Cem Anos de Solidão

Há três dias terminei esta leitura.

Esparramadas pelos cantos, é um pouco difícil juntar os seus valores. E é aí mesmo onde vejo sua beleza, no entornado difuso da coisa. Pois fiquei com uma pulga atrás da orelha depois de terminar o livro. A pulga está me sussurrando: “decifra-me”.

Não, a estória contada por Gabriel José García Márquez não é de difícil compreensão. Sem ser linear, a narrativa causa prazer a deflagrar-se em todas direções temporais de forma clara e solene. Irrompe apressada para o futuro, chegando ao derradeiro destino de um personagem, depois volta ao início, continuando com calma uma narração mais abrangente.

Sua literatura sim é complexa, no sentido de ser rica. O autor – não atoa merecedor do Nobel de Literatura em 1982 – tem uma destreza cirúrgica humilhante. Arquiteta brincando com verbos, adjetivos e substantivos com uma intimidade de encher os olhos d’água. O uso de sinônimos pouco íntimos é extenso, o que pode desencorajar alguns leitores. Mas, àqueles que têm um dicionário à mão, é dada a visão da maravilha de uma sentença vindo à luz sem que se acabasse prolixa.

O enigma, para mim, diz respeito ao conteúdo do romance. Fico me perguntando: “sobre o que é este livro?”. Se alguém tiver uma resposta fácil a esta pergunta, eu gostaria de saber. Pois o que eu li não é uma simples saga familiar. Também não é uma estória sobre pobreza, sobre superação ou sobre ganância e loucura. Literatura épica ou histórica, tampouco é. Acho que definir este livro por estes termos é como desenhar o Mapa-múndi numa folha de papel A4 usando um pincel grosso.

Não saber precisar o assunto do livro é o que mexeu tanto comigo. E tem mais a pitada final, o toque do chefe: a emulsão de folclore com literatura histórica, estranha nas primeiras degustações e tenaz no paladar. Afinal, o que diabos quer dizer tudo aquilo de insólito que acontece?

A última frase do livro ficará para sempre gravada em minha memória e eu sei recitá-la de cor. Causa um impacto abissal, aterrador, derramando um calafrio de cima para baixo no corpo. E eu não entendo o porquê! Isso me intriga mais, e mais a pulga murmura “decifra-me”. Pois há um mistério nesta frase, o qual invoca o também nebuloso título do livro, fazendo uso do incrível como se fosse crível e banal.

Acredito - e até espero que - eu ainda passe muito tempo tentando entender esta estória. Faça-se justiça: não é por acaso que uma obra como esta se torne imortal.