“A Trança de Inês”, de ROSA LOBATO DE FARIA

“Felizmente tenho em cada madrugada a tua visita, Inês. Tu, de beleza e doçura imutáveis, tu, que caminhas de pés descalços no lusco-fusco do meu quarto, tu, que acendes a noite com a tua cabeleira de estrelas, tu, que te deitas na minha cama e me abraças e me beijas e me acaricias os cabelos, tu, vestida de sombras, tu, toucada de vento, tu, nimbada de mar.” (p. 169)

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“A Trança de Inês” é um romance da escritora portuguesa – poetisa e romancista, dramaturga, letrista e guionista, e actriz – Rosa Lobato de Faria, publicado em 2001.

“A Trança de Inês” é uma obra complexa que se baseia na História, fazendo, ao mesmo tempo, ficção científica. Através da fabulação em torno da biografia, tantas vezes romanceada, de D. Pedro I e D. Inês de Castro, poderemos desde já considerá-la uma variante ao grande tema literário do Amor Eterno:

Nesta obra, a Autora amplia o alcance do Mito dos Amores de Pedro e Inês, ao fazê-lo galgar o Tempo, recriando-o no Presente, mas fazendo-o reviver no Passado e transpondo-o para o Futuro. Embora respeitando a verosimilhança histórica, Rosa Lobato de Faria permite-se incluir questões de Ecologia na sua transposição do Mito para o Futuro! Consequentemente, a ficção alarga-se aos campos da ficção científica, ao enquadrar o enredo num tempo Futuro, prevendo uma sociedade rigidamente preocupada com a preservação da Natureza mas segundo formulações sociais e económicas extremamente repressivas.

GRANDES TEMAS sabiamente interligados

O "AMOR PARA ALÉM DA MORTE" - "A NATUREZA" - a "OPRESSÃO"

Vemos que esta obra glosa dois grandes temas: o tema do Amor Eterno e o tema da Natureza. Este último, actualizado aos problemas do nosso tempo, sob a preocupação da preservação, da conservação saudável da Natureza.

O tema do Amor Eterno é glosado através do Mito de Pedro e Inês que aqui reveste os diferentes matizes do amor impossível, proibido, de consequências funestas para o par amoroso, com o seu prolongamento nos temas do amor para além da morte, e do ensandecimento amoroso. Dito doutro modo, trata-se de um ‘amor de perdição’, mais uma vez glosando o tópico Éros versus Thánatos.

O tema da preservação da Natureza é o tema premente da nossa época.

Neste aspecto, esta obra insere-se na linha das várias distopias que têm surgido na literatura do século XX como graves avisos às consequências terrivelmente pesadas que o desrespeito pela Natureza tem provocado e continuará a provocar:

“Brave New World”, de Aldous Huxley, publicado em 1932,

“1984”, de George Orwell, publicado em 1949,

“Farenheit 451”, de Ray Bradbury, publicado em 1953...

Ambos os temas mencionados pressupõem um cenário de Opressão, quer por razões de Estado – tanto no Passado como no Futuro; quer por razões de sobrevivência do status familiar privilegiado, no Presente. Temos assim dois agentes da Opressão que actuam em simultâneo – no plano social, o agente próximo da Opressão é a figura paterna, emocionalmente distante, arrogante, intransigente e cruel; no plano amplo, as razões de Estado justificam todo o tipo de crueldade.

