ANÁLISE DO ROMANCE "MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS" COM ENFOQUE NAS PERSONAGENS

ANÁLISE DO ROMANCE "MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS" COM ENFOQUE NAS PERSONAGENS¹

Antonio Carlos Valentini²; Emmily Kruger Quednau².

¹ Trabalho realizado na disciplina de Narrativa Brasileira Do Século XVI ao XIX, Prof. Dr. Wellington Ricardo Fioruci.

² Acadêmicos(as) do 4º período de Licenciatura Em Letras Português-Inglês da UTFPR, Campus Pato Branco – 2020-2.

Memórias de Um Sargento de Milícias (1854) é um romance escrito por Manuel Antônio de Almeida o qual foi organizado e publicado pela primeira vez, anonimamente — no lugar do autor, constava: “Um brasileiro” —, em folhetins — 48 capítulos —, no Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853. A história passa-se no período em que D. João e a corte portuguesa estabeleceram-se, também no Rio de Janeiro, entre 1808 a 1821 (BOHRZ, 2013).

O romance — crônica de costumes — trata da história de Leonardo, retratando sua infância de travessuras, passando por sua adolescência cheia de aventuras, chegando até a fase adulta, na qual o protagonista, antes um malandro, desenvolve o senso de responsabilidade (Ibidem, 2013). Nesse ínterim, aparecem diversas personagens-tipo emblemáticas que caracterizam a sociedade e os costumes da época em questão.

Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar o romance “Memórias de Um Sargento de Milícias” a fim de desvendar os papéis das personagens, as representações e críticas sociais feitas por meio destas, através da metodologia de pesquisa bibliográfica.

As personagens de Memórias de Um Sargento de Milícias são representações simbólicas de tipos sociais do século XIX e das classes socioeconômicas às quais pertencem (Ibidem, 2013). Uma dessas personagens é a “comadre”, que é caracterizada da seguinte forma:

Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do padre; era pontual à ladainha, ao terço, à novena, ao setenário; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem sermão (ALMEIDA, s.d., p. 17).

A personagem é generalizada como “comadre” durante toda a história, sem ter seu nome citado em momento algum (Ibidem, 2013). Além disso, evidencia-se, no trecho, sua profissão desempenhada — seu ofício — de “parteira” e sua religiosidade exacerbada, sendo considerada um exemplo fidedigno de “beata”, muito presente na época.

Leonardo-Pataca é pai do protagonista, o qual tem o mesmo nome: Leonardo. É um meirinho preguiçoso que representa aqueles que não conseguem se controlar perante o amor, sempre envolvido em paixões ardentes:

Leonardo-Pataca não perdia por modo algum aqueles hábitos de ternura com que sempre o conhecemos, e nas atuais circunstâncias, quando ele via às portas da vida um fruto do seu derradeiro amor, crescia-lhe n’alma aquela violenta chama do costume; o pobre homem ardia todo por dentro e por fora, e desfazia-se em carinhos para com sua companheira (ALMEIDA, s.d., p. 58).

Maria da hortaliça, “quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona” (ALMEIDA, s.d., p. 3) é a mãe adúltera do protagonista, mudando o destino deste, quando criança, ao trair Leonardo-Pataca. Ambos os pais evadem-se e Leonardo passa a ser criado, depois do ocorrido, pelo "compadre'' — que, assim como a “comadre”, tem seu nome generalizado dessa forma.

Leonardo é descrito na obra, metaforicamente, como fruto de uma pisadela e um beliscão:

Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão [entre Leonardo-Pataca e Maria da hortaliça]; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito (ALMEIDA, s.d., p. 3).

Leonardo é apresentado como um garoto extremamente ardiloso durante toda sua infância. Dessa forma, acontece um conflito entre a malandragem e a cordialidade do personagem, adquirida em sua vida adulta. O leitor continua, na variabilidade de seu polo positivo e negativo — que será explicado posteriormente —, querendo seu bem, pois o narrador alterna entre suas malandragens e as suas histórias amorosas, tratando-o como um “eterno apaixonado”. Assim, apesar de sua conduta questionável, o seu lado humano é retratado na obra, ou seja, ocorre a “humanização” do personagem, mostrando que ele está sujeito ao sofrimento e despertando o carisma do público leitor (KRYMINICE; SCHWARTZ, 2013).

Isto posto, é possível observar nas personagens uma caracterização a partir de “modelos folclóricos”, relacionando-se com fábulas populares, pois nestas existem os símbolos de inocência, de traição, de trabalho, etc. Desse modo, Major Vidigal é o típico estraga prazeres; Leonardo, o malandro, o anti-herói; Luisinha, a donzela envergonhada; Dona Maria, a burguesa; José Manuel, o alpinista social; o compadre, o trabalhador. Assim sendo, juntamente com a linguagem coloquial, as situações gerais e as personagens fazem a obra assumir solidez nas tradições populares (BOHRZ, 2013).

