La Cathédrale (parte 04)

Na escuridão densa e fria do Mundo Além da Mortalha a vampira lembrou-se de uma coisa que ouvira em algum lugar, mas que naquele exato momento não conseguia recordar onde: "Senhores, venham até mim, venham até mim, venham. Eu os arrastarei por uma vida bem selvagem através de uma rasa e vã mediocridade, que é o que vocês merecem.As suas bem humanas insaciabilidades terão lábios, manjares, bebidas. Eu os deixarei em rodopios fascinantes, vivos nos castelos e nas trevas, e nas trevas vocês verão todo o esplendor".

Ao contrário do que postula a ciência ignara, a matéria pode ser destruída, embora isso não aconteça no orbe terrestre. Há um lugar onde todas as coisas são aniquiladas, onde a energia é devastada, onde as almas desintegram-se e onde o Ser deixa de sê-lo. Este lugar não é o Reino dos Mortos, do qual tanto se fala nas culturas ignaras, pois os mortos têm existência. Não era difícil para Ana Clara, sendo morta, entender que a morte, mesmo sendo antípoda à vida, não era antípoda à existência. Ela compreendia que vida e existência eram conceitos diferentes. No Reino dos Mortos os espíritos dos mortos existem, mas no Abismo nada existe senão Trevas, pois no Mundo Inferior até a Morte é extinta. Tais trevas não eram compostas de energia, mas numa espécie de antienergia.

Durante milênios magos não-mortos estudaram a antienergia acreditando que ela representava, para si, a mesma coisa que o mana representava para os magos vivos. Explica-se: nenhum desmorto pode, exceto os Ivanovna, utilizar-se do mana como energia para "fazer bruxaria" porque tais criaturas não estão conectadas ao mundo vivo. A partir dessa constatação, os estudantes de magia entre os vampiros passaram a empreender sua busca por energias místicas manipuláveis. Duas linhas de pensamento se popularizaram nessa busca: a linha Trevatti e a linha Sanguinus. Enquanto os trevatti exploravam a negatividade tenebrosa do Mundo Inferior, os sanguinus estudavam a positividade do Sangue. Quanto às outras linhas de pensamento, essas eram limitadas aos graus mais iluminados de ciência mística, aos quais a grande maioria dos magos-vampiros não tinha acesso.

As Trevas de Bárbara, ou antes as Trevas que Bárbara invocava, eram a personificação do Esquecimento. Um desejo por esquecimento. Outra frase semi-esquecida ressoava na mente de Ana Clara: "O infinito é um desejo que se nutre de sua própria fome de... infinito".

Negatividade e positividade geralmente são conceitos facilmente confundidos com o Bem e o Mal. Onde o positivo representa toda a bondade e o negativo, toda a maldade. Todavia o negativo, o passivo e o contemplativo podiam conter em si, ou no conceito de si, uma característica totalmente "positiva": a Paz.

Ana Clara experimentava aquela tranqüila aceitação de sua própria morte, aquela sensação de "destino", de descanso, de inércia e de Esquecimento. Era o galardão de uma vida, uma morte e uma pós-vida cheia de prazeres e preocupações. A vampira sentia-se cansada. Seu corpo estava totalmente relaxado e um sentimento de realização tomava a sua mente. Dever cumprido, meta realizada, tudo consumado, findo, acabado. Game Over.

Sono. Não mais. Dormir agora.

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Debaixo do Palácio Belvedere, no Vaticano, um imenso labirinto escondia o mais conhecido refúgio do Segundo Tirano: Vincenzo Di Bari Carmine Vergílio. Claro que por ser o mais conhecido, não era o refúgio principal, mas o lugar onde Vergílio se expunha ao Tablado Oculto.

Stefano Sperandio, o Keeper do Labirinto, era um dos ghûls mais antigos e poderosos de Vergílio. A grande maioria dos vampiros jamais atingiria o nível de poder ou conhecimento de Stefano. Ele já servira criaturas ancestrais como Améstris, rainha-mãe da Pérsia; Yekhezqel, o patriarca Thorm e Hain-Tzu, o Sexto Tirano. Deste modo, não era de se surpreender que esse ghûl tão antigo reconhecesse Darkmoon assim que lhe pôs os olhos, mesmo que estivesse em outro corpo.

