Análise do filme Pro dia nascer feliz sob a perspectiva do texto Escolas cheias, cadeias vazias de Maria Helena Souza Patto

O filme trata da relação do adolescente com a escola, focando também a desigualdade social e a banalização da violência. De fato, o filme mostra o cotidiano escolar de uma região extremamente pobre em Pernambuco, outra precarizada no Rio de Janeiro, umas em situação de barbárie em São Paulo, uma em estado razoável em Itaquaquecetuba (SP) e uma escola de elite de São Paulo. Há uma nítida opção pelo aluno, mostrando jovens pressionados em busca de resultados, outros abandonados física e afetivamente pelos pais, submetidos a um conflito de gerações com os professores, abandonados por uma escola que muitas vezes nem aula tem. Mostra que há angústias comuns entre os jovens de todas as classes, mas um abismo social que os separa.

Pro Dia Nascer Feliz foca o aluno e mostra o professor tal qual ele é: na escola dos pobres, um trabalhador precarizado tão vitimizado quanto os alunos e impotente diante do caos em que se vê imerso. Na escola dos ricos, um elemento de classe média desfrutando do status e respeito que as condições lhe oferecem. Aliás, uma forma interessante de se pensar o filme está na comparação da figura dos professores das diferentes escolas. De um lado, professoras descabeladas, com olheiras, cansaço visível e uma situação que leva muitos aos calmantes e antidepressivos: xingamentos, ofensas, descaso e a convivência em escolas e bairros que são uma tortura estética. Do outro, a suavidade de uma professora falando de O Cortiço, de Aloísio Azevedo, do alto de seu salário de R$ 6 mil mensais, sem expressão de cansaço, muito bem vestida e diante de uma platéia silenciosa de futuros vencedores, num ambiente aprazível, limpo e arborizado; da cadeira ou sofá pode-se sentir o frescor que o ambiente transmite.

O filme consegue mostrar que o desinteresse dos alunos, a sabotagem educacional, não está presente somente nos colégios destinados aos populares. No colégio Santa Cruz, de São Paulo, cuja mensalidade beira os R$ 1.600 reais, encontram-se também pichações, agressões, mal-estar com a escola, alunos sonolentos, desinteressados, repetentes e que pouco valor dão aos estudos, mais interessados nas conversas e nos beijos, amizades e namoros. Por este norte, mostra-se que se a escola existe como um meio pensado por seus gestores e professores antes de os alunos a adentrarem; estes, por sua vez, procuram adequá-la aos seus interesses uma vez que nela se inserem. Num mesmo prédio, temos a escola tal como a fazem e pensam os gestores e professores e outra escola tal qual a fazem e pensam os alunos. O que é uma característica de toda organização: o poder de fato é sempre uma média entre o que pretendem os administradores e o que permitem e desejam os administrados, seja na escola, hospital ou penitenciária.

As imagens não deixam dúvidas quanto aos problemas estruturais da educação pública centrados em gestão, qualificação e financiamento. Péssima estrutura, professores mal qualificados, gestores desatentos, carentes de qualificação mínima, nenhuma ou pouca assistência ao aluno. Enfim, uma escola condizente com a formação de um exército de trabalhadores precarizados onde os índices de segurança pública e fatores disciplinares acabam pesando mais na formação de uma juventude que possui pela frente um mercado de trabalho rústico. Claramente, o maior interesse dos alunos mostrado no colégio de elite é condizente com o futuro que os espera. Enquanto os primeiros estão numa escola que significa uma verdadeira condenação social, com horizontes de trabalho pesado e mal remunerado, os últimos têm, a cada dia, confirmada a sua destinação para cargos de chefia ou trabalhos bem remunerados e bem vistos socialmente. No final do filme, informações mostram que a aluna da escola pública abandona a poesia e os escritos, terminando como dobradora de roupas, enquanto a aluna do Santa Cruz figura como ingressante em engenharia na USP.

Há, pelo menos, uma nítida evidência no decorrer das entrevistas e da participação dos adolescentes no documentário, a de que a educação não lhes apresenta a oportunidade a que se propõe, promovendo o tal “fracasso” educacional.

Constata-se, então, a complexidade do fracasso escolar, na medida em que envolve as dimensões políticas, históricas, socioeconômicas, ideológicas e institucionais, bem como dimensões pedagógicas em estreita articulação com o poder aquisitivo do seu corpo discente, juntamente às famílias a que pertencem. Uma estudante do Colégio Santa Cruz, localizado no Bairro Alto de Pinheiros, em São Paulo, reconhece a dessemelhança entre sua instituição e as de periferia... Ela expressa: “Na essência somos iguais, mas estamos submetidos a mundos diferentes, que na realidade é um mesmo mundo...” Nessa perspectiva, é possível mapear o fracasso e o sucesso escolar onde exista ou não situação econômica favorável, esquecendo-se, nesse percurso, a real importância do papel da escola nos processos de desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes.

Os dados sobre a política educacional, financiamento, currículo e outros pressupostos necessários à contextualização histórica estiveram ausentes na abordagem, uma vez que as informações permitem a origem de tamanha barbárie. Dessa forma, o filme alimenta o caos instaurado na educação uma vez que retrata os problemas educacionais sem apontar as responsabilidades dos sujeitos autores e coadjuvantes da sua miséria educacional. Assim, podemos refletir sobre o que nos diz Patto,

O panorama atual da sociedade brasileira, embora não mais pautado pelo modo de produção escravista, nos põe, no entanto, diante da seguinte questão: até que ponto o Estado, num país que faz parte da lógica da globalização, que dispensa cada vez mais o trabalho de grandes contingentes de trabalhadores, e que está entre os campeões mundiais de desrespeito bárbaro aos direitos humanos, vê-se de fato diante da premência de investir num sistema de instrução pública que garanta a todos a posse de habilidades e conhecimentos a que têm direito como participantes de uma sociedade em que predominam o letramento e a informação técnico-científica e que os domestique por meio de uma visão ideológica de mundo? (PATTO, 2007)

onde podemos concluir que realmente o objetivo e a finalidade do ensino nas escolas hoje são duvidosos no que se refere a qualidade visivelmente afetada pela falta de atenção das autoridades que veem, política e historicamente falando, um viés para uma sociedade robotizada e inculta. Isso é perceptível no filme. O menino repetente e indisciplinado de Duque de Caxias, RJ, faz carreira no exército. A poetiza, lírica e sonhadora menina de Pernambuco faz curso normal para tornar-se professora; a de São Paulo, fugida da escola por ameaças de agressão, embala um filho em seus braços acalentando o sonho em ser professora.

Ao mostrar um quadro discrepante entre a escola de elite e as escolas públicas, talvez, a partir dele, se possa pensar que a educação só funciona se for oportunizada para fomentar os sonhos ou a confirmação de superioridade social. A escola de elite parece funcionar melhor porque é um ponto de uma rede de proteção que funciona bem e “garante” ao aluno um futuro promissor. A escola pública só vai bem se permitir sonhar. Enquanto sinônimo de condenação social, os alunos, perspicazes, não se interessam por ela.

Referências:

Patto, M. H. S. (2007a). Escolas cheias, cadeias vazias – Nota sobre as raízes ideológicas do pensamento educacional brasileiro. Estudos Avançados, 21(61), 243-266.