O Engenho Azul

Sobre “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”.

Por séculos o Brasil perpetrou um dos maiores crimes contra a humanidade de toda a chamada História Universal. Genocídio, tortura e escravidão navegaram incólumes pelos mares do tempo, e moldaram, estruturalmente, uma sociedade que cresceu e enriqueceu sob o signo da desigualdade. Nas senzalas, nos engenhos, por toda a parte, seres humanos escravizados eram submetidos ao mais degradante tratamento. Enfrentavam rotinas extenuantes de trabalho, tostados pelo sol abrasador, encharcados pela chuva tropical.

Um dos instrumentos de tortura utilizados contra os escravizados consistia em uma máscara de metal, que poderia tampar-lhes a face por completo, ou parcialmente. Quando vi pela primeira vez o cartaz de “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” de Marcelo Gomes, com produção de João Vieira Junior, foi nessa máscara que pensei. Uma metáfora do trabalhador brasileiro contemporâneo, escravizado por um capitalismo tardio, retrato de um Brasil que teima em preservar sua condição colonial. Com bastante “engenho”, o cartaz me remeteu a um só tempo ao nosso grotesco passado escravocrata e à Revolução Industrial.

O belíssimo documentário retrata a dura rotina dos trabalhadores da indústria do Jeans em Toritama, Pernambuco. A ideologia do trabalho, da mercadorização do tempo, da conversão de todo tempo em capital, foi completamente naturalizada em Toritama, moldando silenciosamente a sensibilidade de seus habitantes. Em Toritama, o Engenho Azul funciona com um só propósito: vender o ano para comprar o carnaval. No comércio das horas, angústia e dor se misturam ao vil metal.

A composição entre as imagens, o som das máquinas, e a música, me remeteu ao cinema de Dziga Vertov, em “Um homem com uma câmera”, de 1929. O documentário nos faz pensar em “O Capital”, de Marx, em inúmeras passagens nas quais o autor trata da rotina nas fábricas britânicas. Trabalho infantil, semi-escravo, jornadas de trabalho de 14, 16, 18 horas. Mas um trecho de “A Riqueza das Nações” de Adam Smith latejou em mim durante toda a película. Smith aborda os inúmeros malefícios do trabalho repetitivo, monótono. A divisão social do trabalho, “reconhece” Smith, idiotiza os trabalhadores. As cenas das fábricas e facções em que movimentos idênticos se repetem milhares de vezes nos provoca uma grande angústia. Imaginar que uma pessoa passa oito, nove, dez horas por dia, realizando aquele mesmo movimento é realmente sufocante. Se sufoca pensá-lo, como será vivê-lo?

O documentário nos sugere um terceiro pensador. Cheio de vida, humor e sagacidade. Léo é um trabalhador do Engenho Azul. Desses que usam máscara. Mas Léo, por mais que as forças inescrupulosas da realidade social imposta sejam implacáveis, resiste a ser idiotizado. Léo, de modo cândido e engraçado, resiste com leveza e humor. Léo recusa ser escravizado, recusa a normalidade distópica do agreste pernambucano. A profusão de sua fala revela uma inquietação sincera e incontrolável. Léo pode até se guardar para quando o carnaval chegar, mas levantará um milhar de questionamentos ao longo do ano. Léo é engenhoso. De um engenho vivo e azul, azul “da cor do mar” da praia que tanto gosta. Léo não tem vocação para máquina. Está condenado a ser humano.