Macunaíma, direção de Joaquim de Andrade


Em 1928, Mário de Andrade, alinhado com a proposta antropofágica de Oswald de Andrade, publica Macunaíma: herói sem nenhum caráter. De tão inovador no tema e no estilo, o autor encontrou na música e nos poetas antigos o seu gênero: rapsódia, composição livre com justaposições de melodias, aproximando-se do improviso. O livro narra as aventuras do anti-herói ou pícaro Macunaíma no seu ambiente primitivo e na cidade. Com um enredo recheado de mitos e lendas indígenas, o protagonista incorpora um misto paradoxal de coragem e covardia em busca da sua muiraquitã, pedra-amuleto deixada a ele por sua amada Ci, mãe do mato. Com uma escrita bem ao gosto modernista, com técnicas vanguardistas, Mário de Andrade tornou Macunaíma um dos personagens mais malandramente amados da Literatura.
 
Sessenta anos depois, mais precisamente em 1969, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, afilhado do modernista Manuel Bandeira, adapta para o Cinema a obra de Mário de Andrade. E toda adaptação é um processo de tradução, já que, ao modificar o suporte artístico, no caso do papel para a película, o adaptador deve reescrever o original, adequando-o ao novo formato. E, como afirma Eliana Bueno Ribeiro, tradutora de fábulas do francês Charles Perrault para o português, “toda tradução é uma traição”. Muito do Macunaíma livro teve de ser modificado no Macunaíma filme, sem perder a sua essência alegórica, principalmente na representação do malandro brasileiro.
 
Macunaíma foi filmado durante o Regime Militar por um diretor que protestou contra o Governo de Castelo Branco em 1964, sendo inclusive preso por isso. Vigorava o Ato Institucional número cinco (AI-5) que, entre outras medidas, regulava a censura prévia de manifestações artísticas. Isso fez com o filme sofresse cortes de cenas, muitas das quais foram “negociadas” graças a influências que a família de Joaquim de Andrade tinha com os responsáveis pela censura. Porém, o filme não deixou de trazer críticas ao sistema político vigente através de cenas alegóricas repletas de humor e ironias. Na verdade, todo o filme é uma “carnavalização” de costumes brasileiros, com destaque para mazelas, tradições, contradições e tabus.
 
A década de 1960 trouxe transformações comportamentais, sobretudo para o jovem, através da Contracultura, em prol de um estilo de vida de contestação, questionando valores e tradições, com influências do movimento hippie e da Beat Generation norte-americana. Aqui no Brasil, esses ecos chegaram e, inclusive, foram bases para comunidades/sociedades alternativas, cantadas por Raul Seixas, e vividas pelos Novos baianos, por exemplo. A Tropicália de Hélio Oiticica, nas artes plásticas, bebeu nessa fonte da Contracultura e reverberou no Tropicalismo musical de Caetano Veloso e Gilberto Gil a partir do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record em 1967. No campo cinematográfico, o Cinema Novo de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos mostrava, “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, as disparidades sociais do Brasil com produções mais engajadas socialmente, uma reação às populares chanchadas, apelativas e despolitizadas.
 
Joaquim de Andrade, para a composição de Macunaíma, absorveu tudo isso, seguindo, na prática, a Antropofagia oswaldiana. Enxergamos no filme a influência do Tropicalismo na experimentação estética, nos temas abordados e, inclusive, na diversidade musical da trilha sonora que traz ritmos variados como o samba-canção (“Sob uma cascata”, na voz de Francisco Alves); a jovem guarda (“É papo firme”, na voz de Roberto Carlos), a marcha-sinfônica (“Cecy e Pery”, de Príncipe Pretinho); o baião (“Respeita Januário”, na voz de Luiz Gonzaga); o hino (“Desfile aos heróis do Brasil”, de Villa Lobos), por exemplo. A música é bem representativa no filme, estando presente na atuação do protagonista. Macunaíma cantarola cantigas populares, muitas das quais fizeram parte do repertório de Mário de Andrade, como a embolada “Tapera Tapejara”, entoada pelo herói ao retornar a sua casa sobre o rio Araguaia, no repique da violinha. Quanto ao contexto cinematográfico, o filme segue um estilo “pós-chanchada cinemanovista”, herdando o apelo cômico-erótico das chanchadas, ao mesmo tempo que rompe com a tradição do cinema burguês, como os produzidos pela Companhia Vera Cruz, aproximando-se do Cinema Novo nas reflexões críticas propostas.
 
