No final dos anos 1980, havia na extinta TV Manchete um programa chamado “Documento Especial”, apresentado por um homem muito sério. Era uma espécie de Globo Repórter, focando num assunto particular, de relevo para a audiência em geral. Certa ocasião, a matéria abordada foi a Vila Mimosa, reduto da prostituição no Rio de Janeiro. Eu, então com dezesseis anos, inevitavelmente cedi ao apelo interior e assisti o programa todo, a avidez multiplicada pelos hormônios e pela curiosidade que esse assunto sempre desperta.

Muito tempo se passou até que esse lugar voltasse à minha atenção. Aconteceu quando o escritor Alexandre Coslei divulgava nas comunidades literárias do facebook o livro que havia concebido a respeito, na verdade uma coletânea de contos, chamado “Os Paralelepípedos da Vila Mimosa”.

Com a curiosidade despertada, acabei adquirindo um exemplar. Li-o de um só fôlego. Ao contrário do clima pesado do antigo programa da Manchete, Coslei opta por uma prosa mais fácil, fluida agradável. É como uma conversa de bar, com seus exageros e mentiras deliciosamente descaradas (Dona Gioconda), próxima de Luis Fernando Veríssimo (Vox), com seus anti-heróis suburbanos, e mesmo de Nelson Rodrigues (A Morte é Cinza) e seus pecados que secretamente cultivamos).

O estilo é peculiar, no entanto, com ambientação primorosa, levando o leitor pelas ruas do Rio de Janeiro, seus bairros, guetos, bares e inferninhos. Coslei funciona como um guia experiente, uma espécie de irmão mais velho que surge com os mapas secretos de um submundo que se esconde sob a arquitetura carioca.

Em sua maioria, os contos, tratam das prostitutas, dos cafetões, de gente comum que se rende aos instintos (Deus, o Diabo e a Meretriz) e às obsessões (A Fera Camuflada) , apresentando ao leitor um mundo (quase) desconhecido, ao mesmo tempo fascinante, misterioso, mas também opressivo e em certos aspectos lúgubre (O homem que não existiu).

De fato, sobressai-se o universo do sexo pago nos textos, mas há espaço para a abordagem de do lado humano e social desses personagens (Carta de uma prostituta). Não só deles, mas gente comum, do dia a dia (A Revelação), funcionários públicos, cabeleireiras, escritores e jornalistas (Aurora Hominis) – embora nesses momentos o ritmo decaia um pouco.

O fôlego se recupera nos contos metalinguísticos (Um encontro com Sade e Eternidade), nos de mistério (Carne Fria e Status Homicida) e nos filosóficos (Homem Cibernético e O Ancião), revelando que Coslei transita muito bem por estilos diversos, versatilidade essa que se ressalta a cada metáfora bem empregada, a cada esquina da Tijuca, da Lapa ou de Botafogo.

O que se sobressai, no entanto, é a coragem do autor em voltar-se para um assunto que pode ser considerado no mínimo controverso. Num momento em que se discute de forma veemente e até mesmo agressiva sobre empoderamento feminino, sobre hipersexualização e objetificação da mulher, “Os Paralelepípedos da Vila Mimosa” surgem como uma lufada de brisa fresca, mostrando que é possível falar sobre sexo de maneira inteligente, sem vulgarização e com humor – ainda que os mais sensíveis possam se sentir um pouco desconfortáveis.

Um livro brasileiro, carioca, escrito por um autor talentoso e que não tem medo de flertar com controvérsias. “Os Paralelepípedos da Vila Mimosa” se traduz numa experiência mais do que interessante. Uma leitura que vale cada minuto.
Gustavo Araújo
Enviado por Alexandre Coslei em 04/03/2018
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