Esta encenação reporta-nos às obras já mencionadas, que tanto marcaram a Literatura do século XX, mas com a variante da combinação de três tempos, aos quais correspondem três mundo distintos. Para esses mundos, a Autora recria, ou prevê, mundos tirânicos. No mundo medieval, a tirania traduz a pressão da Nobreza sobre o Rei de Portugal, receando a influência de Castela sobre o Infante herdeiro do trono. No século XX, assistimos à tirania do prestígio social através da preocupação dominante de preservar a fortuna e tradição familiares, sobre o pano de fundo da Ditadura, em que a grande máxima de sobrevivência se exprimia pelo conformismo do conselho generalizado através da frase feita – “Aprende a viver!” (p. 118). No fim do século XXI e já no século XXII, a tirania assume mais uma vez a definição de Estado totalitário. “A vida tornou-se simples, próxima da natureza: estimula-se o artesanato, encoraja-se o despojamento” (p. 23). Para o efeito, cria-se um mundo vigiado, um mundo de regras estritas. Em nome da conservação do Planeta cria-se um mundo despótico, altamente controlado, com a criação de classes sociais impedidas de encasalar entre si sob pena de morte.

Neste mundo do Futuro, há que evitar o sobre-povoamento e o esgotamento dos recursos do Planeta. Assim, Rosa Lobato de Faria cria uma sociedade e uma economia coerentes com os objectivos da Conservação, onde uma das preocupações máximas diz respeito à preservação das árvores e à poupança de papel. Mas sob os modelos abomináveis dos diferentes totalitarismos que assombraram o século XX, num despotismo iluminado fruto da descrença sobre a capacidade do ser humano de se auto-disciplinar em matéria de consumismo e destruição.

Há ainda passagens desta obra que nos reportam a “Canto Nómada”, de Bruce Chatwin. Na página 106, Pedro Rey pensa: “Que lindo é o Planeta (...) Que pena termos de passar por tanto sofrimento para salvá-lo.” Disse Bruce Chatwin na obra citada (pág 164): “O mundo, se algum futuro tem, há-de ser um futuro ascético.” Ou “A ‘terra do sonho’ é mais importante do que o petróleo.” (pág 339).

Esta obra insere-se na estética do romance pós-moderno, pela indefinição do Tempo, que justifica uma indefinição do discurso narrativo.

O Tempo da Narrativa é um Tempo indefinido. O Tempo é uma ilusão. O Passado não existe, é sempre Presente, e assim como o Passado influenciou o Presente, este irá determinar o Futuro.

A narrativa desenvolve-se num diferido de três tempos distintos: um tempo passado na Idade Média tardia; um tempo passado no século XX, e um tempo na passagem do século XXI para o século XXII. Saltamos de uma época para a outra conforme as crises de loucura do protagonista. Estes saltos no Tempo são ancorados na lógica dos acontecimentos: uma perturbação numa dada época faz Pedro encontrar-se num episódio com algum paralelismo emocional, no Passado ou no Futuro.

No entanto, não há diferenças fundamentais na vida pessoal de Pedro, pois ele será sempre dominado pelo Pai, e o seu amor será sempre contrariado pelas razões de Estado (no Passado ou no Futuro) ou pelas razões da empresa da família (no Presente).

A conexão entre os três tempos é expressa pelos apelidos de Pedro. No século XX, no Tempo Presente, ele é Pedro Santa Clara. Sendo Santa Clara a designação da irmandade que na Idade Média acolhia Inês. Na sua vida situada na transição do século XXI para XXII, ele é Pedro Rey, nome que o liga ao seu passado medieval.

Qualquer coisa nos faz pensar ao de leve, na obra de Laura Esquível, “A Lei do Amor”, uma obra cuja acção também decorre em tempos diferidos. Mas sem mais nenhum ponto de contacto entre ambas as obras.

“A Trança de Inês” tem matizes de tragédia grega. Não esqueçamos que Rosa Lobato de Faria foi também dramaturga e guionista. Este romance é uma peça teatral que se desenrola em três actos. Só que estão todos misturados... Toda a obra se desenrola num ambiente de tragédia. Não faltando os momentos de mau presságio – quer quando Inês se esquece no carro, no “lugar do morto”, da rosa bacará, quer quando o Infante D. Pedro, durante a caçada, se perde no densíssimo nevoeiro; sendo o urso uma prefiguração do Rei. O Rei não atenta directamente contra a vida do Infante, tal como o urso não o ataca... Mas indirectamente, afectá-lo-á para sempre (p. 141).

