Globalização

Boaventura de Sousa Santos indaga em sua obra, A Globalização e as Ciências Sociais, se o processo da globalização é um fenômeno antigo ou novo. Para responder a tal questão penso ser necessário traçar um breve esboço dos processos civilizatórios.

Nos últimos dez milênios a historicidade humana foi marcada por inúmeras sucessões civilizatórias, que se contrapuseram e que se assimilaram, que coexistiram. Originando num estado de nômades coletores e caçadores, passando pelos primeiras aglomerações em cidades até a centralização organizada de um poder estatal regido por uma ampla burocracia, cada qual, com caracteristicas correspondentes de acordo com sua particular organização social, encarando cada contexto histórico como uma constelação particular com certos atributos e concepções de mundo. Com a revolução agrícola, os povos nômades puderam se sedentarizar, uma vez que começaram a dominar os primeiros meios naturais de subsistência, como o desenvolvimento da agricultura. Consequentemente, começa haver ociosidade e excedentes, visto que, com a revolução agrícola, diminui o contingente de força de trabalho exigido nas lavouras. Desde modo, as pessoas que deixaram o cultivo dos campos começaram a juntar-se nas incipientes aldeias comerciais. Através dos excedentes, o comercio começa a florescer. Devido as especializações daí resultantes, os laços de parentesco deixam de estruturar a vida social e com isso inicia-se as estratificações sociais, transformando as Aldeias Agrícolas Indiferenciadas em Estados Rurais Artesanais e com a adestração de animais selvagens, as hordas nômades pastoris ganham importância e inicia-se aí um novo processo civilizatório, caracterizado pela expansão territorial destes povos; sendo estes de conquista agora chamados de Chefias Pastoris Nômades. Ao surgir uma nova revolução, a de Regadio, possibilita-se a insurgência dos Impérios Teocráticos de Regadio.

Sem tais impérios, como nos lembra Darcy Ribeiro, não teria sido possível aos ibéricos colonizarem o Novo Mundo :

(...) a tecnologia desenvolvida pelos Impérios Teocráticos de Regadio, uma vez aprimorada e aplicada a sistemas produtivos novos, pôde florescer e expandir-se amplamente, atingindo extensas áreas e revolucionando o modo de vida de numerosos povos. Seu impacto foi tão profundo e seus efeitos renovadores tão radicais que, a nosso juízo, cumpre tratar esta expansão como uma nova revolução tecnológica, a Metalúrgica, responsável pela configuração de uma nova formação sócio-cultural: os Impérios Mercantis Escravistas. (RIBEIRO, D. O Processo Civilizatório: Etapas da evolução sócio-cultural. p. 109)

Os povos ibéricos foram os primeiros à se tornarem civilizações mundiais. Pautados pela certeza de que eram os novos Cruzados que com suas missões salvacionistas deveriam sujeitar o mundo inteiro sob a doutrina do catolicismo romano, chegaram ao Novo Mundo. E desta forma, inicia-se o processo de globalização europeia na América. Posterirormente, no contexto europeu aconteceu a chamada Revolução Industrial, que foi mais do que uma reestruturação das forças produtivas. Foi, antes de tudo, uma etapa evolutiva universal que remodelou toda a maneira de lidar com a natureza e consequentemente toda forma de organização social preexistente. No entanto, esse novo processo histórico não é igualmente vantajoso para todos os povos, porque o sistema Capitalista pauta-se na exploração, visto o lucro que buscam os detentores dos meios de produção. As nações que acumularam capital suficiente para darem início, como Inglaterra e França, à Revolução Industrial, são as mais privilegiadas, porque através das novas tecnologias tornam-se capazes de expandirem-se mundialmente e integrarem povos em etapas sócio-históricas anteriores. Anos depois o mercado europeu passa por abalos estruturais, tendo por consequência direta grande crise de desemprego na Europa, fazendo com que inúmeros europeus viessem residir no Brasil, incentivamos pelo próprio governo nacional através da Lei de Terras, do século XIX. Foi a chegada destes que gerou o primeiro surto de desenvolvimento urbano no país. Com a industrialização dos centros urbanos, dentre outros motivos como a deficiência do campo em produzir mercadorias que atendessem a nova demanda da população, houve grande êxodo rural rumo às cidades. A falta de estrutura para absorver tamanho contingente resultou em um grande amontoado de pessoas que não tinham onde morar ou trabalhar, dando seguimento à marginalidade, pois não havia preocupação de instituições com os grupos carentes. Com o aumento do contingente populacional os centros urbanos passam a ter novas demandas e isto altera o significado que as pessoas atribuem aos signos sociais. E este acontecimento nos retoma à Canclini, quando diz que:

