Análises realizadas na disciplina de Literatura Portuguesa Do Simbolismo Ao Neorrealismo

Violoncelo (Camilo Pessanha)

Chorai arcadas

Do violoncelo!

Convulsionadas,

Pontes aladas

De pesadelo...

De que esvoaçam,

Brancos, os arcos...

Por baixo passam,

Se despedaçam,

No rio, os barcos.

Fundas, soluçam

Caudais de choro...

Que ruínas, (ouçam)!

Se se debruçam,

Que sorvedouro!...

Trêmulos astros,

Solidões lacustres...

Lemes e mastros...

E os alabastros

Dos balaústres!

Urnas quebradas!

Blocos de gelo...

Chorai arcadas,

Despedaçadas,

Do violoncelo.

O poema “Violoncelo” foi escrito por Camilo Pessanha, que nasceu em Coimbra, em 1867, e faleceu em Macau, em 1926. Pessanha foi um grande poeta e principal representante do Simbolismo português (1890-1915). Várias de suas poesias encontram-se no livro Clepsidra, publicado em 1922, cujo título simboliza um instrumento de medição de tempo antigo, semelhante à ampulheta, no qual corre água. Nesse sentido, seus poemas possuem traços marcantes de seu movimento literário, com simbologias, musicalidade marcante e dramaticidade, o que podemos notar em “Violoncelo”.

Ao mergulharmos na estrutura aparente do poema, podemos perceber claramente qualidades musicais, com o vocabulário eufônico (arcadas, violoncelo, ouçam, trêmulos), a estrutura das cinco estrofes – cinco quintilhas; quatro sílabas poéticas por verso; rimas perfeitas – e a pontuação – com excessos de reticências e exclamações – sugerindo uma melodia musical. Ademais, a utilização de palavras paroxítonas, aliterações e assonâncias também sugere esse ritmo melódico.

Além disso, observa-se a presença de sinestesias e da valorização da imaginação, características marcantes do Simbolismo. Isto atenta-se, por exemplo, no verso: “Que ruínas, (ouçam)!”. Outrossim, vê-se prosopopeia, em “convulsionadas” (as arcadas); anástrofe, em “No rio, os barcos” e “Fundas, soluçam”. Dessa forma, o poema evoca uma música, contínua enquanto dura, como se fosse produzida pelo violoncelo – dando também a impressão de água corrente. Essa música expressa mistério e tristeza, e podemos compreender esses sentimentos somente através dos símbolos, imagens e associações propostas pelo poema.

Assim, o percurso de sentido do poema dá-se da seguinte forma: as arcadas do violoncelo começam a soar uma música, como a fluidez de um curso de água, e essas arcadas passam a ser associadas às de pontes, como se estas também começassem a ressoar a música, pois “ganham asas”; porém, essa música é triste (chorai, convulsionadas, pesadelo). Por baixo dessas pontes, passam barcos, que se despedaçam – enaltecendo a tragicidade. Nas próximas estrofes, é continuada a descrição do que acontece debaixo das pontes, detalhando, no abismo, no fundo, o sofrimento de todas as partes dos barcos que são despedaçadas – e imagino que abaixo das arcadas do violoncelo, algo também se despedaça. Por fim, as arcadas também quebram-se – acredito que o violoncelo e as pontes também, sobrando só o rio. Vejo, nesse final, características do Simbolismo como “sonho e morte como libertação da alma” e “valorização da alma em detrimento da matéria”, pois tudo some e só “o que importa” permanece.

“Violoncelo”, portanto, representa muito bem a época em questão e o período literário correspondente, dado que reflete o onírico, a sensibilidade, o subjetivismo profundo, o culto do vago, a postura antimaterialista e antirracionalista e o Decadentismo com uma escrita poética de desagregação, pois Pessanha vivia em uma sociedade que lhe parecia em degenerescência; sentia-se um exilado no mundo, desintegrando-se como o mundo que vivenciava. Pessanha estava isolado em Macau no momento em que escreveu o poema; assim, buscou relacionar sua melancolia com elementos musicais e com o vínculo que os portugueses tinham com o mar.

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Segue o teu destino (Ricardo Reis)

Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixa a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

Está além dos deuses.

