Noite de Lobos, Cults e Sísifos: da caça ao preparo

"O que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio"

Ludwig Wittgenstein

(Antes de iniciar a leitura deste texto, vá até o final deste texto e leia a recomendação após o asterisco "*". Depois volte a este ponto, boa leitura!)

Este filme de 2018, Noite de Lobos, produzido pela Netflix, trata do envolvimento de escritor e biólogo na trama de um estranho casal, cuja a mulher assassinou o próprio filho. Chamado por ela para supostamente ajudar a caçar os lobos que teriam matado seu filho, o escritor descobre a verdadeira assassina.

É um filme cuja a narrativa lembra a de um outro muito famoso "Onde os Fracos não Tem Vez" de 2007. Não são filmes cuja a narrativa conduz, alguns vão dizer aprisiona, o espectador no sentido com que pretende ser compreendido.

A narrativa, embora não seja confusa, que comece do fim ou embaralhe as cenas para nos levar a interpretar de forma mais independente o filme. Mesmo este tipo de narrativa não nos dá esta independência, ela antes nos dá o trabalho de chegar por conta própria, a base de algumas pistas, ao sentido pretendido pelo autor.

Em "Noite de Lobos", temos uma narrativa que pode passar para os menos acostumados com este tipo de filme a ideia de que se trata de uma história muito trivial para ser narrada. O final pouco surpreendente não realiza o papel costumeiro, onde o sentido verdadeiro de toda a narrativa é finalmente afirmado e desvelado pelo autor.

Nisto ambos os filmes, além do tema da violência, tem em comum em termos de narrativa. Não apresentam finais que concluam e afirmem categoricamente o sentido pretendido e nem uma grande reviravolta que surpreenda o espectador em relação ao sentido que vinha captando do filme.

O filme tenta trabalhar a questão da violência instintiva, como parte da natureza humana. Diferente do Onde os Fracos Não tem Vez, onde o psicopata representa o próprio mundo, os acidentes, os acontecimentos sem propósito ou sentido, neste os lobos, representados e associados pelo filme a natureza do casal, representam uma violência natural que a maior parte das vezes a civilização encobre ou camufla.

O filme aponta de forma sutil que o casal na verdade são irmãos. A filha do escritor é antropóloga, não aparece no filme, mas o personagem cita isto pelo menos umas 2 vezes. São pistas interessantes, pois o tabu em relação a união entre parentes é considerado pelo famosos antropólogo Levi Strauss, como a base pela qual foi possível a sociedade tal como conhecemos.

Sem este tabu, teríamos um tipo de sociedade mais primitiva e próxima daquelas em que vivem animais como lobos e chimpanzés.

Quando o pai afirma para o filho que matar não é errado quando é para defender-se ou proteger as coisas que se gosta temos uma outra pista, se associarmos isto a forma como estes bandos se relacionam.

Ao contrário do psicopata de "Onde os Fracos não Tem Vez" a morte não é apresentada como parte de um sentido ou de uma moral escolhida pelo assassino. Trata-se de uma forma de vida, uma forma de sobrevivência como os lobos fazem.

Como diz um dos policiais, os crimes geralmente não tem sentido para quem não os comete. O que seria uma síntese para o Onde os Fracos não Tem Vez. Neste filme, uma outra ideia a de uma forma de sobrevivência primitiva seria a fonte de violência e não este homem existencialista, não determinado por nada, como retratado no outro.

As máscaras utilizadas pelos personagens remetem para uma licença ritualística para acessarmos nosso estado mais primitivo, e uma pista para que o espectador ligue um ponto a outro.

Ambos os filmes se baseiam em livros, o que não é de forma alguma novidade que livros sejam transformados em livros. Mas ao contrário destes, cuja a leitura exige que o leitor construa a partir da narrativa um mundo onde se desenrola a história contada, raro são os filmes que não aprisionam o espectador dentro do mundo que ele constrói em sua narrativa.

"2001, Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, é um clássico exemplo desta tentativa de reproduzir este efeito do livro sobre o leitor. No caso do livro, é praticamente impossível ele ser lido sem que o leitor construa em sua mente aquele universo sem usar sua imaginação e vivências próprias.

>>> Uma outra versão

Será que podemos dizer que mesmo quando assistimos um filme padrão, destes de estourar bilheterias e lucrar o triplo do seu orçamento, não construimos um mundo a partir das pistas, dicas, imagens e tantos outros recursos?

Será que o livro teria este monopólio da imaginação compulsória?

A verdade é que temos diversas narrativas e interpretações de mundo já assimiladas dentro de nós. O que fazemos é encontrar nas obras de artes, nas atividades cotidianas e nas religiões algo similar. Através de pistas, imagens e códigos reconhecemos nestas coisas nossa interpretação e narrativas fundamentado e dando sentido a elas.

Antes de encontrarmos o sentido, temos o caos, a confusão e o perturbador. A construção de uma nova narrativa ou interpretação é um processo mais complexo, que pode ocorrer ou não pela leitura de um livro ou filme.

Este apelo cult a filmes com estas narrativas mais abertas pode ser um engano, pois seria inteligente dizer com meias palavras o que se poderia dizer diretamente? Isto pode ser um excelente forma de distinguir dois tipos de pessoas as que conhecem a narrativa e as pretensiosas.

