A linguagem em Platão à luz de Arendt

Em A vida do Espirito, Hannah Arendt disserta (p. 90), se baseando na famosa Sétima Carta de Platão, sobre a visão do autor em relação à linguagem. Em geral, Platão escreve seus textos em forma de diálogos. Isso não parece se dar por acaso, já que, de acordo com Arendt, Platão crê que é possível alcançar a verdade por meio do diálogo consigo mesmo ou com outrem. Parece-me que esse “outrem” não poderia ser qualquer um, que teria que ser alguém com um direcionamento pedagógico de um interlocutor como, por exemplo, Sócrates. Por isso, Arendt fala da presença em Platão de um “fio discursivo de pensamento (…) falado entre mestre e discípulo, ‘movendo-se para cima e para baixo’, interrogando sobre ‘o que é verdadeiro e o que é falso’”.

Essa perspectiva fica mais clara quando Arendt ressalta (p. 89) que, no livro Fedro de Platão, haveria um contraste da escrita com o diálogo. A escrita seria uma espécie de versão genérica do diálogo. O diálogo seria superior porque, diferentemente de como ocorre com a escrita, quem vai dialogar escolhe seus interlocutores, pode respondê-lo se ele fizer uma questão e questioná-lo. O “diálogo interior”, nesse sentido, é quando alguém conversa consigo mesmo, mas sem o intermédio das palavras. Nesse ponto, é perceptível que a noção de pensamento não-discursivo enquanto uma prioridade se exalta, já que não haveriam palavras nesse diálogo interior, mas “imagens daquilo sobre o que inicialmente opinamos e falamos” (p. 89), como cita Arendt.

Ainda se baseando no Fedro, a autora comenta (p. 88) que a escrita, para Platão, nos levaria ao esquecimento (eis o primeiro empecilho dessa forma de discurso), pois ao passo que nos apoiássemos na escrita, não nos preocuparíamos com o exercício da memória. Platão também colocaria que há um “silêncio majestoso” da palavra escrita, o que a impede de responder perguntas (segundo empecilho). E, por fim, que a palavra escrita não pode escolher seu leitor, não pode decidir quem entrará em contato com ela (terceiro empecilho).

Nesse sentido, também comentando o Fedro, Danilo Marcondes destaca (p. 7), em A Filosofia da Linguagem de Platão, a explicitação que Platão faz sobre o “Mito de Theut”. Esse mito narraria a invenção da linguagem pelo deus Theut. Enquanto Theut acreditaria que a linguagem melhoraria nossa memória e sabedoria, Amon destacaria que com a linguagem nos fiaríamos nas palavras e ignoraríamos o pensamento e as memórias parecendo sábios quando seríamos o extremo oposto. A conclusão platônica é de que a palavra escrita é extremamente problemática para carregar seu sentido próprio dentre os bons leitores – isto é, o sentido que o escritor pensou quando escreveu –, mas sobretudo para carregá-lo entre os maus leitores. Em concordância com Arendt, Marcondes ressalta (p. 8) que Platão considera o diálogo oral como a maneira mais excelente de linguagem e que, por isso, ele escrevia seus textos imitando os diálogos.

Imagino que tanto Arendt quanto Marcondes, aqui, estejam comentando o mesmo trecho do Fedro. Entretanto, isso é secundário. Relevante mesmo é que, tanto em um comentador quanto em outro, dois fatores parecem centrais no pensamento de Platão sobre a linguagem:

I. A prevalência do diálogo sobre as outras formas de linguagem;

II. A função do diálogo de nos fazer chegar à verdade.

Esse último ponto é importante, já que fica claro que há uma relação entre o diálogo e a verdade em que o diálogo seria como que uma ponte que nos levaria à verdade.

Por outro lado – explica-nos Arendt (p. 90) –, a verdade só seria alcançada em forma de intuição, após muito diálogo, súbita e espantosamente, sem aviso prévio. As palavras, aqui, possuem um papel secundário, pois a verdade não se traduz em palavras. Elas nos levam à verdade, mas ao atingir esse objetivo elas não se fazem mais necessárias. Ao se atingir a verdade, as palavras passam a parecer tão somente representações arbitrárias, simplórias e genéricas de algo bem maior que elas. Como destaca Arendt, “[as palavras] não oferecem mais do que uma ‘pequena orientação’”, são como que o fogo que acende o pavio da vela e que torna desnecessário após a vela estar finalmente acesa.

