O REALISMO MACHADIANO EM DOIS CONTOS

“Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”, disse Hamlet para Horácio. É com essa citação de Shakespeare que Machado de Assis inicia o conto A Cartomante. Nessa frase imortalizada pelo renascentista inglês, está a ideia da infinitude de possibilidades que é o universo humano. É um pouco desse universo humano presente na obra machadiana que o presente trabalho pretende analisar, a partir de dois contos, o próprio A cartomante e O enfermeiro.

O conto A Cartomante se passa no ano de 1869, principalmente no mês de novembro, e na cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo onde residem dois importantes personagens: Rita e seu esposo Vilela. Ainda, outro cenário de destaque é a casa da Cartomante, onde ela atende a própria Rita e seu amante, amigo de Vilela, Camilo. Todos estes são os personagens da trama – a Cartomante, Rita, Vilela e Camilo. Quem conta a história é um narrador em terceira pessoa, onisciente seletivo.

O conto tem início com Rita confidenciando a Camilo – seu amante e melhor amigo do seu esposo Vilela – da visita que fez a uma cartomante com o intuito de saber se ele ainda gostava dela, Rita. Fato, este, que provoca risos de Camilo, que ao mesmo tempo em que reafirmava seu interesse por ela, ainda o enchia de confiança no sentimento recíproco da mulher. Na sequência, o narrador informa o contexto em que os amantes se conheceram, quando o casal Rita e Vilela foi viver em Botafogo, na casa em que o próprio Camilo providenciou para seu amigo e a esposa

Foi a partir da morte da mãe de Camilo que a aproximação com Rita aconteceu, tendo como conseqüência um caso amoroso de adultério. O aprofundamento do romance levou a um afastamento de Camilo, do convívio com o casal de amigos e, este distanciamento provocou o medo nos amantes, de serem descobertos pelo marido-amigo traído, Vilela. Sensação que ficou mais intensa depois que Camilo começou a receber cartas anônimas, denunciando que alguém sabia do caso de adultério.

Camilo fica mais amedrontado quando recebe de Vilela um convite para que fosse à residência do casal. Será que o amigo traído teria descoberto o seu relacionamento com Rita? Contudo, ao visitar a cartomante, enquanto se dirigia à casa de Vilela para atender seu chamamento, Camilo é tranqüilizado pelas cartas, que traziam a boa notícia que nada de mal iria lhe acontecer. Assim, o adúltero seguiu tranqüilo rumo ao seu destino.

Nesse ponto do conto ocorre o inusitado, uma reviravolta. Pois, ao chegar na casa de Vilela e Rita, encontra esta morta com o corpo estendido ensangüentado, e antes mesmo de se recuperar do susto é morto pelo marido traído Vilela, com vários tiros.

Ao contrário de A Cartomante, no conto O Enfermeiro Machado de Assis o encerra com uma citação do sermão da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”. Com isso ele demonstra um pouco de sua grande ironia, afinal a história trata de um homicídio em que o assassino acaba por ser recompensado com a herança do morto.

O Enfermeiro se passa entre Niterói e certa vila do interior do Rio de Janeiro no ano de 1860. Os dois personagens que se destacam são Procópio José Gomes Valongo, o enfermeiro, com quarenta e dois anos na época, e coronel Felisberto, que estava perto de sessenta anos de idade e convalescia de uma doença terminal, e não tinha parentes. É narrado em primeira pessoa pelo enfermeiro Procópio, que está no fim da vida e narra a história como se fizesse uma confição.

No ano anterior, Procópio havia tornado-se teólogo e, por intermédio do vigário seu amigo e professor, no mês de agosto de 1859 foi servir de enfermeiro ao coronel Felisberto, “mediante um bom ordenado”. O doente, contudo, não era pessoa fácil de lidar e ao final de três meses Procópio estava determinado a ir embora, apenas esperando a melhor ocasião. Porém, em razão dos apelos do vigário ia ficando, mesmo que as relações fossem se tornando “melindrosas”. O coronel piorava, inclusive fez um testamento. E seguia com um comportamento desagradável com todos que o cercavam por algum motivo.

Quando a situação estava próxima do insustentável, e já próximo de deixar o emprego, Procópio e o Coronel tiveram um desentendimento que teve como desfecho a morte de Felisberto, estrangulado pelo seu enfermeiro.

Assim é descrito o sentimento de Procópio depois de cometer o homicídio:

Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico. (ASSIS, 1994, p.45)

Após o enterro de Felisberto, Procópio voltou ao Rio de Janeiro, onde por um tempo viveu “aterrado”, mesmo distante do crime, “não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos”. É quando acontece uma reviravolta na trama, “sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal.” (ASSIS, 1994, p.46) Procópio termina, por uma ironia do destino, herdando o espólio do coronel que havia assassinado.

Bosi caracteriza a importância que os escritores realistas dão à construção dos personagens, na seguinte passagem, “escritor realista tomará a sério as suas personagens e se sentirá no dever de descobrir-lhes a verdade, no sentido positivista de dissecar os móveis do seu comportamento”. (BOSI, 1988, p.187)

Nos dois contos Machado de Assis é econômico nos personagens, em ambos aparecem três. Que são pessoas comuns, com vidas normais, que enfrentam problemas e situações que afetam os indivíduos da “vida real”. Outra semelhança encontrada é o homicídio. No primeiro conto o marido traído mata a esposa e o amante, no segundo conto o enfermeiro cansado de ser mal tratado tem uma desinteligência com o patrão e acaba por matá-lo. Os personagens que mais se destacam nas duas narrativas, em várias passagens fazem reflexões sobre seus atos que são moralmente condenáveis, porém sempre encontram uma justificativa tranqüilizadora por terem agido daquela maneira.

No primeiro conto é a cartomante que tranqüiliza Camilo com suas cartas, que afirmam que está tudo bem e nada de mal irá lhe acontecer. No segundo conto, são as pessoas que conheciam e não gostavam do coronel Felisberto, que atenuam a consciência pesada de Procópio, que foi de uma “mansidão cristã e de grande zelo ao servir ao coronel.”

Além disso, os contos se desenrolam num espaço de tempo próximo, 1869 e 1860 respectivamente. O espaço é o Rio de Janeiro, a capital do império e cidade de Machado de Assis, primeiramente, no bairro de Botafogo, depois em uma vila qualquer perto de Niterói.

A obra de Machado de Assis já foi, e continua sendo muito explorada por diversos estudiosos e isto representa um maneira prática de se reconhecer um grande escritor, segundo Petraglia:

Qual a maneira prática de reconhecer um grande escritor? Maneira prática, isto é, sem que tenhamos de nos perder nos labirintos das teorias, de nos engalfinhar em disputas e polêmicas, enfim, sem que tenhamos de cair – que é para onde uma escolha assim fatalmente nos leva – em preferências pessoais. Em suma, maneira prática, simples e objetiva. Sem tergiversar, respondo: pelo tamanho e contínuo incremento de sua fortuna crítica. A tal ponto que o nome se converte em adjetivo: estudos machadianos (PETRAGLIA, 2018, p.1107)

A atualidade de Machado de Assis deve-se, certamente, à qualidade de sua literatura, mas também pela maneira como ele retrata questões que estão presentes na vida das pessoas reais. Isso explica o interesse que estudiosos do passado e do presente ainda têm por sua obra

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de Obra Completa, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente por Laemmert & C. Editores, Rio de Janeiro em 1896.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1988.

PETRAGLIA Benito. Resenha de GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017. In: Remate de Males, Campinas-SP, v.38, n.2, pp. 1107-1116, jul./dez. 2018 – 1109