As que conhecem a narrativa de imediato reconhecem as pistas e os códigos ali apresentados. O filme ou o livro surgem como algo familiar. O pretensioso não possui esta familiaridade, mas se contenta com o grande mistério ( a sua ignorância cria o mistério) e uma intelectualidade diante de potencial descoberta. Ele se vê como o portador do mistério, da novidade e do paradigma revolucionário.

"Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra pertença um dia ao Super-homem". Nietzsche.

O pretensioso poderia buscar, antes mesmo de se enredar nestes códigos, uma leitura ou estudo que o tornasse familiar ao que esta sendo apresentado. Ele não pretende no fundo desvendar nada, a clareza o espantaria para de volta a caverna.

Filmes como "Noite de Lobos" e "Onde os Fracos" não Tem Vez servem principalmente aos pretensiosos, pois pouco servem realmente para familiarizar com o que é tratado. Embora o forte destes filmes é que os códigos e pistas apresentados remetem a uma familiaridade e domínio muito grande do que estão tratando.

"Minhas proposições se esclarecem dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contrassensos, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.) Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corretamente". Ludwig Wittgenstein

Sem pelo menos alguma leitura de Sartre, de Levi Strauss e outros pensadores similares este filmes dificilmente podem ser familiares, a não ser para pessoas que tenham por sua inteligência intuições que estes autores tiveram.

Esta aura de mistério, típica de quem consome os cults, não é nada mais do que o assombro de uma pessoa que esta descobrindo a existência de alguma coisa além do seu mundo.

O culto é como idolatrar um objeto de transcendência ( torna-lo por meio dos rituais transcendente ou nos lembrarmos de uma forma mais profunda sobre sua natureza sagrada), como um portal para outra dimensão, mas não se atravessa este portal sem pagar o preço por tornar o sagrado algo profano. Muitos preferem não atravessar por se encantarem com a magia do culto e seu potencial transcendente.

O que torna este filmes tão apelativos para os cults, os cultuadores, é tratar de assuntos que eles não conhecem e explorar o mistério que eles adoram cultuar (se sentirem inteligentes por isto, por se acharem os únicos escolhidos para compartilhar o mistério).

Não me surpreende que a Netflix, por usar algoritmos que avaliam nossas preferências de filmes, não esteja produzindo por fórmulas paradoxalmente filmes para os cults.

Para os que atravessam o portal e sacrificam o sagrado em nome das coisas da terra, deste mundo, minhas saudações. Aos adoradores de mundos além das estrelas, longe de mim com sua radiação tenebrosa.

"Filosofar é como tentar descobrir o segredo de um cofre: cada pequeno ajuste no mecanismo parece levar a nada. Apenas quando tudo entra no lugar a porta se abre" Ludwig Wittgenstein

* Parabéns por ter seguido sua intuição e vindo até aqui para ler esta mensagem! Este texto não tem referências bibliográficas, detalhes técnicos, nome do diretor do filme, curiosidades sobre os autores, algum detalhe desapercebido pela maiorias enquanto o filme era rodado.

Não há sacadas ou insights que poderá repetir como suas em rodas de amigos cults, para arrasar em uma conversa "inteligente" ou em um textão do Facebook. Desculpa ter que te dizer isto! Você perdeu seu tempo, alguns minutos com certeza.

Também não há indicações de prêmios, críticas renomadas e nenhum apontamento de quanto estes filmes podem te ajudar a parecer mais "inteligente".

Por exemplo, não há uma referência à algum crítico renomado. Você não vai aprender por este texto o que deveria aprender lendo os livros deste cara. Não há nada mastigado pra você aqui, se quer isto, procure outros ou aprenda a ler livros com mais de 200 páginas. Não vou me dar o trabalho de te dar a garantia de que o que escrevi se baseia em algum maioral ou acadêmico juramentado, sacramentado e autorizado a falar do assunto.

Outra coisa, não sou obrigado a concordar com suas ideias ou fazer coro com sua forma de analisar e compreender o que quer que seja. Não puna por isto e não tente me fazer menor por te fazer crer que não atingiu o último nível de compreensão e interpretação sobre alguma coisa.

Não há sequer garantias de que ao ler este texto você parecerá aos outros mais esperto e antenado com as novidades da sétima arte. Te digo que ter lido este texto não te dará credencial pra coisa alguma e nem contribuirá para falsa aura de autoridade que possa por ventura pretender.

Se você é um cult, me perdoe de todo meu coração! Pare de ler agora e vá buscar outras coisas mais "inteligentes" pra ler.

Se o que eu escrevi te incomodar e resolver usar de falsa argumentação para me criticar, saiba que saberei rir da sua cara, pois você mordeu a isca!

Só termine de ler, se for daqueles que não acreditam em mistérios, mas em confusões. Que não acreditam em bons filmes, bons livros e na boa música, mas somente no homem como um Sísifo obrigado eternamente criar algo além dele mesmo, de seus sonhos e vontades, e falhar eternamente de forma genial e esplêndida, eis a nossa tragédia! Eis a nossa condenação! Eis que o resta para uma contemplação sincera.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 02/10/2018
Reeditado em 02/10/2018
Código do texto: T6465818
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.