As últimas transformações culturais na rede de produção simbólica não são apenas consequências dos meios de comunicação. A expansão urbana é um dos móvitos da hibridação das culturas. A américa latina passa de sociedades agrícolas para urbanas. O tradicional homogêneo abre espaço para o urbano heterogêneo. Conquanto, este não é o único fator. Vários aspectos da Modernidade se entrecruzam. (CANCLINI, 2004, p. 285).

Através da atualização histórica, as grandes potências industriais continuam a perpetuar a imposição de penúria aos povos dominados. Estes, por sua vez, sofrem processos de industrialização reflexa, que nada alteram sua situação de sujeição. As nações opulentas sugam as riquezas naturais e moem gente dos povos jogados ao pauperismo, aprofundando ainda mais as suas contradições internas e consequentemente ampliando cada vez mais a dependência reflexa da modernização. Conquanto, as estruturas exploratórias são travestidas de sofisticação ao mudarem a maneira de sujeitarem corpos e consciências. Um dos grandes emblemas de dominação iniciados na modernidade tem a ver com a Indústria Cultural de Massa. É justamente nesse cruzamento de vários aspectos da Modernidade que reside as suas rupturas epistemológicas.

Entendo que há rupturas epistemológicas nas obras dos três autores: Otavio Ianni; Boaventura de Sousa Santos; Nestor Garcia Canclini. Conquanto, em cada um deles partem de perspectivas diferentes. Analisarei essas “rupturas” a partir do que foi produzido anteriormente e como as epistemologias foram plasmadas em outros contextos históricos. “Ruptura”, em meu entendimento, é uma produção teórica diferente das produções de outrora.

Ianni, por exemplo, quando escreve sobre a globalização, diz que ela é um fenômeno mundial e irremediável. Como se ela permeasse por todas as esferas da vida das pessoas e, com isso, em certo sentido, tornar-se parte da ontologia dos sujeitos ocidentais modernos. E ao estabelecer essa naturalização, por conseguinte, não poderia surgir grupos autônomos que tentariam amenizar as deformações existentes pela inserção coerciva no sistema, visto que os grupos dominantes formados na América Latina são lacaios que reproduzem internamente a exploração internacional, não sendo perpetuadores de uma cultura política de resistência, mas sim, pelo contrário; as próprias classes dominantes dos países subdesenvolvidos contribuem para a perpetuação da lógica exploratória. Logo, a única perspectiva de revolução cultural reside nas classes marginalizadas, que, no entanto, já são tão párias que se atrofiam e não conseguem articular o mínimo necessário para ensejar uma quinada social. Tornando a insurreição popular uma utopia não realizável, as relações de poder entre as nações se tornam tão desproporcionais que os povos das localidades subjugadas passam a acreditar que sua situação de miserabilidade é consequência de suas próprias fraquezas enquanto nação. Esta multiplicidade causal, por conseguinte, gera subculturas. Em outras palavras, os povos marginalizados são desarraigados de suas origens e começam a reproduzir os valores das castas dominantes. E a alienação histórica estrutural contribui para mitigar as possibilidades de mudança da realidade, porque um povo desterritorializado de seu passado é um povo sem identidade raiz, que possa dar sustento as demais mudanças a que venham a ser acometidos. E, entendendo as informações como mercadoria, pois é a lógica da indústria cultural, as ideias tornam-se pacotes que são vendidos. O próprio Ianni fala sobre três rupturas epistemológicas que contribuíram para criar o imaginário da modernidade. A saber, são: a Revolução Copernicana, que foi o heliocentrismo, não mais a terra, mas sim o sol no centro do universo; a Teoria da Evolução, de Darwin, sendo os humanos animais como quais quer outros que tiveram de evoluir, deslocando à marginalidade a ideia de um Deus criador; a descoberta do inconsciente, por Freud, que dizia que toda pessoa tem uma estrutura psíquica com forma geral que simplesmente é preenchida de maneira diferente de acordo com a cultura. Essas três teorias do conhecimento humano causaram uma ruptura no modo como o ser humano concebia a si e ao mundo, causa uma descontinuidade epistemológica, que, sem elas, dificilmente poderia ter-se chegado no contexto histórico denominado como Modernidade. Essas teorias desencantaram o mundo, pois a ilusão acalentada pela filosofia tradicional sobre o indivíduo e sobre a razão está se esvaindo.