Mas serenamente

Imita o Olimpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

Fernando Pessoa é um brilhante poeta modernista português conhecido por sua fragmentação. Esta envolve um ato de fingimento que se completa na utilização de várias linguagens, reveladoras do sujeito como ser múltiplo: fazendo surgir a heteronímia de Pessoa.

Os heterônimos são personagens criados pelo próprio poeta. Têm nome, obra, biografia e estilo próprio. O autor, Fernando Pessoa, passa a ser chamado de “ortônimo”, não havendo a possibilidade de existência deste sem seus heterônimos. Logo, para representar poeticamente esta impossibilidade de unidade, Pessoa cria os heterônimos com personalidades contraditórias entre si (CORTEZ; GOBBI, 2010).

Um de seus heterônimos é chamado Ricardo Reis. Este nasce no Porto, Portugal, a 19 de setembro de 1887. Estuda em um colégio de Jesuítas onde aprende latim. Aprende grego por conta própria. Forma-se em Medicina. É monarquista e vive parte de sua vida no Brasil. Morre a 30 de novembro de 1935 em Lisboa, Portugal (MOISÉS, 2005).

Ricardo Reis é helenista e cultivador de características e de temas clássicos. Tem sua poética marcada pelo carpe diem horaciano. Como expõe Massaud Moisés, Ricardo Reis “simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente da adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica” (MOISÉS, 2005, p. 244). Assim, em suas obras, aparece o lema “gozar a brevidade da vida, o momento; aproveitar cada segundo; gozar o dia; desfrutar o que se possa obter do momento em que se vive”. Tem-se, também, em seus poemas, a presença do locus amoenus e do aurea mediocritas. Além disso, cultua o paganismo: em favor de uma aparente rejeição aos valores do Cristianismo.

Um de seus poemas mais famosos é “Segue o teu destino”. Este poema possui 5 estrofes, com 5 versos cada – quintilha. Os versos são brancos, ou seja, não possuem rima. Ademais, trata-se de uma ode, visto que Ricardo Reis é influenciado pelo poeta Horácio. Entre os antigos gregos, as odes, sempre de tom alegre e entusiástico, são destinadas ao canto e compostas por estrofes de métrica igual.

No Modernismo (1915-1970), as odes são atualizadas a refletir o momento vigente. Esta ode dispõe de 5 sílabas poéticas por verso, sendo uma redondilha menor. Vale ressaltar que é notória a presença de figuras de estilo, como metáfora, em “Os deuses são deuses / Porque não se pensam”; aliteração do “s”, em “Só nós somos sempre / Iguais a nós-próprios; prosopopeia, em “Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode / Dizer-te. A resposta”.

Dessa forma, torna-se evidente a presença de influências neoclássicas no poema – precisão, sobriedade, estilo erudito –, do estoicismo – aceitação do destino –, do epicurismo – ideal horaciano de carpe diem – e do paganismo – crença nos deuses e cultivação da mitologia greco-latina. Isso pode ser comprovado, também, pela temática da ode em questão:

“Segue teu destino” possui um percurso de sentido que se dá da seguinte forma: na 1ª estrofe, o “destino” representa a vida e o eu-lírico convida-nos a amar o que a vida nos oferece, as coisas naturais da vida (plantas, rosas) – o que pode ser visto também como uma metáfora (“Rega as tuas plantas, / “Ama as tuas rosas.”) –, e a deixar de lado tudo o que for alheio à esta.

Na 2ª estrofe, o eu-lírico elucida que a realidade é o que fazemos dela e normalmente – mesmo com momentos “mais ou menos” (menos agradáveis) – obtemos o desejado; nesse contexto, somos únicos e individuais e nunca conseguimos ser alguém que não corresponda à nossa pessoa.

Na 3ª estrofe, o eu-lírico transmite que é bom viver da simplicidade e de forma suave, sem muitos percalços, ignorando os fatores menos relevantes a fim de esquecer a dor e viver de acordo com o que nos foi predestinado.

Na 4ª estrofe, o eu-lírico aconselha-nos a sermos observadores de nossas próprias vidas e a ignorarmos nossas funções dentro destas, dizendo que a resposta à interrogação do verdadeiro significado da vida e de sua essência está para além do conhecimento dos deuses.