Nas suas três vidas, o clima trágico é sugerido pela constante ameaça que pesa sobre Pedro. Por fim, não falta o símbolo maior, a rosa bacará. A rosa do Amor, vermelha como o sangue, prenúncio de morte.

Do mesmo modo, não faltam os elementos que sugerem o papel do Coro, na tragédia grega. Na sua infância do século XX – o primeiro acto –, Pedro tem o apoio da criada Inácia, com a sua voz reconfortante. Ela estabelece o contraste entre a autenticidade do amor desinteressado, pois representa o verdadeiro, o real sentido da Tradição. Não a tradição aristocrática e egoísta da alta sociedade mercantilista e frívola que os Pais representam, mas sim a Tradição genuína, a tradição ancestral que o Povo preserva. Ela possui o mundo da inocência. Tal como as criadas de Almeida Garrett, Inácia aconchega o seu Menino, acarinha-o, conta-lhe histórias...

Finalmente, Inácia conhece as técnicas tradicionais da cozinha, da confecção das compotas nomeadamente a marmelada. Sente-se aqui algo que novamente nos aproxima de Laura Esquível em “Como Água Para Chocolate”! No hospício, no seu mundo de loucura, Pedro conta com a Tertúlia, composta por artistas mal sucedidos e desconsiderados. Mas encontra com quem dialogar ao entender-se com o Maestro, um Corifeu actual, ou uma caricatura de corifeu... No mundo do Futuro – o terceiro acto –, Pedro é apoiado pelo casal amigo, Joana e Afonso. Ao lado de Pedro, há pois sempre diferentes figuras adjuvantes que desempenham o papel do Coro, nos três factos, ou três momentos, desta tragédia.

Há ainda os instrumentos da desgraça: os esbirros medievais, que encontram equivalência nos assassinos de Inês no século XX, ou nos enfermeiros mal-encarados, no hospício.

Como definição última de tragédia, há um pesado sentido de Destino, traduzido nesta eterna oposição entre o Filho e o Pai. Pedro não seria o que é sem o Pai. Há algo de destino crístico nestas duas personagens principais:

O Pai todo poderoso que imola o Filho, tanto aos seus próprios interesses pessoais, no século XX, como aos seus próprios interesses que se fundem nos interesses do colectivo quer no Passado quer no Futuro. O Pai é sempre o narciso indiferente, a quem só interessa o bom nome da instituição patriarcal, e tradicional, que é a sua família, e a sua imagem de supremacia, o seu sucesso como rei, como empresário, ou como acreditado juiz.

Finalmente, Pedro Rey suicida-se com cianeto. Tal como os malogrados heróis de André Malraux em “La Condition Humaine”.

Pedro e Inês. O mundo, com os seus falsos valores, é um manicómio. Do mesmo modo que Pedro não seria o que é sem o Pai, igualmente não seria o que é sem Inês.

A Personagem principal é Pedro. Mas quem é este Pedro?

No tempo Presente, ele é Pedro Santa Clara. Estudou Belas Artes, contra a vontade do Pai, um rico magnate, que teria preferido que o Filho tivesse tirado “um curso sério” (p.12). Para compensar o pai desse desgosto, Pedro vai trabalhar na empresa paterna. Na sua loucura, o pintor Pedro Santa Clara sabe que “Eles, os saudáveis, que se comem uns aos outros, que se matam uns aos outros, que se destroem uns aos outros, não podem ter acesso ao nosso mundo particular” (p. 64).

No entanto, na vida do século XX, não chegamos a saber qual a natureza dos negócios do Pai. Apenas sabemos que este, na maior indiferença, sacrifica a felicidade do Filho às necessidades da Empresa, sem que daí lhe advenha a menor vantagem, uma vez que perde o Filho... Este Pai opõe-se intransigentemente ao Amor do Filho pela secretária, a bela Inês, a “menina das relações públicas” com a sua maravilhosa trança loira... No entanto, vendo-se impotente para travar esses amores, manda executar Inês.

