhum de nós está interessado nos supostos contatos políticos do seu suposto tio, nem estamos interessados em suas opiniões a respeito do comportamento de nossos alvos, faça-nos o favor de guardá-las para si mesmo. Agora: SENTA AÍ E CALA ESSA BOCA!

Paulo La Facce, que trabalhava somente há treze horas e meia como monitor para o Comando Desmodus, tentava sem muito sucesso sufocar o riso. Ele sabia que não devia falar em serviço, mas não fora ele quem puxara o assunto, certo? Seu colega, o Carvalho, limitava-se a colocar os fones e olhar para a tela, acabrunhado.

Voltaram a ouvir as duas vampiras:

Indivíduo # 2 [Pára Aninha, assim você me mata.]

Indivíduo # 1 [Você já tá morta, sua tonta]

Meia hora de gemidos e palavrões mais tarde, aquelas duas apagaram o fogo e começaram a conversar. Paulo passou a escutar mais atentamente. O Carvalho deixara seu posto para "ir ao banheiro" há dez minutos.

Indivíduo # 1 [Então o seu cavaleiro de armadura brilhante se foi, Babi]

Indivíduo # 2 [Bem, digamos que a armadura dele já foi mais brilhante.]

/ som de risos / análise de voz requerida / alvo secundário confirmado / nome atual: Bárbara Borges Campanaro / alvo primário cofirmado / nome atual: Ana Clara Scariötto / deseja pesquisar? Sim Não / Pesquisa Recusada

Indivíduo # 1 [É sempre assim, Babi. Quanto mais velhos, mais distantes. Especialmente na casta dele]

Houve uma longa pausa depois disso. Paulo chegou a verificar se todos os microfones dissimulados estavam funcionando.

/ executando verificação / verificação em 5% / verificação em 30% / verificação em 75% / verificação em 99% / verificação concluída / todos os sistemas operantes / deseja verificar novamente? Sim Não / verificação recusada

O operativo tamborilava nervosamente com os dedos no painel de controle. Ele sabia que não devia fazer isso também, mas ninguém estava olhando, certo?

Olhou para trás, nem sinal do Carvalho. Sujeito estranho. Paulo já fizera serviços assim pra polícia federal antes de pegar aquele trabalho. Sempre tinha um palhaço como aquele querendo aparecer, num trabalho onde o objetivo é não aparecer. Quanto tempo será que ele ficaria trancado lá se masturbando? Jesus Cristo, o sujeito nunca tinha ouvido duas mulheres transando não? Paulo sentia que teria problemas com aquele ali. Tirou os fones e os verificou. Depois verificou o fio. Nada. Ou os alvos ficaram mudos, ou dormiram, ou aquela merda toda tinha enguiçado.

Paulo já pensava em como fazer seu relatório colocando a culpa do incidente no companheiro de vigilância quando ouviu a voz de Bárbara:

Indivíduo # 2 [Não quero que isso aconteça conosco, Aninha]

Indivíduo # 1 [Ei, sou eu lembra?]

/ som de risos / análise de voz requerida / alvo primário confirmado / nome atual: Ana Clara Scariötto / deseja pesquisar? Sim Não / Pesquisa Recusada / confirme finalização do assistente de pesquisa Sim Não / finalizando

Paulo suspirou aliviado. Continuem falando suas putas, não fiquem mudas no meu turno.

Indivíduo # 2 [As vampiras da sua "casta" não ficam frias, não?]

Indivíduo # 1 [Não, querida. Ficamos mais quentes com o passar do tempo. Vem cá, vou te mostrar]

Mais gemidos, mais palavrões e mais quarenta minutos se passaram antes que elas voltassem a conversar. Paulo imaginou que os caras que monitoravam o vídeo deviam estar se divertindo, mas depois se corrigiu: os trevatti (como Bárbara) não apareciam em câmeras de vídeo.

Indivíduo # 2 [Ana]

Indivíduo # 1 [Eu]

Indivíduo # 2 [O que aconteceu em Bravuna?]

Indivíduo # ??? [Ai cara.] ATENÇÃO padrão irreconhecível [Não quero falar sobre isso]

Paulo rapidamente digitou algumas linhas de comando para corrigir aquela discrepância. A vadia devia ter colocado a cara no travesseiro e aquele programinha de merda não estava mais reconhecendo a sua voz.

Indivíduo # 2 [Ana, mais cedo ou mais tarde você vai ter que encarar isso.]