Além disso, vale destacar que as personagens agem, em geral, sem culpa nem preocupação moral. Comportam-se de maneira reprovável, mas também de maneira honrosa, contrabalanceando o “bem” e o “mal”. A censura moral estaria fora dos indivíduos, sendo representada pela repressão do policial-juiz e punidor severo, Major Vidigal (Ibidem, 2013):

O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si (ALMEIDA, s.d., p. 12).

Nesse contexto, a obra apresenta dois polos: o polo da ordem e o polo da desordem (CÂNDIDO, 1998). Desse modo, há

um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo, depois de terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois polos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo polo convencionalmente positivo (CANDIDO, s.d., p. 37).

As personagens pertencentes ao plano positivo são a comadre, o compadre — exemplo de honestidade —, Major Vidigal, Dona Maria — proprietária de escravos — e o mestre-de-reza — religioso que dá lições de reza aos criados da anterior —; no plano negativo, tem-se José Manuel — caça-dotes, que é ajudado pelo mestre-de-reza —, Vidinha — que desperta em Leonardo o mesmo descontrole perante as paixões, herdando de seu pai —, dentre outras. O protagonista e seus pais ora estão em um plano, ora em outro, sendo os elos entre os dois hemisférios. Ademais, todas as personagens transitam pelos dois planos no decorrer da trama (Ibidem, 1998).

Os defeitos das personagens, decorrentes de uma sátira à tipificação delas, são antecipações de certas atitudes que tomam durante a narrativa, sendo fundamentais para inserí-las no plano da desordem. Major Vidigal, por exemplo, faz de tudo para manter a moral e os bons costumes da sociedade; entretanto, oferece liberdade ao protagonista em troca de favores amorosos de Maria Regalada (Ibidem, 1998).

Ao analisar-se os papéis das personagens femininas, precisa-se considerar alguns aspectos histórico-sociais da época, pois são elaborados tencionando a idealização de um padrão de mulher oitocentista, ou seja, a mulher “bela”, branca e aristocrática: a mesma que formava predominantemente o público leitor. Assim, a obra reflete costumes e convenções sociais e, quando se trata da representação da mulher, esses são idealizados para que sirvam como instrução às leitoras. Quando uma personagem é fadada à infelicidade por ter um comportamento inadequado para a época, logo a leitora assimila e internaliza que uma “má conduta” a levaria ao mesmo fim que essa personagem (SOARES, 2010).

Ademais, um dos diferenciais da obra é evidenciar, ainda que de modo caricato, mulheres de diferentes classes sociais. Tem-se, de um lado, Cigana, Maria da hortaliça, Comadre e Vidinha estampando as classes mais baixas da sociedade; do outro, Luisinha: da alta classe. É interessante ressaltar que, conforme varia a classe social, varia também o caráter dos relacionamentos amorosos das personagens. Quando a classe é mais baixa, estes não são baseados no casamento e em uma união formal. Assim, há uma dicotomia em relação à figura feminina: ora é caracterizada como “mulher santa, digna de amor e guardiã da moral e dos bons costumes”, outrora como “mulher satânica, a que se dirigem os desejos carnais e cuja voluptuosidade a torna ameaçadora e nociva (a prostituta, ou mulher independente que controla sua própria sexualidade)” (DUARTE, 2015, p. 105).

Tomemos como exemplo a relação de Maria da hortaliça e Leonardo-Pataca, os quais não seguem a ordem romântica padrão de apaixonar-se à primeira vista, cortejar, namorar e casar; muito pelo contrário, começam por uma “pisadela”, um “beliscão” e “o resto do dia de namoro cerrado” (Ibid., p. 3). Outro exemplo está na vida amorosa da Cigana, que “tinha pouco mais ou menos sido feita no mesmo molde da saloia [Maria da hortaliça]” (Ibid., p. 12) e também se relaciona com Leonardo-Pataca, mas como “Por toda a parte há sargentos, colegas e capitães de navios” (Ibid., p. 12), ela não consegue permanecer fiel ao relacionamento: “a rapariga tinha-lhe já feito umas poucas, e acabava também por fugir-lhe de casa” (Ibid., p. 12).

Repara-se que Almeida descreve tanto Maria da hortaliça quanto cigana como “saloias”, um adjetivo pejorativo o qual indica que são namoradeiras e infiéis, levando o leitor a esperar que elas cometam traição; tanto que, quando Leonardo-Pataca descobre a traição de Maria, tem-se a seguinte alegação:

Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado (ALMEIDA, s.d., p. 24).

