Anonimato e Loucura em Coringa

O filme de 2019 realiza um estudo sobre a origem de um dos maiores vilões das histórias em quadrinho o Coringa. Com uma abordagem mais psicológica, o filme dá ênfase a alguns aspectos que comporiam a transformação do personagem que sofre de transtornos mentais em um sociopata perigoso e caótico.

O personagem não é um niilista ou anarquista militante. Ele se encontra em uma situação que o iguala a maioria, senão todas as pessoas, que é de como construímos um sentido para a nossa existência no mundo. Em outras palavras, como posso me realizar como pessoa e ao mesmo tempo encontrar na sociedade um respaldo e um lugar.

Arthur Fleck, seu nome original, sofre com transtornos mentais agravados por abusos e abandonos familiares na infância. Tal histórico dificulta sua aceitação social e da mesma a forma a sua compreensão dos ritos sociais para se tornar um comediante ou mesmo um namorado.

Ele não se realiza, mas antes que se de conta por si mesmo de suas limitações, ele encontra no desprezo da mulher que encontra no elevador e também na chacota com sua apresentação de Stand Up pelo seu ídolo o insight definitivo.

Descobre que é um filho adotivo de uma mãe louca, que o maltratava e o expunha a violência. É traído por um suposto amigo no trabalho, que procura tirar proveito de sua condição. É abandonado pela assistência do estado, que lhe oferecia remédio e um parco apoio psicológico. Perde a esperança de ter encontrado um pai. Perde o emprego e descobre que viveu um delírio de um namoro com a vizinha.

Todas as possibilidades de se realizar como pessoa estavam encerradas, pelo menos naquele momento. Aqui é preciso ter cautela, o transtorno mental foi mais um aspecto a se somar a tudo que ele passou a viver, não foi o gatilho. O limbo existencial não tinha razão direta com o transtorno, embora este tenha contribuído.

Esta verdadeira tormenta, em que mesmo indivíduos sãos podem ser envolvidos, é o vazio existencial. Não se sabe o propósito, o sentido e a razão para o que se faz e para a própria existência. O indivíduo se vê como dispensável. Vê a si mesmo como um móvel inútil e desinteressante, ao qual não crê em grandes emoções e realizações.

Então ele arrasta a si mesmo como um peso morto, uma obrigação cada dia mais desnecessária e sem sentido.

O que sobrou para Arthur Fleck de possibilidades existenciais? Viver sua loucura. Não foi matar os três investidores no metro que o libertou, embora sua frieza já estava ali dada como certo poder. O que sobrou foi viver plenamente a loucura que não pode viver plenamente, pois a controlava com remédios e um tremendo esforço em se inserir, parecer normal para os outros.

O diretor e também roteirista do filme soube colocar de forma muito interessante a forma como Arthur Fleck se transforma em Coringa. Não foram determinantes sociais, pois nem todos tomam o mesmo caminho diante da mesma situação. A questão passava pela necessidade do indivíduo se realizar como pessoa nas condições e meios que a sociedade dispõe, lhe faltou a família e a empatia por parte dos demais, o transtorno o incapacitava para uma maior sociabilização e compreensão dos ritos sociais.

Algo não pode escapar da análise do filme. Arthur mata os três investidores em uma composição do metro. Ele não mata por serem investidores ou por estes estarem assediando uma mulher. Em uma crise doentia de risos, dada a situação estressante que ele testemunhava, os homens invocaram com ele. Não conseguindo demonstrar que não estava debochando, começou a apanhar dos homens, até que começou a disparar uma arma de fogo contra eles.

O crime cometido enquanto estava fantasiado de palhaço inspirou as demais pessoas de que se tratava de algum protesto contra o prefeito da cidade, que se identificava com os ricos e desprezava os pobres como palhaços. Nisto, sem pretensão, se tornou um símbolo da insatisfação daquelas pessoas também frustradas socialmente.

Poderia dizer que a única forma que ele encontrou de se realizar como pessoa foi oferecer sua loucura a uma sociedade que necessitava dela para combater injustiças ou satisfazer suas frustrações sociais e existenciais em relação às desigualdades e contradições de uma sociedade de consumo. E que percebeu que aquela sociedade que o agredia, dele debochava e o excluía socialmente também estava frustrada e que de certa forma sua loucura era pertinente com todo aquele caos social. Mas seria grosseiro afirmar algo assim.

