Bird Box e Linguagem de Cinema

Tem filmes que se valem de grandes insights que provocam em seus espectadores, os fazem pensar certos temas da vida de uma forma diferente e mais profunda. Há outros que se valem da linguagem, de uma profundidade e beleza pra dizer coisas que temos alguma noção, possivelmente banalizada ou indiferentes para nós.

A partir de uma distinção simples como apresentada aqui é possível entender por que público costuma a se dividir e se digladiar diante de filmes como Bird Box (2018). ( lembrando que não tenho pretensões de revelar a causa final ou a essência eterna de alguma coisa, tanto por não ser capaz de tal feito, quanto por não acreditar que tal feito seja realizável).

Primeiro o que poder ser uma grande sacada para uns (um monstro cuja a forma não é revelada durante o filme) não é nenhuma novidade para outros, principalmente os que conhecem os filmes da década de 80. Por exemplo, a reação a série Black Mirror por parte de quem conhece a série da década de 50 Além da Imaginação, não é a mesma para quem conheceu este tipo de temática a partir da série mais recente.

É normal o desavisado achar que se trata de algo genial, nunca pensado antes, o que se trata na verdade de algo já pensado antes sobre o qual o autor desenvolveu outras questões e atualizou.

Aquele que não conhece as referências do filme pode acha-lo genial e de grandes insights. Aquele que já conhece as referências não viu nada demais. As reações acabam sendo conflitantes. De ofensas a questionamentos sobre o cognitivo de quem comentou o filme.

Segundo, o filme traz uma temática que é o descobrimento da maternidade, cuja a direção do filme se perdeu ao não compreender a profundidade do tema. Se o tema não é tratado com profundidade temos a tendência a focar a atenção sobre outros aspectos do filme que possam nos responder sobre o porquê do filme.

O monstro que ninguém pode ver se torna o foco da atenção quando a questão da maternidade não é devidamente tratado, como tal tema é pouco desenvolvido pelo filme que o coloca como um pano de fundo para desenvolver outro tema. O filme termina sem finalizar este tema, o monstro não é mostrado nem explicado, o espectador fica sem ver sentido no final.

Não é honesto culpar o público pela incompreensão, quando sabemos que questões mais introspectivas são muito melhor tratadas em tantos filmes bons por aí, exemplo: O Segredo de Brokeback Mountain (2005), que seria um filme sem graça se o espectador tivesse mais interessado na trama e desenrolar dos fatos do que na forma como o relacionamento entre os dois personagens se estabelecia e como viveram suas vidas escondendo o amor um pelo outro.

A competência e sensibilidade do diretor, Ang Lee, fez com que a história fosse assimilada e sentida pelo público sem maiores dificuldades, já que a complexidade e confusão não são sinônimos - o diretor optou pela complexidade da relação e pela clareza da situação colocada. A própria passagem do tempo, 20 anos, no decorrer do filme não precisou de datas impressas no vídeo ou vozes alertando, pequenos sinais eram o bastante.

É como se a linguagem utilizada, forma de filmagem, direção dos atores, fotografia, luzes e etc. não nos introduzisse àquilo que realmente é importante - um limitação da direção do filme. Filmar não depende de jogar na tela as técnicas com domínio e profissionalismo, mas de escolher e combinar aquelas que melhor dão forma e corpo à profundidade pretendida pelo roteiro.

Podemos imaginar como seria os filmes de Glauber Rocha se alguém resolvesse adaptá-los com uma linguagem típica de filmes como Os Vingadores ou Wolverine o quanto perderíamos ou ficaríamos confusos com a história.

Sozinhos podemos olhar o Céu, às ruas e as pessoas e com mais ou menos esforço extrair disto um passatempo ou um insight sobre a vida. Um filme precisa ir além do que conseguimos por conta própria. Se pretende ir além, precisa da linguagem certa.

Um exemplo disto é diferença de alguém explica suas razões em um debate com voz baixa e hesitante e aquele que consegue explicar a mesma coisa, mas utilizando sua voz, postura corporal e exemplos em passagens que poderia soar confusas para as pessoas. Os dois podem estar corretos em suas explicações, porém no quesito comunicação sabemos qual se sobressaiu.

Se a comunicação for algo secundário em um filme, será melhor eu olhar a paisagem pela janela ou fazer uma viagem. E buscar por mim mesmo os insights e questões sobre a vida. A maioria das vezes um boa conversa em um bar nos traz conhecimentos e inspirações que até mesmo aulas não foram capazes de nos dar.

É conhecido o pitoresco caso em que um simples óculos deixado no chão de uma exposição de artes atraiu a atenção do público, que se dedicou a interpretá-lo e buscar alguma coisa demais na obra. A brincadeira na verdade foi um teste feito por um adolescente que o deixou de propósito no chão¹*.

Uma obra de arte não precisa necessariamente ser um relatório científico, onde a linguagem precisa ser estrita e objetiva e da mesma forma as fontes de seus resultados e informações mencionadas, e nem precisa ser algo corriqueiro e vago que não nos proporcione algo melhor do que uma simples viagem ou vista de uma montanha possa nos proporcionar.

O que não significa que a arte não possa ser isto, afinal ainda temos muitas disputas sobre o que seria definitivamente a obra de arte ou se devemos renunciar a este "definitivo". Tudo passa pela simples questão: o que busca em uma obra de arte, o que cada um busca em uma obra de arte e o que o autor buscou na obra de arte.

Na minha opinião, precisamos de mais referências e estas vem pela leitura, pelo aprofundamento, por mais humildade em aceitar que não sabe o suficiente para tratar de algo. Tenho a impressão que a gambiarra é a tradução material da nosso pedantismo.

***

O filme tem aquele famoso espectador que já tratei em outro texto aqui publicado²* que é o cultuador. É aquele tipo que se encontrou como portador de um sentido oculto e pouco compreendido pelos demais. Ele se torna um tipo de sacerdote autorizado a falar pelo autor do filme ou mesmo de um livro.

Seu objetivo como um bom sacerdote da crítica cinematográfica ou literária é impedir que outras formas de interpretação de uma obra ganhem legitimidade e concorram com a dele. Da mesma forma, ele pretende encobrir com um manto sagrado este sentido, não é qualquer e de qualquer forma que se pode tratá-lo e nem qualquer pessoa que pode tratar deste assunto.

É preciso a devida reverência e humildade para aceitar a entrega do segredo e o teste sobre a dignidade e capacidade de compartilhar com o mesmo o sentido sagrado detido pelos sacerdotes da crítica.

*¹https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/05/1775290-oculos-deixados-no-chao-de-museu-nos-eua-sao-confundidos-com-obra-de-arte.shtml

*²https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-cinema/6465818

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 31/12/2018
Código do texto: T6539806
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