O ghûl não conseguia evitar que um sorriso escarninho se formasse em seu rosto enquanto guiava Darkmoon até Vergílio, pois mais de quinhentos anos atrás os dois vampiros haviam tido uma terrível discussão que resultara na transformação do antigo corpo de Darkmoon em um amontoado de massa pútrida.

Se Darkmoon arriscava seu novo corpo somente para falar com Vergílio, era por causa de um improvável acerto de contas ou por uma ameaça que aquele vampiro pensava ser tão terrível que suplantava o perigo representado pelo Segundo Tirano.

O Labirinto se reconfigurava a cada cinco minutos, novas paredes surgiam fechando hermeticamente suas passagens. Somente se podia chegar até Vergílio com a ajuda do Keeper e mesmo assim nunca se caminhava menos de meia hora.

Stefano indicou a porta por onde o outro deveria entrar e retirou-se sem mais nenhuma palavra.

O Segundo Tirano estava no fundo da enorme sala de conferências sentado em uma cadeira simples de espaldar reto.

- Ele voltou - disse Darkmoon sem preâmbulos.

- Finalmente - retrucou Vergílio com um sorriso.

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Santino Staccato, sentado entre seus principais comandantes a fim de confabular sobre a Guerra Regional na qual estavam metidos, era o retrato dos Grandes Lobos do passado. Sua família era a única que conservava os traços daqueles lobisomens veneráveis de outrora e em cujos tomos estavam escritas as histórias dos Likanthropos. Dois de seus irmãos, Francesco e Dante estavam no Eforato da Hell Chapel, mas ele era o Grande Marechal e somente a ele cabia o fardo da liderança.

No centro da mesa estava a cabeça de Don Carlos Couto Sampaio com a boca cheia de alho que lhe fora entregue na noite anterior por um vampiro ruivo que se dizia Arauto do Princeps.

- Não vamos nos dobrar diante desses sanguessugas, Santino! - dizia, ou melhor, bradava Siqueira Campos.

Santino olhou para o moleque e sorriu.

- Ouça o que está dizendo, garoto. Parece um daqueles dentes prateados que nos levaram à ruína há quase dois mil anos atrás. Esses últimos quinhentos anos de pseudo-liberdade que nosso povo pôde desfrutar parece ter feito vocês, crianças, esquecerem a história.

Permitiu que as palavras penetrassem na cabeça dura dos moleques ali reunidos e continuou:

- Liberdade absoluta não existe, meus amigos. A fábula a que nossos ancestrais se apegavam a respeito dos espíritos da floresta, da generosa Mãe-Terra e toda aquelas profecias apocalípticas deixaram de fazer sentido desde antes do Segundo Dack-Hanavar. No entanto, a tribo prateada parece estar surgindo entre vocês novamente, os intoxicando com suas mentiras e fazendo-os crerem-se heróis e defensores do planeta.

- Os sanguessugas são fracos, Santino - retrucou Emerson Rocha - Veja como caem diante de nossos filhotes.

- Os sanguessugas que nós enfrentamos são fracos - corrigiu Santino - Deviam ler os tomos antigos, crianças. Deviam aprender a não subestimar as outras criaturas do Tablado Oculto.

- Santino - chamou Dante - esses meninos não sabem nada a respeito do Arauto.

Santino olhou nos olhos de todos os seus irmãos lobos e perguntou:

- É verdade?

Somente Dante e Francesco sustentaram o olhar diante de seu senhor, todos os outros baixaram suas cabeças.

- Primeiro - Santino começou a instruir - o Arauto trará a cabeça de um dos antigos. Penso que todos aqui já se combateram as forças de Don Carlos. Depois haverá um desafio ao Senhor da Alcatéia que sou eu. Esse desafio ocorrera ao meio dia em campo aberto.

Fez uma pequena pausa, deixando que aquela informação fosse digerida pelos membros da mesa.

- Quantos vampiros vocês conhecem capazes de enfrentar um Grande Lobo com o sol fritando seus miolos não-mortos?

Santino viu os olhares de incredulidade nos olhos de todos na mesa, exceto em Dante e Francesco e sorriu.

- Tragam-me a Lâmina do Sol. Amanhã testaremos o Arauto.

