Annabelle 2 – A criação do mal (Crítica – ou uma reflexão acerca do mal banalizado)

O conceito de “Banalidade do mal” nasceu a partir das reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, quando de sua cobertura para a revista “The New Yorker” do julgamento de Adolf Eichmann, ocorrido em Jerusalém, no ano de 1961. Eichmann (ex-oficial da SS nazista, um dos grandes responsáveis pelos campos de concentração e extermínio nazista, onde foram mortos milhões de judeus, homossexuais, comunistas e dissidentes políticos em geral), havia fugido da Alemanha após a derrota na Segunda Guerra, e depois de foragido algum tempo, foi encontrado pelo serviço secreto de Israel na Argentina, ali preso e levado à julgamento no Estado Hebreu pelos crimes de guerra e contra a humanidade. Das observações e reflexões de Hannah Arendt sobre o julgamento de Eichmann nasceu o livro “Eichmann em Jerusálem”, em que é cunhado o conceito de “banalidade do mal”, onde, em linhas gerais e grosso modo, diz que o mal se banaliza na medida em que o indivíduo reproduz padrões de comportamentos e parâmetros morais massificados, comprometendo sua capacidade de fazer julgamentos morais e incapaz de questionar ordens recebidas.

Não obstante essa pequena introdução histórico-filosófica, o assunto aqui é cinema, mais especificamente o caça níquel intitulado “Annabelle 2 – A criação do mal”, exemplo do que poderíamos chamar, parodiando a filósofa Arendt, de “mal banalizado”, desperdício de tempo e de dinheiro, tanto para os espectadores quanto para os realizadores. Estes, ao menos, têm a esperança de um retorno do dinheiro investido (mas não do tempo gasto na realização), se o filme fizer uma boa bilheteria mundo afora. Aqueles, não sucumbirão ao sono e ao tédio de um roteiro pífio e previsível graças à excepcional edição de som, que garante uns bons sustos na base do “barulhão”, do impacto de estalidos, portas rangendo, gritos, estrondos,e uma trilha sonora que cria e sustenta o clima de suspense.

É de se louvar também, mas aqui cabem ressalvas e questionamentos de outros matizes, as atuações das atrizes mirins Talitha Bateman (Janice) e Lulu Wilson (Linda), esta de apenas 11 anos de idade e quase uma “expert” em atuar em filmes de terror (Ouija – A origem do mal, EUA, 2016 e Livrai-nos do mal, EUA, 2014 – por exemplo). As duas dão um show de interpretação no papel das “protagonistas”, maiores vítimas e alvos da presença maligna no filme. Mas é justamente nesse quesito que vêm questionamentos tais como até que ponto é salutar expor atores e atrizes mirins, crianças até, em um trabalho que pode provocar stress, angústia e ansiedade, já que as personagens Janice e Linda são expostas à violência e ao sofrimento provocado pelo demônio que “vive” na boneca Annabelle, que quer possuir suas almas e/ou matá-las? Aquelas “representações” de situações de violência e de terror, repetida várias vezes num set de filmagens, não podem desencadear nas crianças ali envolvidas traumas relacionados ao que estão representando? É de se lembrar da polêmica envolvendo o filme brasileiro “Cidade de Deus” (2002), cuja narrativa violenta passava-se em um contexto infanto-juvenil daquela comunidade do Rio de Janeiro, em que várias cenas violentas foram filmadas envolvendo crianças e adolescentes. Na época, o Ministério Público do Rio de Janeiro, pautado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, interpelou os produtores do filme, acerca das condições em que foram gravadas algumas cenas, que remetiam à tortura e ao sofrimento de crianças.

Mas, voltando à “Annabelle – A criação do mal”. É certo que ninguém irá dormir de tédio na sessão. A edição de som não permite. E, aproveitando que estarão todos acordados, a platéia poderá apreciar, além do bom desempenho de Talitha Bateman e Lulu Wilson, uma bela fotografia, um uso “ok” da dicotomia luz/escuridão. É de fato um filme bonito, no que diz respeito à estética da fotografia empregada e do uso da luz (e de sua ausência, é claro). Belos planos, aproveitando a solidão do local onde está situado o orfanato onde se passa a trama. Aqui e ali um movimento de câmera interessante e que dá fluidez às fotografia capturada na película. É, pensando bem, talvez haja algo mais do que um simples caça níquel nesse filme.

Ah! Por fim, voltando ao “mal banalizado”, a paródia que nos aproximou de Hannah Arendt no início dessa crítica. É óbvio é que o gênero de filmes de terror é algo que vem de longa data, desde “O Gabinete do Doutor Caligari” (Alemanha, 1920), passando pelos “Dráculas” interpretado por Christopher Lee nas década de 50, 60 e 70 do século XX, pelo “O exorcista” (EUA , 1973), até os Freddy Krueger e Jason dos “Sexta feiras 13” que nos acompanham até hoje. Não obstante o gênero horror no cinema ser algo já consagrado de há muito, os roteiristas e produtores de Hollywood deveriam ter um pouco mais de carinho e zelo para com ele. Porque, em nome do imperativo do lucro e da “caça ao níquel”, certas fórmulas são repetidas à exaustão, levando ao desgaste um gênero tão interessante e artisticamente relevante, que já nos brindou com o já citado “O exorcista”, e outras obras primas, tais como “O bebê de Rosemary” (EUA, 1968) e - por que não? – “Alien, o oitavo passageiro” (EUA, 1979). Podemos, tal como aqueles expostos à banalidade do mal, diante de filmes que tratam o mal de modo tão banalizado, comprometermos nossa capacidade de apreciação e de juízo frente à filmes de alta qualidade artística, inclusive no gênero terror, e nos tornamos apenas consumidores acríticos de uma indústria que nos despeja sub produtos para consumo imediato, sem um mínimo de valor artístico e capacidade de nos fazer refletir sobre a condição humana. Porque penso que cinema, independente do gênero – drama, comédia e (até mesmo) horror – também é isso: manifestação artística e instrumento de reflexão acerca da condição humana.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 24/08/2017
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