Por fim, na 5ª estrofe, a voz presente no poema apela para que sejamos os nossos próprios deuses no sentido de tornarmo-nos mestres dos nossos próprios sentimentos e vontades e reitera que os deuses são superiores a nós por não questionarem a razão de todas as coisas.

Assim sendo, Ricardo Reis detém-se da preocupação horaciana de despertar a consciência para a brevidade da vida. A decisão e arbítrio do heterônimo pessoano, em resposta a esta efemeridade que nos é fadada, é aceitar a vida como ela é e contentar-se com o que se tem (CORTEZ; GOBBI, 2010).

Neste poema, o eu-lírico aconselha-nos, portanto, a cuidarmos de nossas próprias vidas sem cobiçarmos coisas alheias para, assim, a aproveitarmos (carpe diem) sem perdermos tempo com interrogações e coisas tolas. Por isso, pauta pela temperança, pela resignação, pela rejeição dos extremos (aurea mediocritas) e pela aceitação de nosso espaço (locus amoenus), o qual nos é destinado.

REFERÊNCIAS:

CORTEZ, Clarice Zamonaro; GOBBI, Márcia Valéria Zamboni. A Literatura Portuguesa: das origens à atualidade. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2010.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

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V - Há metafísica bastante em não pensar em nada (Alberto Caeiro) – poema presente em O Guardador de Rebanhos (1925)

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?

Sei lá o que penso do mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

A luz do sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?

A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós, que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...

"Sentido íntimo do Universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em cousas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,

(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

Como quem abre os olhos e vê,

E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

E amo-o sem pensar nele,

E penso-o vendo e ouvindo,

E ando com ele a toda a hora.

Existem muitas diferenças entre os dois poemas, dado que são escritos por heterônimos com características bem diferentes. Alberto Caeiro é um camponês autodidata, desprovido de erudição, que contempla a natureza ao seu redor, traz versos livres e prioriza sentimento ao invés de razão, ao contrário de Ricardo Reis: o heterônimo erudito.

Todavia, ambos os poemas trazem concepções de “deus” – para Ricardo Reis, os deuses (mitologia grega) estão acima de tudo e controlam o destino dos homens; para Alberto Caeiro, não se deve pensar em Deus – e sobre “não interrogar, não pensar sobre”:

No primeiro poema, é mencionado como irrelevante pensar sobre – questionar – a vida; no segundo, é dado como irrelevante pensar sobre as coisas, sobre o mistério (“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério.”), tendo uma desvalorização da metafísica.

Em “Segue o teu destino”, os deuses são vistos como exemplos (“Os deuses são deuses / Porque não se pensam”) para o ser humano, este tendo que “imitar o Olimpo em seu coração”, ou seja, seguir o exemplo de “perfeição” dos deuses gregos, sem questionar-se sobre a vida e apenas desfrutá-la. Nos versos “Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode / Dizer-te. A resposta / Está além dos deuses”, o eu-lírico sugere, tomando os deuses como bens supremos, que o ser humano deve aceitar seu fado, sua vida, seu destino, e ponto final, pois a resposta para questionamentos sobre a vida não pertence nem à dimensão dos deuses, reiterando, tidos como bens maiores.

Em “V – Há metafísica bastante em não pensar em nada”, o eu-lírico alude que pensar em Deus é como não pensar em nada (“Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos / E não pensar. É correr as cortinas / Da minha janela (mas ela não tem cortinas).”). Nesse poema de Caeiro, o eu-lírico afirma que não acredita em Deus por nunca ter o visto; entretanto, diz que se Deus for as flores, as árvores e todos os elementos da natureza, acredita nele, ama ele, sem precisar pensar nele, apenas ver e ouvir (a natureza), convivendo sem questionamentos.

Ambos os poemas retratam concepções de “deus” e trazem visões sobre o “não pensar, apenas viver”. Contudo, no primeiro poema, há influências do misticismo (“Deixa a dor nas aras / Como ex-voto aos deuses.”); já Caeiro é inimigo do misticismo e adepto ao panteísmo, não acreditando em uma superioridade divina, como prega o Cristianismo (monoteísmo) e a mitologia grega (politeísmo), mas exaltando a natureza como Deus – “tudo é Deus” –, considerando todas as coisas da natureza como divinas e vendo as coisas como naturais – “como elas são”.