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Bárbara apavorava-se com sua própria estupidez e impotência diante do Tirano. Não tanto de sua presença física, mas muito mais da presença em sua mente e em seu coração. Se ela fosse alguma adolescente sonhadora dir-se-ia apaixonada pelo antigo, no entanto em sua vasta experiência, ela sabia do que se tratava: reverência. O Tirano era uma criatura tão antiga, provavelmente o vampiro mais antigo que Bárbara tinha visto em sua não-vida, que lhe parecia algo divino. Sua alma se enchia de respeito e reverência semi-consciente por ele.

Cometera meia dúzia de grandes insensatezes naquela noite. A mais cretina delas fora, sem sombra de dúvida, deixar uma vampira faminta na casa de uma pequena família de ignaros apetitosos.

Bárbara sabia que Ana Clara tirava do sangue a força para seduzir os ignaros e levá-los a estados de êxtase além de qualquer compreensão e mesmo assim não alimentara a vampira depois de fazê-la usar o seu poder vezes sem conta naquela noite.

A imagem do Tirano em sua mente e o desejo angustiante de revê-lo haviam tomado Bárbara tão completamente que ela só acordou de seu torpor delirante quando Ana Clara quase atacara o filho de Alessandra.

Por um momento sua mente clareou e ela viu toda a vasta gama de bobagens que ela empreendera naquela noite. Agindo rapidamente, Bárbara trancou-se com Ana Clara no banheiro, fê-la mergulhar no Abismo, apagou a mente de Alessandra e de seu filho usando uma parcela do Vazio Primordial em suas mentes e transportou-se através do Nada para um refúgio seguro.

O Nada a tudo permeia. Esta em todo lugar e em lugar nenhum ao mesmo tempo, por isso pode-se, através dos rituais corretos usá-lo dentro das mentes, na forma de Esquecimento, criar uma esfera de Vazio em um espaço físico tornando esse espaço parte do Abismo por um instante e transportar-se através do Fluxo Interespacial. Como Bárbara não tinha o conhecimento necessário para viajar através do Abismo para qualquer parte, ela usava Nós de Contato para marcar seus refúgios como Guias.

Quando emergiu do Nada, Bárbara preparou-se para caçar. Não por si, mas por Ana Clara.

O Abismo cobrara seu preço, drenando a vitalidade do corpo da vampira, fazendo-a dormir e Bárbara precisaria repor em sangue e sexo tudo quanto roubara de Ana Clara.

A vampira odiava caçar durante o dia, mas não poderia arriscar nenhuma de suas fontes normais, nem tampouco esperar a noite seguinte.

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A pele do vampiro ruivo fumegava ao sol do meio-dia, mas ele não parecia incomodado com isso.

Santino, da última família de Grandes Lobos, quase sentia o clamor da Terra contra aquela abominação. A corrupção do vampiro era tão evidente que se o lobisomem fosse um dos "malditos dentes prateados" já teria se precipitado na batalha. Todavia ele se sentia desconfortável com toda aquela claridade, na verdade Santino era mais eficiente durante a noite, especialmente em noites sem lua.

Os olhos sagazes do lobisomem não viam nenhum ponto fraco no vampiro que pudesse ser explorado e, embora Nicolae permanecesse parado sem levantar a guarda, Santino sabia que naquela posição havia sete formas diferentes de defesa, entre projeções, chaves de membro e contra-ataques fulminantes.

Ignorando o enervante cheiro de corrupção que a carne queimada do vampiro soltava, Santino podia perceber que Nicolae não era totalmente vampiro, que havia algo mais obscuro em sua essência.

Usando seus poderes para assumir um aspecto metálico, ou melhor, prateado; parecer mais assustador e ocultar suas próprias fraquezas Santino preparou-se para atacar.

Antes, porém, que o lobisomem pudesse se mover, o vampiro saltou no ar, numa altura de quatro metros e vinte centímetros, sacou seu revólver e atirou contra o lobisomem. Esse revólver parecia um velho Colt Peacemaker enferrujado, uma arma de ação simples, mas com uma armação de alumínio microfundido, molas helicoidais, percussor montado na armação e alça de mira independente da armação, ou seja, aparência de velho Colt, mas com soluções mecânicas modernas. Nicolae sempre efetuava disparos com o gatilho premido e batendo sucessivamente no martelo com a arma na linha da cintura, uma prática conhecida como "fanning".

