Úrsula, de Maria Firmina dos Reis


Didaticamente, em 1843, Teixeira e Sousa publica O filho do pescador, considerada a primeira prosa romântica nacional; porém, para alguns críticos, seria Joaquim Manuel de Macedo o introdutor do romance romântico em 1844 com A Moreninha. A partir de então,  foram surgindo escritores e romances significativos para o Romantismo brasileiro, entre os quais está o nome de José de Alencar, autor de Senhora e Iracema. A crítica literária legou aos autores homens uma preferência pela perpetuação de suas obras na história. Contudo, a autoria feminina sempre esteve presente e, contemporaneamente, o seu registro e estudo, felizmente, está se intensificando. Das vozes femininas desse período, está Maria Firmina dos Reis que, além de escritora, foi professora e pedagoga, criadora de um projeto educacional em que lecionava para turmas mistas, ou seja, com meninas e meninos juntos, uma ousadia para a época.
 
Maria Firmina dos Reis é considerada a primeira romancista mulher do Brasil, primeira romancista e negra. Nasceu em São Luís, no Maranhão, em 1822; e faleceu em Guimarães, no mesmo estado, em 1917, com considerável longevidade para a época, mas em condições físicas e financeiras precárias. Deixou sua marca na imprensa e compôs canções, poemas e narrativas. Seu primeiro e mais famoso livro é Úrsula, de 1859.
 
Nessa obra, a autora traz o ingrediente romântico tradicional, ou seja, uma história de amor. Geralmente, o fim desses romances folhetinescos do século XIX culminava com o casamento do par amoroso, o típico happy end. Todavia, houve romances com finais trágicos, seguindo o fatalismo de Shakespeare em Romeu e Julieta, o exemplo mais conhecido é Inocência, de Visconde de Taunay. Úrsula se enquadraria nesse último, já que o par amoroso, Tancredo e Úrsula, não concretiza a felicidade neste mundo.
 
No Prólogo, a autora adjetiva seu livro “mesquinho e humilde”, “escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados” publicado “como uma tentativa” de “dar alento à autora de seus dias, que talvez com essa proteção cultive mais o seu engenho, e venha a produzir coisa melhor, ou, quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós”. As palavras de Maria Firmina dos Reis deixam em evidência uma sociedade patriarcal e a consciência disso; sociedade que será, encoberta com uma história de amor, criticada em seu livro.
 
Com a uma linguagem bem ao gosto de José de Alencar, marcada por descrições belas, destacando a paisagem, com seu regionalismo, o narrador, em terceira pessoa, apresenta um enredo cronológico, com alguns flashbacks. As primeiras páginas da obra já antecipam ao leitor essa característica típica do romantismo, enveredando-se para a idealização. Mediante capítulos curtos e titulados, as personagens vão se apresentando com certo suspense. Os nomes de muitos deles só são revelados depois de consideráveis conflitos, como é o caso de Tancredo, o qual é dado a conhecer ao leitor no quarto capítulo. Os títulos dos vinte capítulos auxiliam na síntese da fabulação:
 
Duas almas generosas: o encontro do cavaleiro Tancredo com o escravo Túlio, em que o negro salva o branco após uma queda de cavalo, num estado de desfalecimento.
 
O Delírio: Tancredo se restabelece na casa de Luísa B., e, durante sua convalescença, fica entre a imagem delirante de seu primeiro amor, Adelaide, e Úrsula, filha de sua anfitriã.
 
A declaração de amor: Tancredo confessa a Úrsula seu amor “à primeira vista” e alforria Túlio.
 
A primeira impressão: Tancredo narra a Úrsula sua história; depois de um tempo fora de seu lar para estudar, retorna a casa da mãe, a quem tanto ama, e conhece Adelaide, uma parente distante, por quem se apaixona e pretende se casar.
 
A entrevista: o pai de Tancredo é homem austero e autoritário, faz sofrer a esposa, aceita o casamento do filho com Adelaide sob a condição de aguardar o término de trabalho de um ano.
 
A despedida: Tancredo parte, deixando a mãe e sua amada Adelaide.
 
Adelaide: Tancredo recebe uma carta de sua triste mãe que logo morreria, ao regressar encontra Adelaide casada com seu pai.
 
Luísa B.: após a morte dos pais, o irmão de Luísa B. não aceitou o casamento dela com Paulo B., o qual a desrespeitava, sendo assassinado; paralítica, Luísa B. ouve a confissão do amor de Tancredo, o qual revelou seu sobrenome, para a surpresa dessa senhora, ele era o seu sobrinho, primo de Úrsula.
 
A preta Susana: uma negra livre na África, filha, esposa e mãe, capturada e escravizada no Brasil.
 
A Mata: Úrsula é surpreendida por um estranho que diz amá-la naquele momento em que a viu; ela se assusta ao ver que ele sabe seu nome e diz ser amigo da mãe; o leitor saberá que é o irmão de Luísa B., portanto seu tio.
 
O derradeiro adeus!: o tio, comendador Fernando P., visita a irmã depois de dezoito anos.
 
Foge: Luísa B. revela a Úrsula a pretensão de seu cruel irmão de se casar com ela, aconselha a filha a fugir e morre em seguida.
 
O cemitério de Santa Cruz: Tancredo e Túlio encontram Úrsula desvanecida chorando sobre o túmulo da mãe.
 
O regresso: Tancredo e Túlio retornam de viagem passando pela estrada de Santa Cruz, lugar onde a mãe de Túlio foi escravizada e morreu; berço de Tancredo, onde vela a memória da mãe; Susana alerta aos dois das intenções de Fernando B. indicando onde Úrsula estava.
 