A loucura do Coringa não deve ser confundida com o transtorno. A loucura foi viver sem culpa ou remorso os próprios delírios sem preocupação com a correspondente realidade. Ele não é um herói, não está lá para dar lição de moral ou defender anarquismo. Não representa minoria ou categoria alguma, não representa nem ele mesmo, pois para isto é preciso que ele tome consciência dos processos sociais que o excluem e se ver como um cidadão de direitos – ele não pretende mudar o mundo, sua loucura não é um protesto, mas um modo de existir: a piada que só ele entende, e isto basta. Esta é a grande loucura.

A loucura que realmente ameaça a sociedade é de nos tornarmos tão frios e apáticos uns com os outros a ponto de sentirmos que nada temos a perder e que nada devemos em termos de empatia aos demais. Não é um Coringa que nos torna frios e apáticos.

E assim o personagem assume seu alter ego: alguém que nos faz duvidar do seu cinismo ao apontar o cinismo da sociedade, alguém que tomamos como mal, mas que aponta para o mal que a sociedade também faz. Por isto se iguala a sua maldade, porém ele reserva para si uma virtude que falta a esta sociedade do qual ele ri e espelha sua loucura: não se esconde por trás da hipocrisia.

O diretor e roteirista dá um contexto original para o surgimento do Coringa. Sabemos da personalidade deste e de como ele joga com as contradições e loucuras da sociedade para se permitir ser contraditório e louco. O que o autor acrescenta é a angústia existencial ao qual pode ser lançado qualquer indivíduo e como este desespero pode levar a atitudes e escolhas que não faríamos em uma situação normal, não faríamos se o dia não tivesse sido tão ruim. Se entregar aos delírios era uma possibilidade, não para se inserir sadiamente no mundo, mas para aliviar a dor de não ser ninguém.

Não acredito que o filme possa inspirar massacres em escolas, cinemas, igrejas ou revoluções, não mais do que as que já ocorrem. Mas talvez possa nos levar a pensar em como o estreitamento da empatia e da solidariedade leva os indivíduos a uma invisibilidade e vazio tão grandes.

Creio que a maioria que passa por isto nada faz contra os demais: se matam, se drogam, se fecham e se deixam ser feridos e morrer. Uma minoria que age de forma violenta, também não deixa recado nenhum a não ser o da própria violência desproporcional e injusta – não serão ouvidos como vítimas, mas como criminosos.

O filme é uma obra de arte. Por isto consegue dizer coisas que mesmo que houvesse milhares de Coringas aprontando por aí, na verdade tem muitos, não conseguiriam mostrar a complexidade e os dilemas que tantos vivem de forma anônima.

No personagem, a loucura individual, pessoal e social se cruzam. Somente os simplórios ousaram isolar uma delas para explicar o personagem. Em todo caso, me impressiona como a apatia e o egoísmo das pessoas nos tornam semelhantes a sociopatas, ainda que muito mais sutis.

Mas não me impressiona como atualmente psicopatas tem se tornado objeto de admiração e até mesmo personagens de grande apelo para as pessoas. Ora desejam ter sua frieza, que surge como indiferença a violência e cobranças dos demais. Ora desejam seu sarcasmo e ironia com que desdenham as normas sociais, isto por que em uma sociedade que se pauta na liberdade e na competição os limites são devolvidos aos indivíduos.

O que são ou deixarão de ser como pessoas e indivíduos ficam ao seu encargo, assim como o peso existencial injustamente transferido de um sistema econômico concentrador de recursos para o indivíduo que crê ter liberdade para nele chegar onde quiser.

Vamos continuar ignorando os dependentes químicos ou predispostos a suicídio e outros problemas. Por que em uma sociedade em que se crê que o indivíduo é inteiramente responsável pelo que se torna, nada podemos em relação aos que consideramos incapazes - simplesmente por que transferimos a eles toda responsabilidade sobre a mazela e desgraças que pairam sobre suas vidas.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 17/10/2019
Reeditado em 11/03/2021
Código do texto: T6771631
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