Indivíduo # ??? [Ai cara.] Indivíduo # 1 [Tá bem. Vou fazer um resumão, e já vou avisando, a senhorita não vai arrancar mais nada de mim. Você lembra que eu tava doida pra me livrar do Centro Sigma, né? Sabe como aqueles caras controlavam Bravuna, mesmo sendo ignaros]

Por um instante Paulo esquecera o que significava "ignaro". Consultou o seu palm-trn:

Ignaro: port / ig.na.ro / adj. 1. Que é falto de instrução; ignorante. 2. Estúpido, insensato / vamp / 1. não-iniciado 2. laico, mortal, mundano, adormecido 3. humano não-mago, não-ghûl, não-transmorfo, não-psíquico, não-hospedeiro de nenhuma entidade/deus/demônio.

[Aí, sabe como eu sempre fiz aqueles pactos que você nunca gostou com aqueles demônios que você gostava menos ainda? Bom, eu arrumei um livro, o Tomo Negro dos Expurgos da Putaquepariu, que eu esqueci o nome. Arrumei esse livro e pretendia usar a magia pra, sabe, tirar o Centro Sigma deste plano e mandá-lo pra algum outro lugar menos agradável, ou então, fazer uma lobotomia mística no Conselho Diretor do Lugar que era um pé-no-saco, embora eu não tenha saco. É complicado e eu sei que você nunca teve interesse por magia do tipo infernal então, deixa essa parte de lado.]

Cristo. A mulher parecia uma metralhadora giratória de palavras. Paulo percebia alguns sons, que o programa (claro) não identificava direito, que eram tentativas de apartes de Bárbara, mas a tal Ana "Tagarela" Clara não deixava a outra falar.

[Bom, o negócio deu certo às avessas e, ao invés de eu mandar alguma coisa, de preferência o Centro Sigma pro outro plano, eu acabei, e sinto muito por isso, trazendo o outro plano pro Centro Sigma, ou melhor, pra Bravuna. Agorinha mesmo aquele lugar, que como eu já tinha dito quando a gente se encontrou, virou o playground do inferno, deve estar mais cheio do que lotação em dia de greve de ônibus, de demônios. Sacou?]

Indivíduo # 2 [Você invocou o inferno pra Bravuna?]

Indivíduo # 1 [Parte do inferno. Aliás, inferno é uma nomenclatura muito errada que muita gente usa, especialmente nesses países católicos pra identificar qualquer plano inferior que eles não saibam, nem queiram, chamar de qualquer outra coisa além de inferno. Aí acaba ficando inferno mesmo, mas não é EXATAMENTE o inferno bíblico, aliás nem existe uma descrição exata do inferno de Dante, com seus nove círculos e aquilo tudo, na bíblia, pelo menos não nos livros canônicos, aceitos pela Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana como sendo divinamente inspirados, não to falando dos apócrifos. O que existe é muita imaginação e boas intenções, e de boas intenções, você sabe, com o perdão do trocadilho, o inferno está cheio.]

Pelo amor de Deus, manda essa mulher calar a boca um segundo.

Indivíduo # 2 [Aninha, deixa eu digerir tudo isso, certo?]

Indivíduo # 1 [Quer que eu explique de novo?]

Indivíduo # 2 [NÃO]

Indivíduo # 1 [Não precisa gritar]

Indivíduo # 2 [Você trouxe o INFERNO pra Terra]

Indivíduo # 1 [Não... e Inferno na Terra é o nome de um filme horrível. Eu sei porque eu assisti quando estreou e...]

Indivíduo # 2 [Tá Aninha, mas você trouxe algum plano inferior pra Terra?]

Indivíduo # 1 [Também não. Tecnicamente eu fiz a sombra de um plano inferior se projetar sobre Bravuna, o que não é a Terra toda, mas somente uma cidade. Esse plano inferior, que não é, eu repito, o inferno, tipo assim, projeta essa sombra e então... putz... é complicado pra quem não manja nada sobre metafísica intraplanar. Hum, vou ter que usar uma analogia e analogias não são o meu forte, mas eu tento, eu tento, não precisa fazer cara feia. Você já jogou Silent Hill?]

Indivíduo # 2 [Não, Aninha.]

Indivíduo # 1 [Não? Ok. É como ser o Lobisomem Americano em Londres. Assistiu esse filme?]

Indivíduo # 2 [Não lembro.]

Indivíduo # 1 [Lobisomem Americano em Paris?]

Indivíduo # 2 [Aninha, vamos supor que eu não tenha televisão em casa.]

Indivíduo # 1 [Mesmo assim. Você podia ter visto no cinema, ou baixado na Internet, ou...]

Indivíduo # 2 [Aninha. Você estava explicando que a sombra desse plano inferior se projeta sobre Bravuna]

Indivíduo # 1 [É tipo assim: é uma sombra, uma coisa sem substância, mas em alguns momentos, que podem ser dias ou noites, ou dias santos, ou feriados, ou qualquer outra bobeira, essa sombra toma substância. Claro que tudo isso tem a ver com o alinhamento dos planetas, e quando digo planetas entenda que não se limita a Júpiter ou Mercúrio, mas alinhamento dos layers, que são dimensões, ou planos que vibram numa intensidade...]