Já Boaventura de Sousa Santos, achei mais sutil de identificar a ruptura. O autor também está escrevendo sobre as grandes questões da modernidade humana. Conquanto, diferentemente de Ianni, fala mais sobre os processos possíveis de resistência. Dentre eles, cita o cosmopolitismo, que é a incorporação das identidades plurais e sua organização transnacional da resistência de Estados-nações, classes, ou grupos sociais marginalizados pelas trocas desiguais, entre países centrais e periféricos, que impulsionam a globalização. Como nos coloca Boaventura:

A resistência consiste em transformar trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada, e traduz-se em lutas contra a exclusão, a inclusão subalterna, a dependência, a despromoção. As atividades cosmopolitas incluem movimentos e organizações no interior das periferias do sistema mundial, redes de solidariedade transnacional não desigual entre Norte e Sul, organizações transnacionais de direitos humanos, militância anticapitalista entre outros. É a busca por valores culturais alternativos, não imperialistas, contra-hegemônico. (Boaventura, 2002,P 67).

Juntamente com o cosmopolitismo, que só é possível nas margens do sistema hegemônico, há o patrimônio comum da humanidade; também contesta o localismo global e o globalismo localizado; trata-se de lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, artefatos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária. Para se falar em resistência, é preciso esclarecer o objeto à qual se resiste. Boaventura cria o termo SMET (sistema mundial em transição), que representa uma nova configuração mundial das hierarquias. E é aqui que reside a ruptura epistemológica na teoria de Boaventura. Diferentemente do SMM (sistema moderno mundial), o processo de globalização no SMET vai muito além do Estado e da economia, pois abrange práticas culturais que no SMM estavam na esfera das sociedades nacionais. Os valores e funções se misturam. No SMM era função do Estado promover a integração da cultura e economia nacionais, e que hoje contribui, em via contrária de outrora, com a desintegração dos aspectos da sociedade nacional para que se possa integrar na lógica internacional. O SMET se assegura em uma gama de hierarquias, e, dentre elas, como nos diz Boaventura, as mais importantes são as que respeitam as práticas globais e as práticas sociais e culturais transnacionais.

A história declara que as instituições sempre existiram para atender a demanda das classes dominantes, seja com uma Coroa voltada aos interesses portugueses, seja um Capitalismo de Estado. Principalmente depois de 1964 tornou-se claro como o sol que o desmantelamento das perspectivas públicas em função do plano econômico liberal, voltado à pretensão de enriquecer as classes dominantes, isto é, os que já são ricos, e empobrecer ainda mais as classes marginalizadas, que por sua vez, não podem ser senão paupérrimas. E outro elemento da ruptura de Boaventura, mas ainda dentro da lógica ao respeito à hierarquia de mercado global, é a burocratização de desregulamentação do Estado: o próprio governo precisa criar regulamentações para desregulamentar o mercado para que fique mais suscetível à investimentos estrangeiros, afinal, as economias no SMET tendem a ser transnacionais.

