Sobre o conto "Pele" - uma crítica literária - por Odi Alexander Rocha da Silva

Um olhar sobre “Pele”

Ou

E se Rubem Fonseca fosse formado em História?

Por Odi Alexander Rocha da Silva - Professor Titular em Letras da Universidade Estadual do Tocantins

Meu amigão amado,

Deste-me a oportunidade de ler/admirar uma peça literária, a meu ver uma das mais bonitas do teu repertório. Claro que sou suspeito porque gosto de tudo o que fazes. Mas nesse conto há mais. Mais arte e mais inteligência para além do que tenho visto do que costumas escrever. Por isso pensei que seria interessante uma análise literária desse conto. Aqui há uma dedicação especial porque o historiador resolveu entrar na dança. O que acontece quando o historiador resolve ser também escritor? Questão a discutir.

Justamente porque feito por um historiador que, neste conto, escreve também como historiador, o conto, por óbvio, acaba flertando com a História. Sim, aquela com “H” maiúsculo. É essa qualidade que faz o conto ir além, transcender seu próprio enredo. Claro que foi uma escolha acertada, mas também esperável para quem te conhece. Eu, inclusive, sinto falta do historiador ser mais escritor, isto é, colocar mais de si, incursionar narrativas na História até para que as pessoas saibam mais História. Nunca tivemos um povo tão ignorante de seu próprio passado. Se ignoram o passado, digamos, cultural próprio, o que dizer do passado mais geral como, por exemplo, da história pré-colombiana. Arte, ao invés de ser só arte, também é reflexão sobre o conhecimento. Um desafio ao historiador ao apresentá-lo à literatura, dizendo: Por que não escrever algo que envolva fatos históricos? Um conto que flerta com a História é algo esperável quando o próprio escritor é formado em História, como ocorre ser o teu caso. Temos, então, recursos intelectuais interessantes para serem aproveitados, junto com a própria tessitura dos enredos.

A presença de noções de história assegura a verossimilhança. Sim, aquela verossimilhança de Aristóteles. A representação do mundo baseada no conceito de verdade para o mundo contemporâneo ao escritor. Se há elementos conhecidos, isso assegura a sua base em uma realidade razoável e, também, apreciável ao leitor. Daí a parte interessante do conto ser justamente as informações históricas. Claro, tratadas de modo ficcional, mas, ainda assim, históricas. Imagino que tenha te rendido um certo trabalho de pesquisa. O historiador (aventurando-se ou não na literatura) tende sempre a ser um cronista. Daí a intenção de fornecer informações exatas, datar épocas e lugares. É mais ou menos como faz Dan Brown, que apoia muito da verossimilhança (na maioria dos casos suspeita) da narrativa de seus romances nas pesquisas que faz, todas envolvendo – olha só! - História. Mas bem sabemos que não foi ele que criou isso. Foi, de fato, Umberto Eco que, ao publicar O Nome da Rosa, um romance para cuja pesquisa histórica ele gastou mais de três anos, inaugurou um novo gênero de ficção em prosa: o suspense erudito.

“Pele” é um suspense erudito, o primeiro conto desse gênero que leio, já que suspense erudito costuma acontecer muito nos romances. A História tem muita informação e, para abarcar tanto conteúdo, há que se ter uma narrativa longa. Mas esse conto consegue ser conciso ainda que trazendo informações muito complexas sobre uma cultura que estamos por conhecer. Nada sabemos dela e, o mais das vezes, o que sabemos se relaciona com o que a colonização espanhola não conseguiu destruir. Por isso acho justo qualificar esse conto como suspense erudito. Erudito pelas informações que traz (a qual pode ter certeza que a grande maioria das pessoas não sabe). Suspense porque não há como largar até o desfecho. Se fosse um romance, provavelmente despertasse o mesmo sentimento por ocasião da leitura. Os requintes de crueldade do protagonista se apoiam em uma formação cultural autodidática, a qual fornece um tom especial ao conto. O vínculo com a História representa a busca do personagem pelo seu autoconhecimento. A sua fora reside no fato de que a História o completa como indivíduo. Mais do que isso, é lícito dizer que a História o salva, pois ela é quem o torna o homem que acaba sendo para muito além dos sofrimentos experienciados no passado (na sua própria história). Trocando em miúdos, a História o salva de sua história. Portanto, pode-se dizer que a História é quase um personagem no conto. E já concluímos isso a partir do início dele quando somos apresentados a uma epígrafe do Dicionário das Mitologias Americanas, de Ernâni Donato. A epígrafe fornece ao leitor uma prévia do tom literário que o conto vai apresentar além, é claro, do tempero que se observará na própria estruturação da narrativa.

Mas por que falar em Rubem Fonseca?. Um excelente escritor que tem contigo muito em comum (no caso, no que se refere ao estilo desse conto): as frases curtas e a capacidade para narrar os requintes de crueldade do personagem. A linguagem direta evita mal-entendidos. E é essa uma das maiores forças do conto. Para muito além das pessoas acharem ruim o estilo ou acharem bom. A linguagem é clara e o encadeamento de acontecimentos revela uma gradação na evolução do personagem e que em muito tem em comum com o que pode acontecer na vida real. E por ser realista o conto é bom. A História costuma ser realista. Implacável com os fatos. Ainda que o conto não tenha o realismo da História, busca em si mesmo ser o mais fiel possível a esse realismo. E onde buscar um realismo que impacte melhor o leitor que não seja a utilização da História? Não apenas o leitor vai aprender um pouco mais de História ( e ser convidado a visitar/refletir sobre sua própria história) como também enxergará a História, aqui reinterpretada, sob outros pontos de vista possíveis.

Rubem Fonseca não era formado em História. Trabalhou na polícia durante muitos anos. Todos os contos que escreveu são predominantemente policiais; o requinte de crueldade dos personagens ele os retirou de sua própria experiência de vida. E o que seria essa experiência de vida senão uma gigantesca História? É por isso que eu digo que, se Rubem Fonseca se formasse em História, talvez escreveria como tu. Porque o melhor material para literatura, antes mesmo de técnicas de arte, é aquele que vem do nosso próprio coração.

Parabéns pelo conto, amigão.

Abraço

Odi (teu amigão)

Odi Alexander Rocha da Silva
Enviado por Sergio Vinicius Ricciardi em 14/11/2021
Código do texto: T7385316
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