Indivíduo # 2 [Aninha, volta. Essa coisa que está em Bravuna, ela fica real quando?]

Indivíduo # 1 [Eu não sei direito, mas eu acho que...]

Indivíduo # 2 [E ela vai se limitar a Bravuna?]

Indivíduo # 1 [Eu te interrompo? Eu não te interrompo né? Então porque você me interrompe quando eu to falando?]

Indivíduo # 2 [Ana Clara Castro Scariötto, essa coisa se limita a Bravuna ou não?]

Indivíduo # 1 [Você ta achando que a gente ta gravando o programa do Chaves né? O que eu devo falar agora, que você só me chama de Ana Clara quando está brava comigo?]

Indivíduo # 2 [Se limita ou não?]

Indivíduo # 1 [Como assim?]

Indivíduo # 2 [A Coisa vai ficar SÓ LÁ? É isso que eu quero saber. Estou cagando se você invocou Belzebu, eu quero saber se tem chance desse Satã vir até aqui pegar a gente.]

Indivíduo # 1 [Não a Coisa, como você chama, vai ficar só em Bravuna, mas ninguém estará a salvo se entrar em Bravuna. Mas tem uma coisa...]

Indivíduo # 2 [O que é?]

Indivíduo # 1 [Eu não invoquei Baal Zebub ou Shaitan, o que eu invoquei de verdade foi...]

Nesse momento Paulo tirou os fones de ouvido. Sua cabeça estava girando e seus ouvidos zunindo. Baixou por um momento a cabeça, olhou para o relógio e ficou imaginando quanto tempo agüentaria ficar ouvindo aquela vampira tagarela.

Quando ouviu a porta do compartimento se abrindo, falou:

- Cara, fica aí um momento que a minha cabeça ta doendo.

No entanto, ao olhar para cima, deu com Jean-Baptiste encarando-o.

- Seu amigo está morto - falou o francês - Assim como você.

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O corpo nu da vampira se contorcia ao toque de Ana Clara e o prazer que sua carne provocava fechava a mente de Bárbara para quaisquer outras informações sensoriais como, por exemplo, o som da porta do apartamento sendo arrombada ou dos passos apressados em direção ao quarto.

Ana Clara sempre definia o seu dom com uma frase: "Posso transformar todo o seu corpo em um órgão sexual hipersensível". No entanto, ela sabia que seu poder não se limitava ao êxtase sexual. Suas vítimas entravam em um outro universo onde se afogavam em deleites sensoriais tão sublimes que muitas delas nunca emergiam da experiência, mergulhando pelo resto da vida (ou não-vida) em um sono catatônico.

Ironicamente a vampira não compartilhava desses deleites enquanto não lhes sorvesse o sangue, restando-lhe a espera paciente do momento adequado para drená-lo juntamente com o orgasmo e tudo mais que sua presa estivesse vivenciando.

Mathew, o mais jovem integrante da nova Mantilha Dilacerada foi o primeiro a entrar no quarto onde as duas vampiras se "divertiam". A filha de Tlazolteotl estava entre as pernas de uma Bárbara semi-consciente quando seus olhares se cruzaram e o novato, totalmente esquecido das recomendações de Jean-Baptiste para que NÃO OLHASSE diretamente para Ana Clara quaisquer que fossem as circunstâncias, deixou-se encantar pelo corpo apetitoso da vampira.

Sem muito tempo para "brincar", Ana Clara permitiu que a língua do rapaz entrasse em sua boca, liberando seu poder e arrebatando o novato até dimensões que ele jamais sonhara alcançar, enquanto rasgava a roupa do rapaz com suas garras.

Jean-Baptiste entrou no quarto e, cruzando os braços, encostou-se tranqüilamente no batente da porta para melhor apreciar a cena. Ele percebeu que Ana Clara sentara-se na barriga de Bárbara, para manter o contato de suas carnes, enquanto beijava Mathew conservando assim, os dois vampiros em êxtase, não obstante, mantendo os olhos na porta.

Ainda com os olhos fixos em Ana Clara, começou a citar a bíblia, como sempre fazia antes de perpetrar alguma crueldade:

- Ai da cidade ensangüentada! Ela está toda cheia de mentiras e de rapina! Da presa não há fim! O estrépito de açoite, o estrondo das rodas, o galopar dos cavalos e os carros que saltam! A cavalaria que ataca, espadas flamejantes e lanças cintilantes! Multidão de mortos, abundância de cadáveres, não têm fim os defuntos, tropeçam nos seus corpos; tudo isso por causa da multidão dos pecados da bela e encantadora meretriz, da mestra de feitiçarias, que vende povos por seus deleites, e famílias por suas feitiçarias.