Quanto ao enredo, o cerne da proposta de Mário de Andrade é mantida, obviamente com adaptações. Uma delas é a aproximação dos mitos, lendas às personificações, sobretudo urbanas, como Venceslau Pietro Pietra, Gigante Piamã, comedor de gente; a Caapora Ceiuci, esposa do Gigante; as filhas de Vei, a Sol – que no filme são moças numa embarcação que “abusam” do herói, querendo que ele seja o objeto sexual delas – mas sobretudo Ci, mãe do mato, que no filme é uma guerrilheira. A guerreira amazona do livro torna-se uma guerrilheira urbana que luta contra o Governo, simbolizando movimentos antigovernistas como a Ação Libertadora Nacional. Aí está bem diretamente uma referência ao momento político pelo qual o Brasil passava. Ci também faz de Macunaíma seu “brinquedinho” sexual. O sexo é no filme, quanto no livro, uma “brincadeira”. Macunaíma, desde pequeno, é desejado sexualmente, quando Sofará o faz fumar um cigarro para que se torne um príncipe. Uma moça que trabalha na casa de Venceslau “brinca” com ele, além da filha do Gigante que também queria o herói. A tara de Macunaíma é intensa, se envolvendo com todas as mulheres que seu irmão Jinguê namora: Sofará, Iriqui e Suzi.
 
Macunaíma, filho mais novo, nasce assinalado pela “má sina” nas palavras da mãe, justificando o seu nome: “maku”, significa mau; e “ima”, grande. A imprecação materna “pega” no herói que passa por muitos infortúnios, culminando em seu fim trágico.  Aliás, a imposição de figuras femininas no filme é significativa: a mãe não possui marido, é a matriarca; é Ci que sustenta Macunaíma; é a Uiara que devora o herói. Ainda quanto à mãe, ela castiga o filho por ser malvado e por não dividir o alimento com os irmãos, após a enchente. Nessa sequência, ele se perde e encontra o Curupira que ardilosamente tenta comê-lo. Macunaíma ingenuamente quase cai na armadilha do Protetor da Floresta que, aqui na obra, é um pouco diferente que no folclore. O herói precisa acionar sua esperteza para fugir. Agora, uma reflexão: mas o filho não é assim por que a mãe já o “amaldiçoara” desde pequeno? A morte da matriarca ocorre por uma superstição dita por Macunaíma: “sonhar que caiu o dente é morte de parente”, ou seja, de certa forma, o filho é responsável pela morte da mãe.
 
Jinguê, irmão do meio, e Maanape, mais velho, cuidam do caçula após a morte da mãe e vão com ele para a cidade, sendo constantemente enganados por Macunaíma. No caminho, ocorre o “milagre” do branqueamento do herói ao se banhar na água de um gêiser. Nesse momento, há uma alegórica referência a nossa formação étnica, pois Macunaíma é um indígena preto que fica branco. Ele não só fica branco como também cresce, porém mantém comportamentos tipicamente infantis e é facilmente engado, embora seja também um enganador. Discursos racistas estão presentes no filme, principalmente direcionados a Jinguê, no filme, o único preto. A chegada dos irmãos à cidade, em um caminhão de pau-de-arara, remete ao transporte de retirantes, sobretudo, nordestinos em busca de uma vida melhor na capital. Quanto ao destino de Iriqui fica a sugestão de que se tornará prostituta. Num lugar bem diferente do seu habitat, Macunaíma chega à conclusão de que, na cidade, “os homens é que são máquinas, e as máquinas é que são homens”. É uma alegoria da colonização às avessas, o nativo que vai para a urbanidade e entra em contato com o novo mundo.
 
