O Anticristo: Sade, Rousseau e Nietzsche

Nietzsche era grego pra mim. Aí eu li Sade, ou seja lá quem for cujo anonimato, em meio a turbulência da França XVIII, tenha se convertido no seu nome, mais especificamente, Filosofia na Alcova; logo depois li Rousseau; e muita coisa ficou clara. Enquanto que o primeiro é um esboço rústico e violento do alemão, o segundo é seu exato oposto. Precisei do libertino amoral para entender a estrutura de sua crítica, e do iluminista misantropo para entender o objeto da mesma.

Tanto Nietzsche quanto Sade defendiam o ''direito do mais forte''; ''direito'' que Rousseau via como um dos primeiros sinais de desgraçamento da humanidade. Claro que num e noutro a expressão adquire seus próprios afetos e sentidos: 'forte' para Sade se referia exclusivamente à força física, animal; para Rousseau significava riqueza, como contrária a pobreza, a quem nada possuía; para Nietzsche uma imparcialidade intelectual, 'grandeza de alma', a capacidade de ver além e abaixo de si, sem preconceitos e amarras ('convicções'). De qualquer modo, para o libertino e o hiperbóreo, há um forte sobre um fraco; enquanto para o iluminista há um homem e uma mulher, ao lado de um homem e uma mulher, e assim por diante...

Fica claro no texto que, para Nietzsche, o ''cristianismo'', por ele duramente atacado, não se refere, não se restringe apenas ao dito ''cristão'', aos ''dogmas cristãos'', à ''Igreja'', aos ''sacramentos'', etc. Seu ataque é a tudo que carrega os valores cristãos: mesmo o ''ateu'' que se insurge contra a entidade fantasmagórica comumente chamada de ''Deus'' carrega esses valores. Assim como os 'patriotas', os 'soldados', os 'guerreiros', segundo o alemão, deviam se envergonhar de se considerarem 'cristãos', pois tudo o que são, tudo aquilo pelo qual lutam, são opostos a isto; também o ''ateu'' que, num sentido inverso, se diz anticristão, está contaminado de valores cristãos. O cristianismo, para Nietzsche, tornou-se mais que religião, tornou-se uma forma de ver o mundo, uma filosofia, mais até que filosofia, uma doença hereditária que se manisfesta nas vísceras, fisiologicamente, em resumo: uma moral; para ele, uma desgraça.

Por isso Sade, enquanto ateu, se aproxima dele: porque além de ateu, ele é amoral. Atacava a caridade cristã que, segundo ele, infestava a França de albergues, com mendigos e órfãos. Não via, como seu descendente intelectual, uma sociedade piramidal, fundada sobre os medíocres, ''máquinas perfeitas'', base essencial à estrutura; via, ao contrário, o fraco sendo pisado pelo forte, tornando-se ele próprio forte ou sucumbindo de vez, via uma Europa de pedra regrada ao capricho do pior tipo de selvageria: a selvageria do 'homem civilizado', 'policiado', de Rousseau.

Nietzsche compara o ''anarquismo/socialismo'' ao ''cristianismo'' que, bem entendido o texto, é o cristianismo político, o cristianismo ateu, uma deturpação política; como para ele o era o protestantismo em relação ao cristianismo, e este em relação ao judaísmo. Assim como o 'padre', também não é somente aquele que usa batina e colarinho branco, com modo de falar influenciado pelo latim, não é somente o rabino, mas todo aquele que ''prega'' uma ''verdade'', todo o fanático, todo o moralista, todo o idealista; fanático, moralista e idealista como Rousseau, que acreditava que as ciências e as artes aviltavam os costumes da humanidade, que o filósofo era um homem depravado, e que a desigualdade, essencial para o florescimento da humanidade do império-romano-histórico-mundial de Nietzsche, era um mal que deveria ser lamentado.

O sentimento anti-cristão do hiperbóreo é mais sofisticado que o do libertino. Para Sade, Jesus era homem, uma fraude, que foi engrandecido por impostores. Tudo com ele é carne e osso; o libertino é mais impaciente, não perde tempo com o que considera bagatela e superstição. O hiperbóreo, às alturas, onde é frio e solitário, era sofisticado, seu Jesus é simbólico, a fraude também lhe é simbólica.

Rousseau olha, choroso e nostálgico, para trás, a inocência perdida do homem primevo, no seu paraíso que era a terra. Nietzsche, por sua vez, faz o mesmo, olha para trás, mas não tanto, e lamenta com raiva e frustração a queda de Roma, a perda do Império que era símbolo da força monumental e da nobreza de espírito do homem que nele ascenderia algures nalgum pico sempre além.

Sade, entretanto, olhava para a frente, e via o fim da religião. Ele ainda olha.