O som de vidro se estilhaçando feriu os ouvidos de Ana Clara quando Apófis atravessou a janela caindo sobre a cama, que imediatamente arriou sob seu peso. Dois dos quatro braços reptilianos, cujas escamas eram imunes ao poder da tlahuelpuchi, agarraram a vampira, forçando-a largar Mathew, enquanto a parte inferior do corpo de Apófis rapidamente assumia um aspecto serpentiforme terminando em uma cauda bipartida dotada de dois grandes ferrões de escorpião.

- Sou contra ti, diz Yaheweh dos Exércitos - continuou Jean-Baptiste - Lançarei sobre ti coisas abomináveis, e te envergonharei, e pôr-te-ei como espetáculo. Jahweh-Elohim é vingador e cheio de furor. Ele tem o seu caminho no meio da tormenta, e na tempestade, e as nuvens são o pó dos seus pés. Ele repreende o mar, e o faz secar; esgota todos os rios. Os montes tremem perante ele, e os outeiros se derretem. A terra se levanta na sua presença, e o mundo, e todo os que nele habitam. A sua cólera se derrama como fogo, e as rochas são por ele derrubadas.

Mathew recobrou os sentidos bem a tempo de ver o vampiro francês apontando o dedo para Ana Clara para finalizar sua arenga:

- O destruidor vem contra ti. Anche la ti divorera il fuoco. Ti divorera come la specie della locusta. Si accampano nei recinti di pietra per igreggi in un giorno freddo. Non deve Che rifulgere il sole, e certamente fuggono via; e il luogo dove sono e realmnete sconosciutto.

Ouvindo o vampiro terminar a homilia em italiano e não em francês ou latim, Apófis percebeu a decisão do francês em não aniquilá-las imediatamente e protestou:

- Basta de jogos, Jean-Baptiste. Destruamo-las agora. Posso guardar suas almas para que tu te entretenhas depois.

Mathew viu que Jean-Baptiste já ia responder, mas alguma coisa o distraiu e fê-lo virar a cabeça, atônito. O novato viu que os olhos do vampiro estavam arregalados e moviam-se freneticamente de um lado para o outro enquanto seu corpo assumia uma postura estranha, meio defensiva e meio evasiva. Procurou Apófis com os olhos para perguntar o que estava acontecendo, mas acabou por encontrar o corpo nu de Ana Clara.

Sofrendo com a falta de sangue no organismo e sentindo que a tenacidade do aperto de Apófis diminuíra, Ana Clara usou toda a sua força para livrar-se do abraço do transmorfo e pular em cima de um Mathew totalmente entregue aos seus encantos.

Bárbara, abrindo os olhos, viu a surpresa de Apófis quando uma pré-adolescente loira fincou-lhe as presas no pescoço, sugando seu sangue venenoso. Sem entender como Apófis e a menina tinham entrado no quarto ela invocou as trevas do Mundo Inferior mergulhando o apartamento em uma escuridão impenetrável.

Mesmo no escuro Jean-Baptiste ainda podia sentir as auras de Bárbara, deitada na cama; de Apófis, paralisado pelo êxtase da mordida; da pequena intrusa pendurada no pescoço de Apófis; de Ana Clara sobre Mathew; de Mathew sob Ana Clara; e de dois outros vampiros incrivelmente poderosos em algum lugar no apartamento, um dos quais ele conhecia muito bem.

Podendo enxergar perfeitamente na escuridão do Mundo Inferior, Bárbara ainda conseguiu ver Jean-Baptiste de relance antes que alguma coisa o agarrasse pelo pescoço, o levantasse e arremetesse contra a parede do quarto destruindo-a, levando o vampiro francês consigo.

Mathew sentia que seu pênis havia sido introduzido num mundo alucinante, onde ondas de prazer cada vez mais intensas atingiam seu corpo quase despedaçando-o com o impacto quando, de súbito, voltou à realidade e viu Ana Clara sendo levantada pelos cabelos e jogada sobre a cama. Um instante mais tarde ele sentiu uma mão entrando pelo seu ventre, perfurando a carne, fechando-se sobre a sua coluna vertebral, levantando-o e arremessando-o de encontro à janela despedaçada, trinta andares acima do solo.

Bárbara, ainda aturdida, olhou para a face do vampiro, reconhecendo-o no mesmo instante.

- Você tem uma coisa que me pertence - disse o homem conhecido na história dos ignaros como o Princeps Cæsar Octavius Augustus e entre os vampiros como o Primeiro Tirano; o homem que reinou sobre todos os vampiros do séc III até o séc XVI.

Pergamasco
Enviado por Pergamasco em 31/08/2006
Código do texto: T229263