Nos três tempos desta narrativa, a morte da Amada desencadeia a loucura de Pedro. Pedro Santa Clara, o Pedro do século XX, é igualmente o Infante D. Pedro e depois rei D. Pedro I, do século XIV, como é Pedro Rey, no século XXI.

Na sua loucura do Presente, ele é internado num hospício para doentes mentais. Nos momentos de maior descontrolo emocional, dão-lhe injecções, muito provavelmente alguma droga de tipo psicodélico, e o “produto” desperta-lhe estas transposições no Tempo, quer transportando-o ao Passado na Idade Média, em que ele é o infante e rei D. Pedro, quer transportando-o ao Futuro, em que ele é Pedro Rey, cidadão de um Estado em constante vigilância pela conservação da Natureza e controlo da natalidade, pelo que as regras e as leis são rigorosíssimas. Nas suas três vidas, a intransigência do Pai é visceral:

Pedro não seria o que é sem a morte da Amada. Inês, a bela, a amada eterna é, nas suas três vidas, a amante apaixonada que salta barreiras e não teme obstáculos para consumar o seu amor. Nas suas vidas no Passado e no Presente, ela ignora qual vai ser o seu fim. Mas na sua vida futura, ela já não se deixa surpreender, ela assume inteiramente o seu destino, procurando e provocando o seu próprio fim.

Pedro, nos seus três tempos, é sempre o amante apaixonado e obsessivo, que enlouquece em consequência do assassinato da Amada.

Este par de Pedro e Inês, na versão de Rosa Lobato de Faria, actualiza entre nós a antiquíssima lenda de Leyla e Majnun. Leyla, a Noite, e Majnun, o Louco. Nesta versão portuguesa do mito pré-islâmico que inspirou Romeu e Julieta, de Shakespeare, Inês é a amada a quem se torna impossível aspirar, e Pedro é o Louco que a transporta em tresloucada procissão nocturna de Coimbra para Alcobaça, ou que com ela morta percorre as estradas da Península e com ela entra em França, onde é encontrado pela Polícia e repatriado.

O angustiado Pedro mantém um constante e amargurado monólogo interior e assim conhecemos as suas deambulações pelas suas três vidas. Tal como Majnun que escrevia os seus poemas à Amada nas paredes das grutas, nas rochas do deserto...

Quanto à sua Arte, Pedro poderia ter sido um pintor de sucesso... Na casa-de-saúde onde está internado, o segundo psiquiatra compreende que a Pintura o acalma. Por iniciativa deste médico, a casa-de-saúde promove-lhe uma exposição, e os seus quadros agradam ao público, e vendem-se. Na página 65 ele descreve algumas das suas obras, sendo que num particular, parece-nos estar a admirar uma obra de Chagall... Em consequência do seu sucesso, prometem-lhe mundos e fundos... Só que à boa maneira portuguesa, nunca acontecerá nada... (p.66).

Vemos pois, que Pedro e as Personagens que o assombram são personagens bem definidas.

Outra personagem é a Mãe. Na sua vida do século XX, difere um pouco da personalidade que teria tido enquanto rainha, pois basta-lhe uma vida frívola enquanto senhora de sociedade.

A liberdade da pontuação é um pormenor que continua a surpreender os leitores actuais. Em “A Trança de Inês”, a autora cria um sistema de pontuação que poderemos considerar híbrido. Se por um lado, não respeita rigorosamente as regras de uma escrita clássica, tradicional, por outro lado cria um sistema coerente, em que a pontuação está intimamente ligada às perturbações mentais e sequência do monólogo interior do protagonista.

