Análise comparativa dos filmes "Lutero" e "O Físico" e suas respectivas ideologias

De acordo com Marilena Chauí (1980), a ideologia consiste em um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar; o que devem valorizar e como devem valorizar; o que devem sentir e como devem sentir; o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, assim, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo e regulador. Nesse sentido, pode-se observar claramente, nos filmes “Lutero” (2003) e “O Físico” (2013), como a ideologia norteia a vida das pessoas. Cada época, cada cultura, cada sociedade possui diferentes formas de ideologia. Mas ela sempre está presente. Ouso dizer que a ideologia é atemporal.

O primeiro filme mencionado (2003) trata da vida de Martinho Lutero que, após ser quase atingido por um raio, acreditou ter recebido um chamado divino. Após ter se tornado sacerdote, foi convidado a conhecer de perto o centro do catolicismo: Roma. Lá, ele tomou conhecimento da forma como a Igreja Católica explorava seus fiéis. Lutero manifestou-se contra as atitudes hostis da Igreja. Por isso, teve que enfrentar o tribunal da inquisição e se esconder. Se não tivesse sido protegido por pessoas “importantes” – digamos, “influentes” –, talvez não tivesse sobrevivido à periculosidade da ideologia prevalecente no século XVI.

Lutero criticava a corrupção da Igreja e a imoralidade de certos sacerdotes. Defendia a difusão da bíblia pelo mundo, para todos os fiéis, e não só para o clero. Repudiava a venda de indulgências e relíquias sagradas. A Igreja lucrava em cima dessas coisas, “garantindo”, por exemplo, a salvação de pessoas já falecidas mediante pagamentos e posterior aquisição de cartas de indulgências. Denunciar tudo isso custou caro; pois, mesmo defendendo “o amor de Cristo”, muitos interpretaram como “ódio”, havendo violência e massacre. A quebra da unidade cristã foi uma consequência necessária.

Segundo Chauí (1980), a religião, como toda ideologia, faz-se de uma atividade da consciência social. A religiosidade fundamenta-se em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa dessa ideologia. Nesse contexto, a Igreja Católica da época detinha a hegemonia – Chauí cita Gramsci em seu livro (1980) –, o poder. Ter formulado uma Reforma Religiosa, dentro dessa contextura, representou um processo árduo, que envolveu vidas e mortes (Guerra Santa) – como podemos ver também hoje, em uma conjunção pandêmica, na qual várias vidas são sacrificadas por dadas tomadas de decisão.

Dessa forma, vislumbra-se no filme a alienação – que faz parte da ideologia – das pessoas que são dominadas e, sem perceber, aceitam a dominação. Como afirma Chauí (1980), o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar. Ou seja, a ideologia nasce para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam.

Ora, como a experiência vivida imediata e a alienação confirmam tais idéias, a ideologia simplesmente cristaliza em “verdades” a visão invertida do real. Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes apareçam idéias “verdadeiras”. Seu papel também é o de fazer com que os homens creiam que tais idéias representam efetivamente a realidade. E, enfim, também é seu papel fazer com que os homens creiam que essas idéias são autônomas (não dependem de ninguém) e que representam realidades autônomas (não foram feitas por ninguém) (CHAUÍ, 1980, p. 34).

É válido ressaltar que Louis Althusser (s.d.) manifesta que cada massa populacional é recheada da ideologia que convém ao papel que ela deve desempenhar na sociedade de classes: papel de explorado; papel de agente da exploração; de agente da repressão; ou profissional da ideologia. Desse modo, existe uma

ideologia dominante, a da classe dominante que detém o poder de Estado. É por intermédio da ideologia dominante que é assegurada a «harmonia» (por vezes precária) entre o aparelho repressivo de Estado e os Aparelhos Ideológicos de Estado (ALTHUSSER, s.d., p. 56).

O segundo filme, “O Físico” (2013), apresenta a história de Rob que, assim como Lutero, lutou contra certos princípios impostos, certas convicções ideológicas. Rob viu sua mãe morrer de “doença do lado” em meio a um caos que afetava a população da Inglaterra do século XI durante a “Idade das Trevas”. Sem sua mãe, foi separado de sua família. As chances de não ter sobrevivido eram enormes, mas conseguiu; pois, depois de muita insistência, Bader, um barbeiro que vendia bebidas para a cura de doenças, aceitou cuidar de Rob. Dessa maneira, este cresceu viajando com Bader e aprendeu a cuidar de pessoas doentes.

Todavia, este sonhava em aprender muito mais. Ao descobrir que existia na Pérsia “o melhor médico do mundo”, fez uma longa viagem até lá e fingiu não ser cristão porque só judeus e muçulmanos eram permitidos estabelecerem-se naquele império. Aí fica evidente a disputa ideológica de poder entre as principais religiões da época: cristãos, judeus e muçulmanos.

Por incrível que pareça, conseguiu encontrar o “grande médico”. A Peste Negra tinha alastrado-se por lá e, com a ajuda de Rob, o número de mortes foi diminuído. Entretanto, ele queria aprender mais e mais, desvendar o que era a “doença do lado”. Para isso, ele precisaria pesquisar cadáveres, o que não era permitido pela religião local.

Foi pego no ato, declarou-se cristão e conseguiu fugir para seu país de origem, onde curou muito mais indivíduos, com suas descobertas, vontade e experiência. Novamente, evidencia-se que as ideologias são impostas de tais formas que ficam difíceis de serem rompidas. Chauí (1980) alude que a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. A ideologia é, assim, o processo pelo qual as ideias da classe dominante tornam-se as ideias de todas as classes sociais – ideias dominantes.

Nessa perspectiva, a ideologia esconde que nasceu da luta de classes para servir a uma classe na dominação. A ideologia é uma das formas da práxis social. Partindo da experiência imediata dos dados da vida social, ela constrói abstratamente um sistema de ideias ou representações sobre a realidade. Essas ideias ou representações tendem a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. A ideologia é, dessarte, um ocultamento da realidade, um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados (CHAUÍ, 1980).

Isto posto, devemos conscientizar-nos das ideologias presentes em nossa sociedade e não nos deixarmos tomar pela alienação. Façamos, portanto, como Lutero e Rob: arrisquemos nossas vidas em prol de novas normativas e contra ideologias absurdas que não valorizam a população como um todo, mas só quem lhes convêm.

REFERÊNCIAS:

ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, s.d.

CHAUÍ, M. O que é ideologia. Revisão de José E. Andrade (2004). 1980.

O FÍSICO. Direção: Philipp Stolzl. YouTube. Publicado pelo canal Luis Paulo Marques Mesquita. Alemanha, 2013, (119:00 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5OEpaQu5iq4&ab_channel=LuisPauloMarquesMesquita>. Acesso em: 10 de jul. de 2021.

LUTERO. Direção: Eric Till. YouTube. Publicado pelo canal Loctorman. Alemanha, 2003, (118:26 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PlP-Xt4LLNg&ab_channel=Loctorman>. Acesso em: 3 de jul. de 2021.

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Texto elaborado na disciplina de Análise Do Discurso do curso de Licenciatura Em Letras Português-Inglês – UTFPR-PB.

Profa. Dra. Márcia Andrea dos Santos.