Outro aspecto que chama atenção é a caracterização sensualizada das mulatas e negras, descritas como namoradeiras, provocantes e sedutoras. Na cena do desfile de procissão, por exemplo, Almeida descreve as Baianas do seguinte modo:

Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas, que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos. [...] Todos conhecem o modo por que se vestem as negras na Batia; é um dos modos de trajar mais bonito que temos visto, não aconselhamos porém que ninguém o adote; um país em que todas as mulheres usassem desse traje, especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas, seria uma terra de perdição e de pecados (ALMEIDA, s.d., p. 43).

Quando Almeida diz que as Baianas atraem “os olhares dos devotos”, evidencia-se, mais uma vez, a dicotomia entre o bem e o mal na obra. O leitor é instigado a acreditar que essa atração é culpa das Baianas e do modo que elas se vestem, seduzindo até mesmo os homens de fé. Ele ainda aconselha as mulheres a não se vestirem como as Baianas, pois não são trajes de “boas mulheres”. A figura dessas personagens é satanizada a ponto de afirmar que o mundo afundaria em pecado se todas as mulheres fossem como as Baianas. Semelhantemente, é caracterizada a figura de Vidinha, cuja personalidade está canalizada no seu aspecto físico:

Vidinha era uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce e afinada (ALMEIDA, s.d., p. 75).

Vidinha desperta o amor e desejo dos homens por onde passa, até mesmo dos primos com quem mora. É extrovertida e expressiva, sempre demonstrando seus sentimentos e desejos. Outro aspecto que ressalta a diferença entre ela e as mulheres aristocráticas da época é que toca viola, enquanto as outras tocam piano. Seu papel na história é definido pela sua relação com Leonardo, para quem serve como “Remédio aos males”, título do capítulo XXX, onde aparece pela primeira vez (DUARTE, 2015).

Dessarte, ao analisar-se a influência das personagens femininas na obra, evidencia-se, pois, a valorização e sensualização do corpo da mulher da época, a idealização da “boa mulher”, a distinção entre as classes sociais e o preconceito racial.

O presente trabalho buscou, portanto, apurar as relações entre a grande maioria das personagens presentes na obra, manifestando suas características e seus papéis desempenhados na sociedade. Nessa perspectiva, embora pertença à primeira fase do Romantismo no Brasil (1836-1852), Memórias de Um Sargento de Milícias possui traços que vão muito além do século XIX, tendo uma descrição de detalhes, de forma verossímil, e uma crítica realista que pode se relacionar com a sociedade vigente ao tratar de temáticas como traição, corrupção, interesse e relações de poder.

Através da relação entre os dois planos — positivo e negativo —, é desenvolvida uma noção de causa e consequência das ações das personagens que evidencia os tipos sociais e critica as mazelas da sociedade do século XIX — mazelas estas que persistem até hoje.

Embora dois séculos passaram-se, continuam as marcas da corrupção e da bondade andando lado a lado; do conflito de valores entre as pessoas, que tentam equilibrar seu lado bom e mau.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, M. A. Memórias de Um Sargento de Milícias. Belém: NEAD, s.d.

BOHRZ, J. A APOSIÇÃO E A CARACTERIZAÇÃO DE PERSONAGENS EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS, DE MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA. Alumni - Revista Discente da UNIABEU. Rio de Janeiro. V. 1, no. 2, p. 46-60, ago/dez 2013. Disponível em: <https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/alu/article/view/1249>. Acesso em: 29 abr. 2021.

CANDIDO, A. Dialética da malandragem, in O discurso e a cidade. São Paulo: Duas

Cidades, 1998.

DUARTE, Aline Cristina Moreira. Entre sedas e chitas: a construção das personagens Maria das Hortaliças, Cigana, Maria Regalada e Vidinha da Obra Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Áquila. V. 2, no. 12, p. 100-118, 2015. Disponível em: <https://www.academia.edu/download/55866792/Entre_sedas_e_chitas_-_PUBLICADO.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2021.

KRYMINICE, Felipe Oliveira de Souza; SCHWARTZ, Christian. Culto ao Malandro: uma Análise das “Memórias de um Sargento de Milícias” como Pioneira na Associação Entre o Brasileiro e a Malandragem, Refletida na Atual Produção Cinematográfica Nacional. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul. S. Cruz do Sul - RS, p. 1-12, 30/05 a 01/06/2013. Disponível em: <https://portalintercom.org.br/anais/sul2013/resumos/R35-1336-1.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2021.

SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Nos caminhos da pena de um romancista do século XIX: o Rio de Janeiro de Diva, Lucíola e Senhora. Revista Brasileira de História. São Paulo. V. 30, no. 60, p. 195-209, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882010000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 05 mai. 2021.