Portanto, os dois heterônimos adotam concepções pagãs. O primeiro poema revela o misticismo da mitologia grega e o segundo poema mostra a presença do paganismo no culto das forças da Natureza como entidades supremas (panteísmo).

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Eu …(Florbela Espanca)

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada … a dolorida …

Sombra de névoa tênue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê…

Sou a que chamam triste sem o ser…

Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver,

E que nunca na vida me encontrou!

Amar! (Florbela Espanca)

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: aqui… além…

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…

Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder… pra me encontrar…

Florbela Espanca (1894-1930) é uma figura de referência obrigatória na Literatura Portuguesa por ser ícone da poesia de autoria feminina (SOUSA; LOUSADA, 2012). Esta poetisa portuguesa, autora de poemas, sonetos, contos e cartas, é uma das primeiras feministas de Portugal.

Sua poesia é conhecida por um estilo peculiar com forte teor emocional e confessional, tematizando desde a solidão, o sofrimento, o desencanto até o desejo de ser feliz e, também e tão bem, as nuances do amor. Em 1903, com apenas sete anos, começa a escrever seus primeiros textos e seu primeiro poema, “A Vida e a Morte”, o qual já revela sua preferência por textos melancólicos (FRAZÃO, 2020).

Florbela não faz parte de nenhum movimento literário (interregno), embora viva cronologicamente na época do Modernismo (1915-1970). Em 1919, lança o “Livro de Mágoas”, inspirado na sua vida tumultuada, na rejeição do pai, com uma linguagem situada nas próprias frustações e anseios, o que se pode observar em seu soneto “Eu ...”:

Por ser um soneto, apresenta dois quartetos e dois tercetos. Possui métrica perfeita, com dez sílabas poéticas por verso (decassílabo). Conta com rimas regulares: nas primeiras estrofes, rimas interpoladas (A-B-B-A); nas últimas estrofes, rimas C-D-C e E-D-E, respectivamente. Contém tanto rimas pobres, como “perdida/dolorida”, “ser/ver”, quanto rimas ricas, como “forte/morte”, “vê/porquê”. Apresenta anáfora do “Eu sou” e do “sou” (no segundo caso, tem-se a elipse do “eu”); apresenta personificação (“irmã do Sonho”, “destino amargo, triste e forte”). Vale ressaltar sua utilização característica das reticências.

No primeiro quarteto, observa-se um eu-lírico – mulher – perdido, sem rumo, aproximando-se do Sonho e da sorte, do irreal, na tentativa sem sucesso de fugir da realidade: o que ocasiona dor. Na segunda estrofe, existem palavras que remetem à escuridão (“sombra”, “luto”) e à desilusão, enaltecendo seu desespero, a aproximação da morte por conta do destino – vivendo a morte em vida (“alma de luto sempre incompreendida”). Nos dois últimos tercetos, notam-se os relatos da falta de atenção, de que só enxergam nela tristeza e de seu desejo de ser vista, amada e encontrada em uma vida marcada por desencontros (FRAZÃO, 2011). Assim, percebe-se que é um poema com influências Decadentistas; que falta algo em sua vida, tendo uma incompletude que precisa ser reafirmada e repetida várias vezes: na tentativa de que alguém a compreenda e apareça.

Outro poema marcante, com temática divergente do anterior, é o soneto “Amar!”, presente na publicação de Charneca em Flor (1930). Por ser também um soneto, apresenta dois quartetos e dois tercetos. Possui métrica perfeita, com dez sílabas poéticas por verso (decassílabo). A sexta sílaba poética, neste soneto, sobressai-se em diversos versos. Há rimas em todos os versos, porém de forma diferente: A-B-A-B, A-B-B-A, C-C-D, E-E-D. Bem peculiar!... Contém tanto rimas pobres, como “ninguém/alguém”, “cantar/encontrar”, quanto rimas ricas, como “vida/florida”, “nada, alvorada”. É evidente a anáfora do “amor”, destacando esta palavra. A palavra “primavera” pode ser vista como uma metáfora da “juventude”. Ademais, há uma tendência ao carpe diem durante todo o poema, apresentando uma vontade de amar demasiadamente enquanto há tempo.