É na cidade que encontra a guerrilheira Ci com quem tem de lutar para “brincar” primeiro, deixando posteriormente ser dominado por ela. A morte de Ci e do filho é sentida pelo herói. A pedra muiraquitã da sua amada foi parar nas mãos de Venceslau, o Gigante Piamã, comedor de gente. Para recuperá-la, Macunaíma deve enfrentar este seu inimigo. Na primeira tentativa, o herói é flechado. Na segunda, se veste de mulher para conseguir a muiraquitã, mas o Gigante quis “brincar” com ele, mesmo descobrindo que se tratava de um homem – não tinha preconceito. Para se vingar, Macunaíma vai a uma “macumba”, surra a “tia preta” para que o Gigante sentisse as dores. Só conseguirá reaver a muiraquitã quase no fim do filme, ao ser convidado para uma feijoada em celebração do casamento da filha de Venceslau. Aqui merece destaque o canibalismo, visto de forma leve e humorística. Numa piscina, pessoas são lançadas para “engrossar” o caldo da feijoada. O Gigante tenta jogar Macunaíma dentro dela, empurrando-o num balanço, mas eis que o nosso pícaro consegue heroicamente enganar o Gigante e derrubá-lo em sua própria feijoada.
 
Das presepadas de Macunaíma, duas merecem destaque: a compra do pato que defecava dinheiro e do “tio” comendo os “ovinhos”. Macunaíma é enganado por um turco, literalmente “pagando o pato” que, na expressão popular, é pagar por algo e não ter nenhum benefício. Já o “tio” estava sentado comendo alguma coisa e disse para Macunaíma, “sobrinho”, que se tratava de seus “ovinhos” (testículos). Macunaíma ingenuamente foi quebrar os seus para comer também e fica convalescente, sendo “curado pelas mãos” de Suzi, namorada de Jinguê. Essas cenas intertextualizam as histórias do personagem ibérico Pedro Malasartes, o qual, como Macunaíma, é um referencial de malandragem, ora se dando bem, ora se dando mal.
 
O destino do herói não é feliz. Ao retornar para sua casa, num lugar chamado Pai da Tocandeira, encontra só as ruínas da maloca. Macunaíma de posse de sua muiraquitã leva muitas prendas da cidade para a floresta, numa nítida referência ao consumismo. Uma mulher de nome Princesa o acompanha. Porém, por ser muito dorminhoco e viver com saudades de Ci, a Princesa o abandona para ficar com Jinguê. Os manos desaparecem junto com a Princesa, deixando-o sozinho. Ele então conta a sua história para um papagaio. Ao ver uma moça banhando-se num lago, lança-se para “brincar” com ela. Não sabia ele que era a Uiara, comedora de gente. A morte de Macunaíma é sugerida com o sangue que sobe na água manchando sua camisa verde trazida da cidade. Ironicamente é tocado o hino “Desfile aos heróis do Brasil”, de Villa Lobos.
 
Outra ironia é a pedra muiraquitã, amuleto da sorte, que não foi venturoso para Macunaíma que morre solitário, diferentemente do livro, no qual se torna uma estrela. O herói de nossa gente é derrotado, devorado pelo próprio Brasil. Diferentemente do livro, ele não possui poderes mágicos, pelo contrário, está sujeito a eles. E sua sina, como foi anunciada pela mãe, foi de má sorte. Contrariamente a Antropofagia de Oswald de Andrade, em que o brasileiro devora o estrangeiro, aqui, o brasileiro é devorado pelo Brasil pelas relações sociais e econômicas. Macunaíma em suas ações e estilo traz a imagem, não só do malandro – já representado na literatura do século XIX em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida – mas também do hippie numa relação contrária a Venceslau, capitalista, acumulador, pervertido, canibal.
 
Joaquim de Andrade, por fim, conseguiu criar um filme que agradou tanto a elite, por se tratar de uma adaptação de um clássico literário, quanto o povo pela alegoria cômica do “jeitinho” brasileiro. Coerente com as manifestações culturais, sociais e políticas de seu tempo, Macunaíma: herói de nossa gente deixa sua marca indelével na cinematografia nacional.

 

ANDRADE, Joaquim Pedro de. (Direção). Macunaíma. filme, 110min., 1969. Assistir ao filme.