O convento de ***: Tancredo leva Úrsula para se refugiar num convento.
 
O comendador Fernando P.: enraivecido, o comendador, manda prender Susana; contrata outro feitor, pois o anterior não aceitou cumprir suas ordens cruéis de fazer sofrer os escravos; chama o padre para se preparar para o casamento.
 
Túlio: o ex-escravo é capturado pelos capangas do comendador e preso.
 
A dedicação: sob os cuidados do guarda Antero, Túlio consegue enganá-lo, ofertando-lhe dinheiro para o vício da bebida, conseguindo fugir da prisão; porém não consegue evitar a cilada armada para o seu amigo, morrendo baleado; após frenética luta entre Tancredo e Fernando B., este apunhala o próprio filho, matando-o na frente de Úrsula.
 
O despertar: após duas semanas do assassinato, Úrsula, na casa de Fernando, se mantém indiferente a ele que vai demonstrando remorso.
 
A louca: a velha Susana morre; e o padre atribui a culpa a Fernando, insistindo que ele busque o perdão de Deus; Úrsula enlouquece e morre.
 
Epílogo: após dois anos, no convento das carmelitas, está o frei Luís de Santa Úrsula, outrora comendador Fernando P., o qual confessa a um monge, num momento de convalescência, os seus crimes, pedindo perdão a Deus e morrendo; o primeiro marido de Adelaide era morto; o seu segundo marido lhe arrastou em aflição.
 
Entre as reflexões que Maria Firmina dos Reis nos deixa em sua obra, duas merecem destaque:
 
crítica à escravidão: as personagens Susana e Túlio são substanciais para evidenciar essa lamentável realidade brasileira que perdurou por três séculos. A história de Susana é comovente, mulher livre e feliz no continente africano, com marido e filha, um dia sai para trabalhar e é capturada, amarrada e lançada num navio negreiro, tumbeiro como era chamado, por ser túmulo de muitos negros e negras vítimas do tráfico. Como o ser humano pode ser tão cruel com sua própria espécie? é uma das perguntas que Susana faz e que também lemos em Tancredo, o qual foi salvo pelo negro Túlio, a quem libertou, comprando sua alforria. A mãe Susana tem uma fala de força e de resistência, inclusive advertindo Túlio da relação dele com o homem branco. Ele, Túlio, sentia-se livre, porém a gratidão a Tancredo era tamanha, único homem branco a lhe tratar com amizade, que se torna, de certa forma, um servo do amigo; e, por ele, morre. A morte de Susana também advém de um sentimento de gratidão a Úrsula, filha da senhora Luísa B. que amenizou o sofrimento da preta, o que não acontecia com os escravos do comendador Fernando B. Este era um senhor de escravos cruel, que fazia escorrer o sangue e lhes infligia árduas tarefas.
 
a sociedade patriarcal: o homem é o ditador das regras do lar e das relações sociais. As personagens femininas são assinaladas pela dor e sofrimento. A mãe de Tancredo padeceu nas mãos do severo marido, o qual ficamos sabendo ser o comendador Fernando B. A morte dela está atrelada a vida conjugal triste, cuja alegria só existia no filho. Adelaide, primeiro amor de Tancredo e causa de sua desilusão, casa-se com o pai dele, descumprindo a promessa feita ao filho, e padecendo nas mãos do marido. O seu segundo esposo lhe arrastará em aflição e desespero, nunca sendo, portanto, feliz. A senhora Luísa B. casa-se com um homem modesto, mas que não era diferente dos demais, dando-lhe muitas desventuras na vida; e, após ser assassinado pelo irmão, este a trata com indiferença, como numa perpétua punição por ter se casado com um homem que não aprovara. A pobre Úrsula que, aparentemente, seria a única a ter um bom casamento com o jovem Tancredo, termina sua vida enlouquecida. O amor doentio de Fernando B. fez-lhe perder seu amado, retirando dela o sonho de uma vida feliz.  
  
Mais que o aspecto romântico da narrativa, o enredo do livro traz reflexões comportamentais da época. A fatalidade do livro é comovente, não há final feliz para nenhuma das personagens. A morte abraça-os, os bons e os maus. Entretanto, vale frisar o processo de conversão de Fernando B., o qual busca no hábito do convento a purgação para os seus crimes. Deixando a mensagem de que Deus é misericordioso, diante do arrependimento de seus filhos.
 
Diferentemente de outras narrativas, em que o negro era praticamente um “pano de fundo”, o romance Úrsula é o primeiro texto brasileiro, escrito por uma mulher negra brasileira, a dar protagonismo ao negro. Fora as referências à escravidão ao longo do livro, há dois capítulos destinados exclusivamente a voz negra: “Susana” e “Túlio”. O relato da mãe Susana é um testemunho verossímil do processo de reificação do um indivíduo, o qual perde sua essência humana para se tornar mercadoria. A brutalidade com que ela é usurpada de sua terra, de sua família, é uma explícita denúncia numa sociedade ainda escravocrata. Maria Firmina dos Reis é o grito precursor de uma escrita negra que encontrará representatividade em Castro Alves, Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo.
 
De acordo com nota do jornal “A imprensa”, de 18 de fevereiro de 1860, “esta obra, digna de ser lida não só pela singeleza e elegância com que é escrita, como por ser a estreia de uma talentosa maranhense, merece toda a proteção pública para animar a sua modesta autora a fim de continuar a dar-nos provas de seu talento”. E, assim, somos gratos a essa mulher que, ousadamente, numa sociedade patriarcal e escravocrata, soube, com leveza e literariedade, colocar em evidência essas duas chagas históricas do Brasil.