O percurso de sentido deste segundo soneto dá-se da seguinte forma: no primeiro quarteto, o eu-lírico manifesta o desejo de amar, de amar plenamente, livremente, não importando com quem, quando, onde, porquê; podendo deixar de amar e voltar a amar, dependendo de sua vontade. No segundo quarteto, essa mesma voz recusa o apego – venera o amor livre – e nega a possibilidade do amor eterno – “eterno enquanto dure”. No primeiro terceto, o eu-lírico apresenta a efemeridade da vida, manifestando que Deus nos dá a voz para cantar a primavera, e aproveitá-la. Por fim, no último terceto, o eu-lírico – ressalta-se que feminino – reconhece a morte e diz que esta deve se fundir não à noite, mas ao dia, à alvorada, dando sentido à existência efêmera, coberta de amor (JUNIOR, 2013). Nesse sentido, vê-se que o eu-lírico busca amor sem limites; aproveitar cada instante de amor, os melhores momentos de amor, enquanto for “primavera”, regozijando-se até o fim.

Diferentes perspectivas de existência são recorrentes na vida e na obra de Florbela. Os dois sonetos descritos expõem temáticas díspares: os dois extremos da poesia da autora. O primeiro, retrata as angústias, dores e dúvidas. Ela transpõe para este a imagem da mulher triste, abandonada pela sorte desde o nascimento. O segundo, revela sua incapacidade de viver submissa a um homem, por mais que o ame. Demonstra uma de suas facetas do amor: um amor livre, sem limites. Não aceita que o amor seja um confinamento, mas algo sublime, o qual explora em sua poética com primor (RANIERI, 2011). Todavia, ambos os sonetos revelam um “eu”, um autolirismo que exprime esses determinados momentos de sua vida. Florbela tem uma vida de altos e baixos, boêmia, com várias relações turbulentas. Transtornos psicológicos, críticas sobre seus comportamentos, o não poder engravidar, dentre outros fatos, a acompanham durante a totalidade de sua vida, juntamente com o amor em suas diversas fases e facetas.

REFERÊNCIAS:

FRAZÃO, Dilva. Florbela Espanca Poetisa Portuguesa. eBiografia, 2020. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/florbela_espanca>. Acesso em: 30 abr. 2021.

FRAZÃO, Maria Rogelma Soares Torres. Análise do poema “Eu” - Florbela Espanca. Webartigos, 2011. Disponível em: <https://www.webartigos.com/artigos/analise-do-poema-eu-florbela-espanca/81137>. Acesso em: 30 abr. 2021.

JUNIOR, José Leite Oliveira. Transgressão e segredo num poema de Florbela Espanca. CASA. São Paulo. Vol. 11, no. 1, p. 121-129, jul. 2013. Disponível em: <http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/19636>. Acesso em: 30 abr. 2021.

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Vicente (Miguel Torga)

Miguel Torga (1907-1995) é um escritor português e um dos mais importantes poetas do século XX. Além disso, destaca-se como contista, ensaísta, romancista e dramaturgo. Miguel Torga é pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha. O nome “Miguel” é uma homenagem aos poetas espanhóis Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. O sobrenome “Torga”, por sua vez, faz tributo à planta urze, também conhecida como torga, que possui raízes que atingem grandes profundidades em busca de água, simbolizando a capacidade de viver nas adversidades (SALDANHA, 2015).

“Sua obra reflete as apreensões, esperanças e angústias de seu tempo, traduz sua rebeldia contra as injustiças e sua revolta diante dos abusos do poder” (FRAZÃO, 2017, p. 1). Uma de suas obras mais emblemáticas é Bichos (1940), a qual reúne contos nos quais as personagens apresentam uma dimensão interior, uma consciência psicológica: são representações do humano. Dentre os contos, tem-se “Vicente” – último conto presente na obra –, espécie de fábula moderna que narra a história do corvo Vicente, o qual ensina que a vida só tem valor em plena liberdade, conquistada pelo próprio homem. Este conto, com intertextualidade mostrada (conceito estudado na disciplina Estudos Do Texto E Discurso) – aquela que se reconhece facilmente –, dialoga explicitamente com Gênesis, primeiro livro do velho testamento (Ibidem, 2015).

O corvo Vicente, que é o personagem principal, representa a luta pela liberdade, uma liberdade que gera consequências, entrando em conflito com o divino: “Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara” (TORGA, 1940, P. 64).