Em “A Trança de Inês”, estamos perante uma obra em que as preocupações ecológicas e sociais são por demais evidentes. Pensamos em geral que as conquistas sociais e económicas alcançadas no século XX serão definitivas... Mas há sempre quem nos alerte para o seu carácter precário. O mundo nos finais do século XXI e já no século XXII será um mundo onde irão imperar “as leis inexoráveis” de protecção ao Planeta – “A vida tornou-se simples, próxima da natureza: estimula-se o artesanato, encoraja-se o despojamento” (p.23). Fazendo parte dos métodos de controlo do sobre-povoamento, impera o controlo da natalidade, eliminando o perigo da explosão demográfica (p. 45/46). Para o efeito, instituem-se apenas duas classes sociais, estanques: a elite (os xis), com direito à reprodução, e o povo (os ípsilon). Os indivíduos ípsilon são esterilizados, e há protecção especial à homossexualidade (p.47). Há grande secundarização da Mulher, que deve ficar em casa pois a sua única missão diz respeito à educação dos filhos. Para quem se sente frustrada, o suicídio é a solução final (p. 47).

A pretexto da conservação da Vida, impera o medo provocado pelo rigor da vigilância, pois neste mundo do Futuro impera a pena de morte (p.47). Assistimos, com efeito, a cenários que a Humanidade já viveu, tanto sob a bandeira da Direita como sob a bandeira da Esquerda, pois neste âmbito os extremos são semelhantes na formulação, na prática, e nas consequências: “O sistema é bom, o indivíduo é que é descartável” (p 101/102). Há ainda a notar que este enredo se apoia na convicção de que são os “injustiçados” que fazem as revoluções (p. 185).

É ainda bem detalhado o Sistema Educativo desse mundo do Futuro, em 2090 (p.67; p. 69), bem como uma descrição da classe política (p. 70/71).

Finalmente, o acumular de regras verificável nos regimes repressivos gera um mundo hipócrita (p. 69).

Num âmbito mais particular, há a crítica ao mau entendimento da doença mental, através da caracterização do ambiente do hospício, da indiferença do primeiro médico e dos enfermeiros. Chegará, porém, um segundo médico mais compreensivo, hipnotizador, um médico exemplar que demonstrará que a Arte desempenha um papel importante na vida do seu paciente!

O SENTIDO DE HUMOR E OS NEOLOGISMOS

É o caso da sátira aos procedimentos na primeira entrevista no hospital psiquiátrico, bem como a ridicularização das operações de estética para rejuvenescimento e seus contratempos...

Por outro lado, a autora cria neologismos, conforme lhe faz falta! Tomámos nota de dois, “calabumbatroque”, na página 161 da edição que lemos, e “cagalizada”, um calão chic que a autora introduz numa fala da frívola mãe de Pedro Santa Clara (na página 163).

Há ainda, sempre que o monólogo interior o justifica, o recurso à linguagem vernácula!

O MONÓLOGO INTERIOR E O LIRISMO

A narrativa funde-se no monólogo interior, e este absorve todos os diálogos. Daí que a Autora crie um sistema de pontuação adequado ao ritmo psicológico de Pedro, a Personagem Principal.

Já dissemos que todo o romance é a narrativa íntima do monólogo interior de Pedro Santa Clara. Todo o romance é um monólogo amargo e desesperado. Pedro Santa Clara fala consigo próprio, e nós assistimos ao desenrolar do seu profundo drama. O discurso narrativo segue, assim, num ritmo tenso, febril, de grande intensidade dramática.

“A Trança de Inês” é um romance e, como tal, é escrito em Prosa. Mas esta Prosa sai da pena de uma Poetisa, e quando no âmago da sua solidão Pedro se dirige à Amada, a linguagem assume uma dimensão lírica notável, pela adjectivação inesperada, e pela emotividade apaixonada! “A Trança de Inês” é uma obra extremamente lírica!