Em relação a esse ponto, Danilo Marcondes também disserta (p. 9) em Noûs vs Lógos uma interpretação semelhante. Marcondes conta que, na Sétima Carta, Platão revela o fato de que as palavras possuem um desajuste em relação ao pensamento, já que a atribuição de signos a significados é meramente convencional, de modo que não haveria uma relação estática e direta entre signo de significado. Nesse sentido, como o intelecto possuiria uma natureza divergente da do discurso, os discursos seriam inadequados para representar o intelecto. Nas palavras de Marcondes, “[para Platão], só o intelecto é capaz de captar a coisa ela mesma” (p. 9). Logo, os discursos seriam importantes para o conhecimento, mas só enquanto uma escada provisória até chegarmos às coisas em si mesmas concernentes ao intelecto e independentes de representações discursivas.

Além disso, Arendt deixa explícito (p. 90) que essa é uma visão instrumental do discurso, que prioriza o pensamento não-discursivo ao invés do pensamento discursivo e que coloca o discurso como um mero meio para se chegar a um fim. Segundo a autora, essa posição em relação à linguagem foi fortemente acatada pela história da filosofia que se segue a partir de Platão, como destacarei a seguir.

Arendt cita (p. 91) o pensamento de Tomas de Aquino sobre a linguagem. Segundo ela, Aquino colocaria que, embora não pudéssemos acessar diretamente aquilo que os outros sentem, poderíamos traduzir essas experiências sensoriais pessoais por meio da linguagem, isto é, estabelecer consensos sobre ao que se referem certas expressões para que houvesse uma certa intersubjetividade comunicativa. Apesar dos discursos facilitarem essa troca, eles não seriam perfeitos, já que “o máximo que podemos dizer de alguma coisa é que cheira como uma rosa, que o gosto é como o de sopa de ervilha, que a textura é como a do veludo” (p. 91), como diz Arendt. Os discursos, aqui, são secundários, pois o que importaria é aquilo em relação ao qual eles tentam – mas não conseguem perfeitamente – se referir, que são as experiências sensoriais subjetivas. Em todo caso, a linguagem seria, tanto para Aquino como para Platão, um instrumento, um meio.

Ainda sobre esse tema, em relação a Heidegger, Arendt profere:

<<Assim, Heidegger, ao discutir o conceito tradicional da verdade em Sein und Zeit, ilustra-a da seguinte maneira: “Suponhamos que alguém de costas para a parede faz a afirmação correta de que ‘o quadro pendurado na parede está torto’. A afirmação é confirmada quando quem que a faz vira-se e percebe o quadro torto na parede.”>> (p. 92)

Essa citação de Heidegger é precisa para ilustrar a relação de sua filosofia com a questão da subalternação do pensamento discursivo. Fica claro que, de acordo com essa passagem de Heidegger, os discursos importam, mas na medida em que dizem respeito àquilo que é percebido. Afinal, é essa simultaneidade de uma expressão se referindo a X e X sendo concreto que torna possível classificarmos tal expressão como “verdadeira”.

Depreende-se, à luz dessa exposição, que os discursos, mesmo que sejam meios para chegar a verdade, também parecem nos levar a certas dificuldades. Isto é, a linguagem parece nos prender a uma forma e parece direcionar o conteúdo do que dizemos a partir dessa forma. Sem essa forma, em contrapartida, não parece ser possível discursar – e nem, por conseguinte, fazer filosofia. Afinal, “O pensamento (…) precisa do discurso não só para ter realidade sonora e para torna-se manifesto; precisa dele até mesmo para poder ser ativado” (p. 93). Isso quer dizer que, para Arendt, sem discursos, não só não haveria expressão do pensamento, como também não haveria o próprio pensamento. O ser humano não só se expressa com palavras: ele pensa com palavras. Por fim, entendo que devamos concordar com Hannah Arendt quando ela afirma que “Talvez todas as dificuldades que a ‘ciência assombrosa’, a metafísica, levantou desde o seu surgimento pudessem ser resumidas na tensão natural entre theoria e logos, entre ver e racionar com palavras” (p. 92).

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 85-95.

MARCONDES, Danilo. A Filosofia da Linguagem de Platão. Rio de Janeiro: Dep. de Filosofia PUC-Rio, [ca. 2009].

MARCONDES, Danilo. Noûs vs Lógos. Rio de Janeiro: Dep. de Filosofia PUC-Rio, [ca. 2009]. p. 7-14.