Nesse contexto, entra em embate com Deus, figura onipotente que tem o controle dos seres e dos elementos da natureza; descrito como tirânico, implacável e autoritário: “Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço” (TORGA, 1940, p. 61).

Além disso, tem-se Noé, aliado, submisso e temeroso ao Criador, representando as pessoas que aceitam ser dominadas, ao contrário do corvo desafiador: “– Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...” (TORGA, 1940, p. 62).

A Arca, que faz referência à “Arca de Noé”, pode ser considerada uma personagem e é o local onde acontece a maior parte da ação da narrativa; onde estão os escolhidos por Deus para serem salvos do dilúvio. Assim, a arca é humanizada, personificada, como pode-se perceber nos seguintes trechos: “E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia. (...) Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror” (TORGA, 1940, p. 62-63); “A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror” (TORGA, 1940, p. 64).

Ademais, outros espaços nos quais acontece o enredo são citados, como a Terra, o Céu e o mar. A Arca, o Céu e o mar são espaços de subjugação e aprisionamento, representando a tirania do divino a qual Vicente quer burlar, alegando que essa condição de submissão é imposta injustamente aos bichos, sendo culpa das falhas humanas (Ibidem, 2015).

Vale ressaltar que o conto é narrado em terceira pessoa e que o narrador é extra-heterodiegético, tendo liberdade para falar sobre o descontentamento de Vicente, bem como os sentimentos de todas as personagens, relacionando-os aos espaços nos quais estão inseridas (Ibidem, 2015).

A temática do conto Vicente é o desejo de liberdade. Vicente foge da arca, duelando com Deus. Vicente – Vincentius: “o que vence” – não busca somente a sobrevivência, mas luta em prol da liberdade coletiva: de todos os que estão na arca. O desejo por liberdade cresce em Vicente, visto que se encontra em submissão, sentindo-se oprimido e querendo voltar ao seu habitat: a natureza. Por isso, enfrenta a imensidão do mar e as consequências de sua escolha. Torga enfatiza, assim, que a liberdade e a felicidade só se dão pelo conflito com o divino (Ibidem, 2015).

Outrossim, a solidão da personagem e a volta à terra de origem explicam a condição humana e o sentimento humanista. Para Torga, o homem só é feliz se for livre na sua própria terra. Nesse sentido, pode-se relacionar seu conto com sua vida, ao ser impedido de deixar Portugal durante a ditadura salazarista, na qual tem diversas de suas obras apreendidas. O autor também busca liberdade através de seus livros, enfrentando toda a repressão (Ibidem, 2015).

Vicente é exemplo de assumir sua própria identidade e não ser só mais um subjugado ao enfrentar o mundo em prol de seus ideais, salvando a si mesmo e encorajando outros para que também tenham voz. Assim, pode-se relacionar Vicente com Torga e com milhares de pessoas, heróis, que encaram e desmascaram a sociedade, como quem peleja contra a ditadura, denuncia o sistema opressor, em uma luta recorrente, atual, de caráter humanizador, que vai de encontro aos abusos de poder político, religioso e social.

REFERÊNCIAS:

FRAZÃO, Dilva. Miguel Torga Escritor português. eBiografia, 2017. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/miguel_torga/#:~:text=Miguel%20Torga%20(1907%2D1995)%2C%20pseud%C3%B4nimo%20de%20Adolfo%20Correia,12%20de%20agosto%20de%201907>. Acesso em: 01 mai. 2021.

SALDANHA, Angélica Fabiana Linhares. BICHOS E HOMENS: uma análise do espaço em contos de Miguel Torga. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, p. 85, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/8235>. Acesso em: 01 mai. 2021.

TORGA, Miguel. Bichos. Digital Source, 1940. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B6BSMLagoLp8ZGU0ZDM4ZjktYjQ3ZC00MTY5LTk5YTgtYTM1YjA1MmI5NmY1/view>. Acesso em: 24 abr. 2021.

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Textos elaborados na disciplina de Literatura Portuguesa Do Simbolismo Ao Neorrealismo do curso de Licenciatura Em Letras Português-Inglês – UTFPR-PB.

Prof. Dr. Pedro Afonso Barth.