Página 9: O enfermeiro insiste rudemente para que Pedro responda ao médico. Mas Pedro mergulha mais fundo dentro de si próprio:

“Mas eu não quero responder, não me quero tratar, só quero os teus olhos atlânticos, verdes, transparentes, senhores de todos os segredos, de todos os feitiços, de todas as paixões, tira-me daqui, leva-me, embala-me, adormece-me, deixa-me pousar a cabeça no teu colo de garça, nas tuas coxas perfumadas, começo a gritar Inês, Inês, Inês, Inês, espetam-me uma injecção ao acaso no corpo que se debate e suavemente surges do nevoeiro com a tua trança luminosa, os teus seios de nácar, as tuas ancas de deusa e ao som de cantos gregorianos que enfeitam a penumbra, deixas que me apoie na seda dos teus ombros para atravessar, mísero, estropiado e chorando, as ogivas da minha solidão”.

Página 112:

“Já vem de longe a minha falta de sono. Do tempo das fogueiras, dos arraiais, do povo, dos veados a assar para que cada um tivesse o seu quinhão. A alegria ruidosa das noites a camuflar a amargura dos dias, a dor insuportável dos crepúsculos, a mágoa sem nome das madrugadas, os gritos roucos do corpo, a saudade imorredoura da alma. (...)

Estou sempre a repetir-me, a dizer que tudo começou muito antes, muito antes, muito antes, numa prega do tempo, onde uma flor carnívora do inferno deixou cair uma semente de tragédia que trazia o teu nome, que trazia o meu nome e que cresceu dissimuladamente, calcada sob os pés das gerações.”

Há que mencionar uma outra aproximação a Almeida Garrett! Na página 205, à maneira de um conto de fadas, Rosa Lobato de Faria glosa o poema “Barca Bela”. É também reproduzido um conto de sabor medieval, que nos faz evocar Gonçalo de Berceo.

No seu conjunto, esta obra apresenta-nos um retrato da solidão, um mundo desabitado, sem estrelas (p. 90). Pois para Pedro, a rosa que simboliza o Amor, a rosa bacará, ficará para sempre um símbolo de morte (p. 96).

ROMANCE HISTÓRICO OU FICÇÃO CIENTÍFICA?

A personagem de Pedro, na Idade Média, é histórica. A Autora recria o drama interior do Infante, e depois Rei. Recria o seu desespero, a sua solidão, a sua vingança...

Para além de seguir os relatos cronísticos, Rosa Lobato de Faria está interessada em interpretar o desespero que o Infante teria vivido, e cria o seu monólogo interior com vivo realismo!

Por outro lado, quando se foca no fim do século XXI e início do século XXII, Rosa Lobato de Faria faz ficção científica! Claramente, cria uma sociedade onde, a reboque da preocupação ecológica, se instala uma tirania apoiada em teorias económicas inspirando-se, como já dissemos, em modelos políticos totalitários já experimentados na História...

O drama de Pedro e Inês tem sido glosado desde que Fernão Lopes o relatou na “Crónica de D. Pedro I”. Mas apenas referirei que os seus cultores mais antigos foram Garcia de Resende, no Cancioneiro Geral, de 1516; António Ferreira na tragédia “Castro” de 1587, e Luís de Camões, nos Lusíadas. Em “A Trança de Inês”, a paisagem idílica de Camões, no Canto III (estrofes 118-137), encontra o seu equivalente na quinta ecológica Campo Verde, no século XXI/XXII.

Este romance, “A Trança de Inês”, de Rosa Lobato de Faria, foi adaptado ao cinema pelo realizador António Ferreira, em 2018: “Pedro e Inês”. No entanto, o enredo do filme não coincide com o enredo do romance.

O filme estreou em Portugal em 2018. É uma coprodução com França e Brasil.

UMA OBRA DA ACTUALIDADE

Ao reflectir sobre o que poderá vir a ser o mundo de amanhã, esta obra reveste-se de interesse pedagógico: deveria ser contemplada nos programas dos anos terminus do Ensino Secundário.