Já em Canclini, que também está a pensar as grandes questões do mundo moderno, trato outra forma de ruptura epistemológica. Nele, assim como em Boa Ventura, a questão dos Estados transnacionais é relevante para se entender a sua fundamentação teórica, pois, tradicionalmente, a identidade nacional, segmentada pela cultural tradicional, é legitimada pelas fronteiras territoriais. Quando essas fronteiras deixam de ser o marco que caracteriza os signos de identificação, os grupos culturais se capilarizam diante as novas possibilidades de identitárias surgida pela globalização dos meios de comunicação. A ruptura epistemológica em Canclini está a partir da percepção de entender a dinâmica particular do desenvolvimento tecnológico, e suas consequências, em cada sociedade e como isso a reestrutura. O autor demonstra os novos sentidos das sociedades, dados pela transmutação possibilitada pelo contato tecnológico, dentro dos grupos sociais. Cada contexto urbano se apropria de signos e dão a eles significados díspares. A ruptura reside no fato de que outrora, tradicionalmente, as instituições sociais norteavam a vida das pessoas e as suas respectivas identificações estavam dentro de um discurso de saber muito bem esclarecido e legitimador da vida cotidiana. Ainda sobre Canclini, ele escreve que a eficácia simbólica de cada signo depende da reorganização do espaço público: os espaços públicos estão acometidos por inúmeros aspectos diferenciadores e, também, assimilantes. Nessa rede de significados, um dos signos que se prepondera é o da classe econômica, pois pertencer a determinada classe traz consigo a ideia de legitimidade em frequentar certos espaços: mesmo que já não possa ser possível distinguir o apreciador de música clássica daquele que ouve majoritariamente as músicas que estão em voga no momento presente, pois afirmar que ainda é possível fazer a distinção entre cultura de massa e cultura de elite no seio da sociedade industrial, é aceitar um posicionamento conservador. E, inclusive, os autores da Escola de Frankfurt criticam essa ideia conservadora de autonomia.

Uma das características do modo de produção capitalista, verdadeiramente, é sua capacidade de se reinventar para, cada vez mais, transformar áreas de produção humana, que até então não estavam sob o modelo de mais-valia e consumo, em mercado. Um exemplo clássico é a metamorfose do campo artístico, isto é, o abandono dos aspectos estéticos da arte encerrada em si mesma, arte pela arte, em campo de mercado. Deixa de existir a produção artística sem um fim que não seja a própria existência do ato de criação. A arte é objetificada e a produção artística deixa de ser um fim nela mesma e torna-se um meio para consagração de lucro privado, afinal há o distanciamento das formas tradicionais provocadas pelo mercado ao se apropriar de seu espaço de produção. Seja qual for o objeto a ser reduzido ao seu próprio consumo, por ter se tornado mercadoria, está sujeito a instrumentalização de seus meios e fins. Prática tão corrente que já existe termo que a define. Trata-se da reificação. Jameson amplia essa discussão ao esclarecer que:

“ sob o capitalismo, as formas tradicionais mais antigas da atividade humana são instrumentalmente reorganizadas ou ‘taylorizadas’, analiticamente fragmentadas e reconstruídas, segundo vários modelos racionais de eficiência e essencialmente reestruturadas com base em uma diferenciação entre meios e fins. Trata-se de uma ideia paradoxal, que não pode ser adequadamente apreciada até que se entenda em que medida a separação meios/fins efetivamente isola ou suspende os próprios fins. (...) Neste ponto, então, a qualidade das várias formas de atividade humana, seus "fins" e valores únicos e distintos, foi efetivamente isolada ou suspensa pelo sistema de mercado, deixando todas essas atividades livres para serem implacavelmente reorganizadas em termos de eficiência, como meros meios ou instrumentalidade’’.(Jameson, 1994, P. 12).

Em suma, a tríade dos pensadores que tratam da ruptura epistemológica possuem sua validade, mas ressalvas devem ser feitas para que não “tomemos um caldo” na onda de pensamento de dois deles. Não obstante a intelectualidade de Ianni, é reducionista dizer que a globalização é um processo que abarca todas as esferas da vida dos sujeitos e não abrir margem para bolsões de resistência é ignorar o processo de fluxo e polarização das relações de poder. Já Canclini, fixa que as identidades não podem mais serem concebidas a partir de pontos totalizantes, conquanto, ainda há inúmeras cidades que permeiam as relações tradicionais de identidade, como; emprego, classe, origem familiar, capital cultural, relações políticas e etc..

Referencias bibliográficas:

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Trad. Heloísa Pezza. 4º.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

JAMESON, Fredric. REIFICAÇÃO E UTOPIA NA CULTURA DE MASSA. In: JAMESON, Frediric. Crítica Marxista . 2. ed. USA: Brasiliense, 1994.

RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório: Etapas da evolução sócio-cultural. 7º.ed Brasil: Editora Vozes, 1983.

SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalização e as Ciências Sociais. 2ºed. São Paulo: Cortez Editora, 2002

Kallebe Mendes
Enviado por Kallebe Mendes em 16/10/2018
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