Santino ficou surpreso ao perceber que seu peito ardia como se fora atingido por prata pura. A forma prateada que assumira deveria anular os efeitos nocivos da prata para ele, mas de alguma forma aquele vampiro ruivo havia conseguido sobrepujar esse obstáculo.

O lobo veterano reconhecia que seu inimigo era muito mais rápido do que ele, portanto decidiu usar um pequeno truque para paralisá-lo durante alguns segundos, tempo mais do que suficiente para destruí-lo. No entanto, um instante antes de seus olhos se encontrarem o vampiro se transportou através do Nada aparecendo exatamente no limiar do ponto cego do lobisomem.

Sentindo que corria risco de vida, o lobisomem transformou-se em lobo, fazendo com que seu tamanho diminuísse drasticamente e Nicolae, postado ao seu lado, errasse completamente o alvo.

Anos de treinamento árduo com a Lâmina do Sol permitiram que Santino fizesse seu próximo movimento, que consistia em reassumir sua forma guerreira, ato contínuo executar um corte vertical de baixo para cima no vampiro.

Nicolae escapou da morte iminente graças aos seus incríveis reflexos, saltando para o lado no exato momento em que o lobisomem atacava, atirando logo a seguir.

Santino, cujos reflexos também eram notáveis, metamorfoseou-se em lobo novamente, escapando incólume do disparo e, ato contínuo, pulou transformando-se no caminho e atacando com a Lâmina do Sol, visando o pescoço do não-morto. Por causa de um erro de cálculo mínimo Santino não conseguiu decapitar completamente o vampiro. No entanto seu corte fez com que a cabeça ruiva ficasse pendurada pela carne do pescoço por sobre o peito.

Julgando terminado o combate, Santino virou-se para seu adversário afim de executar o golpe de misericórdia, mas ante seu olhar estarrecido a cabeça do vampiro lhe sorria e o corpo semi-decapitado apontava o revólver firmemente contra ele.

O lobisomem sabia, ou pelo menos imaginava, que o vampiro não cairia no mesmo truque três vezes, então se preparou para fazer o impossível: aparar o tiro com a Lâmina do Sol.

O que se seguiu foi tão bizarro que Santino simplesmente não conseguiu se mover. Uma outra cabeça surgiu, rasgando a pele do vampiro e a antiga cabeça sorridente se espatifou no chão. A nova cabeça do vampiro era tão deformada, como uma imitação grosseira e mal acabada, que todos os lobisomens da assistência desejaram destruí-la, juntamente com o resto do corpo desmorto.

Aquela metamorfose grotesca tocou em algum ponto obscuro de Santino, provocando a Fera dentro de si até um frenesi assassino. Totalmente fora de si, o lobisomem largou a Lâmina do Sol e partiu para o ataque somente com garras e dentes.

Todos os lobisomens da platéia ficaram confusos por um instante. Seu líder flutuava no ar, com as garras em riste, como se fosse uma bolha de sabão.

O vampiro gastou uns três segundos mirando antes de efetuar o disparo fatal, o qual explodiu dentro da caixa craniana do oponente destruindo a massa encefálica. Quando o projétil chegou a quinze centímetros do alvo, desacelerou e podia-se vê-lo perfeitamente, até mesmo perceber que ele tinha um aspecto gasto, enferrujado, antes que ele penetrasse na cabeça do lobisomem. Depois, no mesmo ritmo preguiçoso, pode-se ver a traseira da cabeça de Santino explodir em "slow motion" e pedaços de seu cérebro jorrar para fora.

Nicolae deu alguns passos para o lado, desviando-se da criatura morta que cruzava o ar lentamente em sua direção, deixando-a cair lentamente no chão.

Sua cabeça deformada moveu-se, encarando a platéia atônita.

- Seu líder está morto - falou por fim - Em nome do Primeiro Tirano eu tomo autoridade sobre vocês a partir deste momento até que possam substituí-lo. Façam isso rápido, pois logo voltarei a ter com vocês.

O sobretudo encarnado que o cobria transformou-se em um par de asas de dragão e ele alçou vôo, rapidamente desaparecendo no céu diante dos olhos de vários lobisomens incrédulos.

Pergamasco
Enviado por Pergamasco em 15/09/2006
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