Mas não só por esse motivo. E sim porque “A Trança de Inês” é uma obra que funde Historicidade com Ficção Científica, de forma tão realista quanto poética. E ainda neste pormenor, “A Trança de Inês” é uma obra da pós-modernidade pela indefinição dos “géneros”. Com “A Trança de Inês” Rosa Lobato de Faria confirma-se como grande Escritora. Não se compreende porque é que esta Autora continua um tanto ignorada...

Diz Pedro, este Pedro intemporal:

“Conforta-me pensar que a vida não começa nem acaba aqui. Um dia regressaremos ao lugar de onde viemos, um lugar de repouso e de paz, um lugar livre de mágoas.

Mas quantos lugares de dor teremos de atravessar para alcançá-lo? Quanta tristeza, quanto sofrimento, quanta crueldade no destino do Homem! E se o mundo é repleto de maravilhas é só para não perdermos de vista a morada original, que nos aguarda ao fim dos nossos doze trabalhos de Hércules, e a que os poetas e os místicos chamam paraíso e eu chamo, simplesmente, amor” (p.103).

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Rosa Lobato de Faria

1932-2010

Rosa Lobato de Faria nasceu em Lisboa, em 1932, no seio de uma família originária da Índia Portuguesa, com raízes aristocratas.

Estreou-se como atriz por volta dos 40 anos, e em 1982, iniciou o seu percurso regular na televisão, quando tomou parte no elenco de “Vila Faia”. Em 1992, obteve um primeiro lugar no Festival RTP da Canção com “Amor de Água Fresca”.

Publicou o seu primeiro romance, “O Pranto de Lúcifer” em 1995.

Seguiram-se os títulos

“Os Pássaros de Seda” em 1996,

“Os Três Casamentos de Camilla S”, em 1997,

“Romance de Cordélia”, em 1998,

“O Prenúncio das Águas”, em 1999, que viria a obter o Prémio Máxima de Literatura em 2000.

A obra “A Trança de Inês” surge em 2001. Seguiram-se “O Sétimo Véu” em 2003, “Os Linhos da Avó” em 2004 e “A Flor do Sal” em 2005.

Participou na iniciativa de coautoria de “Os Novos Mistérios da Estrada de Sintra” e “Código d' Avintes”.

Foi também autora de obras dedicadas às crianças, como “A Erva Milagrosa”, “As Quatro Portas do Céu” e “Histórias de Muitas Cores”.

Rosa Lobato de Faria publicou dois livros de Poesia: em 1992, “Memórias do corpo: poemas” e “Poemas escolhidos e dispersos”, em 1997.

Notas biográficas retiradas de

https://pt.wikipedia.org/wiki/Rosa_Lobato_de_Faria

A foto da escritora foi retirada de:

https://www.wook.pt/autor/rosa-lobato-de-faria/22967

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Os Leitores poderão apreciar entrevistas a Rosa Lobato de Faria, nos seguintes LINKS:

A entrevista num programa de Herman José

https://www.youtube.com/watch?v=J5gS-_ngE-o

E a homenagem da Porto Editora:

https://www.youtube.com/watch?v=WeMX7uCiNNA

NOTAS:

Edições citadas:

= A Trança de Inês: Rosa Lobato de Faria, Leya, 2001, 2ª edição, Lx, 2010

ISBN: 978-989-660-034-1

= Canto Nómada, Bruce Chatwin, Quetzal Editores, Colecção Terra Incógnita, 1ª Edição, 2019

Obras consultadas:

O Mito de Inês de Castro e o Romance Histórico Pós-Moderno

https://europe-nations.estudosculturais.com/pdf/0020.pdf

Inês de Castro: Da História à Literatura

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Myriam Jubilot de Carvalho

2021-08-10

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Estudo publicado na revista online "VuJonga Magazine" Nº 43

No dia 2 de Setembro de 2021

Publicação relativa ao mês de agosto de 2021:

https://www.youtube.com/watch?v=DCaOkIY9XGE

PÁGINAS de 11 até 26.

Myriam

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 09/09/2021
Reeditado em 30/03/2023
Código do texto: T7338493
Classificação de conteúdo: seguro
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